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Uma Política para uma concepção de educação

Política Nacional de Formação de Professores lançada pelo MEC culpabiliza professor e resgata ideias da década de 1990, avaliam especialistas e entidades
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 27/10/2017 16h57 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Para secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães, o professor, isoladamente, é um fator mais importante para aprendizagem dos alunos do que desigualdade social Foto: Walterson Rosa / MEC

O Ministério da Educação (MEC) lançou no dia 18 de outubro a Política Nacional de Formação de Professores. Anunciada como "algo simples, prático, mas ao mesmo tempo revolucionário" pelo titular da pasta, Mendonça Filho, a nova medida do governo se alinha às demais prioridades do MEC que, segundo o ministro, são a consolidação da base nacional comum curricular (BNCC) e a reforma do ensino médio.

Anfope  (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação) e outras seis entidades do campo da educação lançaram, no dia 20 de outubro, uma nota criticando a Política e o governo. "Ao contrário da afirmação do ministro, constatamos que a Política apresentada não contém elementos que nos permitam falar de avanços, muito menos de revolução na formação de professores", diz o texto assinado ainda pela Associação Brasileira de Currículo (ABdC), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação e Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (Forumdir).

O problema, governo e críticos concordam, é real: uma parcela importante dos docentes não têm formação adequada. Segundo o último Censo, divulgado pelo Inep em 2016, o país tem 2.196.397 professores na educação básica. Destes, mais de 480 mil só possuem o ensino médio e seis mil, apenas o fundamental. Mais de 1,7 milhão tem nível superior, embora 95 mil não tenham licenciatura. Além disso, nem todos os docentes com licenciatura atuam em sua respectiva área de formação. A solução do problema e o peso dado a ele no cenário da educação brasileira, contudo, estão longe de ser consenso.

"Todas as pesquisas – nacionais, internacionais – indicam que a qualidade do professor é, isoladamente, o fator que mais influencia a melhora do aprendizado. Isso significa que, independentemente das diferenças de renda, de classe social e das desigualdades existentes – que existem e vão continuar, infelizmente, por muito tempo –, a qualidade do professor é o que mais pode nos ajudar a melhorar a qualidade da educação e melhorar a equidade do sistema no nosso país”, afirmou de forma taxativa a secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães, sem citar nenhuma fonte para as informações.

"No Rio de Janeiro, todo dia milhares de crianças não têm aula por conta da questão da violência nas comunidades onde as escolas estão situadas. Que formação de professores pode dar conta dessa realidade? Em Fortaleza, o teto de uma quadra esportiva desabou em pleno dia letivo. Como é que ficam as condições de trabalho? A formação é fundamental para a melhoria da qualidade de ensino, mas é inadmissível que se diga que a formação, sozinha, dá conta da melhoria da educação brasileira", contrapõe Lucilia Lino de Paula, presidente da Anfope.

Para ela, os gestores não podem jogar sobre o professor toda a carga da aprendizagem das crianças e jovens brasileiros, já que eles próprios têm responsabilidade. "A escola tem que ter condições, tem que ter equipe técnica, tem que ter projeto político-pedagógico. É claro que passa por um professor bem formado. Mas não se faz uma política séria sem associar formação à valorização dos professores, que tem a ver com carreira, com salário e com condições de trabalho. É um pacote", diz Lucilia. A presidente da Anfope esclarece que as entidades sempre defenderam uma política nacional de formação de professores articulada com o sistema de ensino e as instituições formadoras. "Nós não tínhamos essa política; tínhamos programas que, muitas vezes, não se articulavam. Mas a Política anunciada não é a que defendemos. Não é a que o Plano Nacional de Educação determina porque, justamente, só culpabiliza o professor". Procurado pela reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz, o MEC não respondeu às perguntas enviadas.

Culpa do professor

"Temos uma situação muito difícil porque houve um aumento muito significativo dos recursos investidos em educação nos últimos 15 anos; houve um aumento muito significativo do número de professores contratados pelas redes; houve um aumento muito significativo do salário dos professores – uma vez que temos o piso salarial docente e o salário, em média, quase quadruplicou nos últimos anos após a implantação – e os resultados continuam insuficientes", argumentou a secretária do MECa no lançamento da Política.

