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Saúde da população LGBT

Preconceito e desconhecimento nos serviços de saúde estão os principais desafios para um atendimento com equidade
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 16/12/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Se a população de uma forma geral encontra dificuldades em ter garantido um atendimento em saúde equitativo e integral, uma parcela dos brasileiros, constituída por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), além das dificuldades correntes, sofrem ainda constrangimentos diversos e outros tipos de problemas para que suas demandas específicas sejam atendidas. Segundo o Ministério da Saúde, essa desigualdade na garantia do direito à saúde, contrária às diretrizes do SUS, é justamente a motivação  da publicação da portaria 2.836 , de 1º de dezembro de 2011, que institui, no âmbito do SUS, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Mas como fazer para que a política saia do papel e garanta o direito à saúde dessa parcela da população?

"Uma das queixas das lésbicas, por exemplo, é de que quando chegam aos consultórios são tratadas como se fossem heterossexuais. Quando declaram a orientação sexual, passam a ser tratadas com preconceito, com discriminação. Os exames preventivos são descartados, como se toda a necessidade de prevenção estivesse associada a uma prática heterossexual,  e isso é um grande mito. Felizmente não é a totalidade dos profissionais que agem assim", exemplifica Lurdinha Rodrigues, membro da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e representante do seguimento LGBT no Conselho Nacional de Saúde. De acordo com ela, este é apenas um exemplo de situações de constrangimento recorrentes. Ela cita outro: a dificuldade de ser reconhecido o direito das travestis em usarem o seu nome social. Segundo a conselheira, ao entrarem em uma emergência, por exemplo, as travestis informam seu nome social mas, quando são chamadas para o atendimento, é falado o nome que consta em seu registro civil, completamente incompatível com sua vestimenta e sua forma de agir. "Já existe uma portaria de 2009 que garante a utilização do nome social, só que muitos serviços de saúde não fazem isso, não tem os prontuários ajustados para que tenham lá o campo do nome social. E isso é muito constrangedor. As pessoas precisam ter o direito de se apresentarem como são", comenta.

A portaria 2.836 define os objetivos e diretrizes da Política, bem como as competências das esferas governamentais na condução das ações. Segundo o documento, a Política tem o objetivo geral de "promover a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo". Entre os objetivos específicos está, por exemplo, a garantia de uso do nome social de travestis e transexuais, assim como já determina a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, a prevenção de novos casos de cânceres ginecológicos (cérvico uterino e de mamas) entre lésbicas e mulheres bissexuais e também de novos casos de câncer de próstata entre gays, homens bissexuais, travestis e transexuais, bem como ampliar o acesso aos tratamentos dessas doenças. A política fala também na eliminação do preconceito contra a população LGBT, incluindo o tema na formação permanente de gestores, profissionais de saúde e membros dos conselhos de saúde.

Daniele de Moraes, médica e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), considera que a política é um ganho e lembra que ela não caiu de paraquedas. "Essa política é fruto de muita pancada que o movimento social tomou ao longo de muitos anos de luta. É uma política que afirma o que não existe dentro da saúde e entra, via saúde, para afirmar a necessidade de políticas intersetoriais para essa população", diz.

Para Lurdinha, há dois principais desafios na garantia da saúde integral à população LGBT. "Por um lado, é preciso combater e enfrentar a discriminação e o preconceito no atendimento à saúde dessa população. Nesse sentido, é necessário investir fortemente em ações de educação permanente em saúde da população LGBT, visando ao acesso sem discriminação e sem preconceito. Por outro lado, também é uma grande prioridade investir, de fato, em tecnologias e pesquisas para o atendimento das necessidades de parte dessa população que passa, por exemplo, por processos de adequação do corpo físico às identidades de gênero, como travestis e transexuais". Ela explica que a Política Nacional de Saúde Integral LGBT lançada agora pelo Ministério da Saúde nasceu no Conselho Nacional de Saúde (CNS), como fruto do trabalho da comissão intersetorial de saúde LGBT do CNS, posteriormente referendado por todo o Conselho.