Lucilia rebate: "A melhoria salarial foi pontual. Algumas redes públicas não implementaram o piso salarial nacional. É algo que está muito longe de ser alcançado". Segundo matéria do G1, em janeiro deste ano, o próprio MEC constatou que ao menos 45% dos municípios brasileiros admitiram para o governo federal que não pagam o piso salarial – de R$ 2.298,80 - aos professores da rede municipal. Além da instituição efetiva do piso, a Anfope defende o regime de dedicação exclusiva e um plano de carreira único para o magistério. "Os professores têm duplas, triplas e até quádruplas jornadas de trabalho, se dividem em escolas públicas e privadas para conseguir se sustentar”, explica.

Há críticas também sobre o ‘método’. Segundo a presidente da Anfope, as entidades não estavam a par de qualquer discussão sobre o novo desenho da política. "Essa tem sido a prática do governo", diz ela, que questiona: "O grande interlocutor do MEC são fundações privadas criadas por bancos e cervejarias que não entendem de educação; não são as entidades educacionais, as instituições formadoras e os próprios professores. Como a Política pode ir ao encontro da demanda de quem está na ponta se o MEC não foi ouvir os professores?".

Mais prática, menos teoria

Dentre os retrocessos assinalados pelas entidades, estão o "tecnicismo" e a "precarização" da compreensão da docência e de sua formação. Mas, para o governo e os gestores estaduais e municipais da educação, a formação docente precisa ter mais prática e menos teoria. "A baixa qualidade da formação de professores, os currículos de formação inicial que não oferecem atividades práticas, a oferta de poucos cursos com aprofundamento da formação em educação infantil e no ciclo de alfabetização e os estágios curriculares sem planejamento e sem vinculação clara com as escolas de educação básica são um aspecto da política que precisa ser enfrentado para melhorar a qualidade da formação docente", disse Maria Helena.

Lucilia não se surpreende. "A tônica das políticas educacionais da era Temer tem sido o aligeiramento e a precarização. Eles dizem que os cursos de formação de professores hoje são extensos do ponto de vista do currículo, têm muitas matérias e são pouco práticos. O que nos induz a pensar que eles vão aligeirar, tirar toda a fundamentação teórica desses cursos em nome do viés praticista. Mas o professor não é somente um 'prático'. É um profissional cujo trabalho tem uma dimensão prática muito importante, mas não se reduz a isso", alerta.

"Asfixia financeira"

Perguntado na coletiva de imprensa sobre qual seria o investimento total nas ações, Mendonça Filho se limitou a dizer que serão R$ 2 bilhões e que boa parte desse orçamento já era usado para o mesmo fim. "Ou seja, não há ampliação de recursos. Essa Política parece mais uma jogada de marketing para esconder os cortes orçamentários que estão sendo feitos na educação, para esconder o fato de o piso salarial não estar sendo implementado. Antes de começar, ela já está condenada ao fracasso por falta de investimento", considera Lucilia, para quem o cenário é de "asfixia financeira".

Para Luiz Carlos de Freitas, professor da Unicamp, a nova Política de Formação de Professores é um "esboço". "O anúncio sugere a improvisação de uma 'política', ao que parece, por necessidade de compor uma 'agenda positiva' para o governo Temer no momento em que ele é pressionado e se esvai em meio às acusações de corrupção", escreveu o especialista em seu blog, 'Avaliação educacional'.

Residência Pedagógica

A grande vitrine da nova Política é a criação da Residência Pedagógica. Anunciada por Mendonça Filho em cadeia nacional de rádio e televisão no dia 15 de novembro, a ação soma 80 mil vagas. O edital, em discussão com a Capes, será lançado ano que vem. "A proposta é formação em serviço ao longo da graduação com ingresso a partir do terceiro ano", disse Maria Helena, informando ainda que, para aderir ao programa, as instituições formadoras deverão estabelecer convênio com as redes públicas de ensino. Segundo ela, os alunos da graduação vão trabalhar nas escolas de educação básica com "supervisão planejada" e "avaliação periódica".

“É um sonho de consumo dos gestores que tocam as redes de ensino porque o professor sai da universidade e, quando entra na sala de aula, realmente não sabe o que fazer. Então, se ele estiver já no terceiro e no quarto ano [da faculdade] trabalhando com as crianças é um salto muito grande", afirmou a vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Maria Cecília Amendola, durante o lançamento da nova Política.

Já segundo Lucilia, a criação de uma residência pedagógica seria positiva se a ideia fosse fazer a transição da graduação para o exercício profissional. "Segundo o governo, a Residência Pedagógica foi inspirada pela residência médica. Só que a residência na medicina é considerada uma especialização. É remunerada – e bem remunerada. Tem até concursos para fazer residência em determinados hospitais", cita ela, que, ao contrário, vislumbra no anúncio mais uma forma de exploração de força de trabalho barata. "Por isso que o Consed e a Undime estão achando bom: ter alguém que vai atuar como professor, mas não vai receber nem ter os direitos trabalhistas de um professor efetivo. É mais uma hiperexploração da mão de obra num momento de desemprego, de ausência de concursos públicos".

É também a opinião de Luiz Carlos de Freitas: "Estes alunos irão parar nas salas de aulas com distintas responsabilidades, sendo que aos desejos oficiais se somarão outros ditados pela dura realidade diária das escolas. Não estaremos precarizando, na prática, o quadro de professores das escolas? Quem irá orientar e supervisionar estes estudantes de graduação nas escolas? Com que escala é possível fazer isso?", questionou o pesquisador em seu blog. E concluiu: "Estamos longe do conceito de residência médica e mais perto da improvisação de mão de obra barata para as escolas".
Segundo o MEC, a Residência Pedagógica faz parte da "modernização" do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). "Eles estão condenando o modelo que dá certo: o das universidades públicas. Nós fazemos uma sólida formação teórica e uma vinculação na relação teoria/prática também forte. Eles estão atacando o Pibid, que é uma experiência exitosa que articula a prática na formação do estudante. Todos os estudantes que tiveram a oportunidade de participar do programa demonstram que conheceram a dimensão prática e teórica. Não é isso o que a Política está propondo", afirma Lucilia.

Mais base e itinerário

Também foi anunciada a criação de uma Base Nacional de Formação Docente.  Definida como "pilar central" da nova Política pela secretária-executiva do MEC, a base deve começar a ser discutida por estados, municípios, instituições formadoras e Conselho Nacional de Educação (CNE) e entrar em consulta no início de 2018.
"Nós já temos as diretrizes nacionais de formação de professores. Não precisamos de outra base", pontua Lucilia, que teme a influência das fundações privadas da educação na elaboração do documento.

O MEC também anunciou a criação de um itinerário específico para a formação de professores no novo ensino médio. A reforma, instituída pela lei 3.415 aprovada ano passado, prevê que 1,8 mil horas sejam dedicadas a conteúdos da BNCC e 600 horas à chamada parte flexível, em que o aluno deve optar por um itinerário formativo. Com o itinerário da educação, o Ministério quer, nas palavras de Maria Helena, estimular "o aluno, desde o ensino médio, a se desenvolver intelectualmente, academicamente e profissionalmente para que se interesse por um curso de graduação e para que no futuro seja um bom professor".

Acontece que a formação de nível médio em educação para o exercício da docência na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental já existe, esclarece a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marise Ramos. Embora a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação tenha estabelecido que em 2006 todos os professores brasileiros deveriam ter ensino superior, os órgãos responsáveis pela regulamentação da norma tiveram que voltar atrás frente à realidade.

"Assim que o Conselho Nacional de Educação começou a disciplinar a lei, acabou com os chamados 'cursos normais', remetendo a formação de professores para o ensino superior. Isso gerou uma crise em muitos estados e municípios por falta de professor. Houve uma grande discussão e, em 2003, o CNE readmitiu a formação no ensino médio como medida emergencial. Era melhor ter professor só com ensino médio do que professor nenhum", relembra Marise, acrescentando que ficou sob responsabilidade dos estados a garantia de oferta do ensino superior para os docentes em exercício.

Por isso, a princípio, não teria por que o MEC criar um novo itinerário específico para educação. "Com a lei do novo ensino médio, os sistemas de ensino podem oferecer as diversas habilitações, inclusive a formação de professores, no itinerário da educação profissional", explica. O anúncio, porém, permite três especulações.

A primeira delas diz respeito às parcerias que os sistemas de ensino podem estabelecer no novo ensino médio. "Se para uma formação industrial, o Senai será parceiro do sistema de ensino, na formação de professores, o parceiro poder ser a Fundação Bradesco, o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Unibanco ou um conglomerado privado, como o Kroton. Seria uma tragédia completa", lamenta a pesquisadora.

Por outro lado, elenca Marise, a criação do itinerário específico poderia servir justamente para 'salvar' a formação de professores desta lógica. "O itinerário pode seguir a mesma lógica de flexibilidade, parceria e notório saber ou pode não se submeter. Nessa linha de raciocínio, esse itinerário teria sua especificidade porque precisaria estar abrigado pelo sistema de ensino numa formação de caráter escolar e regularmente ministrada por professores. É uma hipótese positiva, do tipo, levar os anéis para salvar os dedos", brinca.

Tudo articulado

Mas há ainda uma terceira hipótese, aposta principal tanto de Marise Ramos quanto de Lucilia Lino de Paula, que resgata o denominador comum de todas as medidas do governo Temer na educação. Assim, BNCC, novo ensino médio, Base Nacional de Formação Docente e itinerário para o nível médio estariam inseridos em uma mesma concepção, com sabor de déjà vu.

"A reforma do ensino médio prevê que a formação dos professores terá como referência a BNCC. E a BNCC só dispõe sobre a formação geral, não aborda a educação profissional, que continua regulada pelas diretrizes nacionais curriculares técnicas de nível médio. Se o professor tem que ter a sua formação coerente com a BNCC, essa formação, inclusive no ensino médio, precisaria ser gerida pela BNCC e não pelas diretrizes. E aí faz sentido um itinerário específico porque toda a regulação da formação de professores seria própria, dada pela Base Nacional de Formação Docente, não seria abarcada pela regulação da educação profissional", detalha Marise.

"Está tudo articulado: a reforma do ensino médio por medida provisória, a BNCC e essa nova Política”, diz Lucilia. E critica: "O que está por trás é o desmonte de políticas que estavam sendo implementadas, que tinham muito mais chance de ter sucesso a médio e longo prazo, e estão sendo liquidadas para que se coloque no lugar o velho apresentado como novo. São as propostas dos anos 1990, quando Maria Helena Guimarães era secretária-executiva do MEC na gestão Paulo Renato [ministro da Educação de FHC]. A reedição dessas medidas com uma nova roupagem visa enfraquecer o professor, dando uma formação esvaziada que não dá conta da nossa realidade tão diversa – e adversa".

Para a professora-pesquisadora da EPSJV, contudo, a melhor definição para o que acontece no MEC não é desmonte, mas resgate de uma determinada concepção de sociedade, mercado e projeto nacional. "No Roda Viva [programa da TV Cultura] que entrevistou Mendonça Filho ainda no contexto da MP da reforma do ensino médio, Guiomar Namo de Melo [presidente do Conselho estadual de Educação de São Paulo] falou algo como 'finalmente vamos poder resgatar o que era efetivamente o projeto de educação necessária para o Brasil e que foi interrompido'. Segundo eles, várias medidas do governo Lula, como a volta da possibilidade do ensino médio integrado à educação profissional, o trabalho como princípio educativo, a perspectiva da politecnia; tudo isso representou um atraso de 18 anos. Existe uma coerência cristalina nesse projeto", argumenta ela, para quem a coesão se dá pelos referenciais filosóficos, políticos, éticos e econômicos do grupo novamente no poder. "É concepção filosófica, uma epistemologia centrada na prática, no resultado, na utilidade dos saberes. Trata-se de uma pedagogia que conjuga no campo filosófico o pensamento pós-moderno e no político-econômico o neoliberalismo, o que é completamente coerente com o que está acontecendo no país hoje. A cada tipo de sociedade, corresponde um tipo de pensamento educacional", conclui.

Comentários

Muito boa a análise. Seria interessante saber qual o papel das universidades, das instituições que historicamente formam professores, mesmo nas maiores dificuldades.

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