Julia Rolland, diretora do Departamento de apoio à gestão participativa da Secretaria de gestão estratégica e participativa do Ministério da Saúde, diz que a aprovação da política é importante, sobretudo, por ter sido pactuada com os secretários municipais e estaduais de saúde no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). "Isso vai permitir que se tenha uma ação mais global e mais sistêmica dentro do SUS. Para nós o problema central e fundamental é o enfrentamento do preconceito, que existe na sociedade e também o preconceito institucional", diz. Para ela, a política pode permitir ações concretas como a inserção dos quesitos orientação sexual e identidade de gênero para qualificar a informação em saúde. "A formalização da política vai contribuir para isso. Essas medidas já eram adotadas pelo Ministério, mas com uma implantação muito falha, com isso conseguiremos que se tornem mais efetivas", avalia.

Junto à Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT também foi publicada outra portaria - a de número 2.837/2011 - que redefine o Comitê Técnico responsável por acompanhar e monitorar a implantação da Política, bem como apresentar subsídios técnicos e políticos para apoiar essa implementação. Compõem o comitê técnico 25 integrantes, entre eles estão representantes das secretarias do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), do Conselho Nacional de Saúde, além de outras secretariais do governo e de sete representantes da sociedade civil de "notório saber".

Dificuldades de mensurar o preconceito

Um dos objetivos específicos da Política, segundo a portaria, é "qualificar a informação em saúde no que tange à coleta, ao processamento e à análise dos dados específicos sobre a saúde da população LGBT, incluindo os recortes étnico-racial e territorial". Júlia Rolland comenta que é fundamental garantir que as pessoas informem a orientação sexual e a identidade de gênero nos serviços de saúde para que seja feito um mapeamento do atendimento e das necessidades de saúde da população LGBT.  "Existem alguns dados, mas ainda não são suficientes para fornecerem um diagnóstico mais objetivo da realidade de saúde dessa população", diz.

Para Lurdinha, há muitas evidências das dificuldades que essa população enfrenta no SUS, mas de fato há poucas pesquisas sobre o tema. "Até hoje não temos nenhuma pesquisa de abrangência nacional que traga essas evidências, para que possamos conhecer mais a realidade de atendimento e necessidades dessa população", diz.  De acordo com Lurdinha, há pesquisas desenvolvidas em alguns estados e com foco em parte da população LGBT. Um desses exemplos é a pesquisa ‘Mulheres que fazem sexo com mulheres - As faces da homofobia no campo da saúde', desenvolvida pelas pesquisadoras Daniela Knauth e Nádia Meinerz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também com o auxílio de Claudete Costa, da Liga Brasileira de Lésbicas e Leila Lopes, do Coletivo Nacional de Lésbicas Negras Feministas Autônoma (Candace). Realizada entre março de 2008 e maio de 2009, a pesquisa entrevistou médicos e mulheres lésbicas na cidade de Porto Alegre. Os médicos entrevistados consideraram, por exemplo, a formação acadêmica que receberam como "insuficiente" e "pouco científica" para abordar a temática da sexualidade. As entrevistas mostraram também que persiste no imaginário médico a ideia de que a homossexualidade é uma doença e que deve ter origem genética ou hormonal, embora eles tenham um discurso de "não discriminação". A pesquisa mostrou ainda que os médicos não compreendem ou conhecem pouco as diferenças entre as expressões da diversidade sexual e de gênero, tendo dificuldades para diferenciar homossexuais, travestis e transexuais. Do lado das pacientes, a pesquisa revelou que as mulheres têm muita dificuldade em falar sobre o assunto e que aquelas mais masculinizadas, por exemplo, estão ainda mais afastadas dos serviços de saúde. "Uma entrevistada conta que foi atendida de porta aberta, por causa do seu jeitão masculino. Depois de aguardar na fila vendo todas as pessoas sendo examinadas com a porta fechada, a médica mantém a porta aberta para o atendimento e ainda chama um guarda que fica no corredor de espera", relata a pesquisa. Entre as 35 mulheres entrevistadas, sete delas nunca tinham ido ao ginecologista.

Daniele de Moraes conta que muitas vezes as pessoas que não se sentem bem acolhidas nos serviços de saúde têm como estratégia procurar determinado profissional com o qual se sentem mais à vontade. Ele considera que existe uma violência institucional contra a população LGBT. "Há muita discriminação. Ouvi muito das minhas amigas do movimento lésbico o quanto os ginecologistas tinham dificuldades de ouvir e de entender, por exemplo, o desejo da maternidade. Existe uma noção de desvio muito presente na saúde. Além de esse aspecto estar presente na cultura, a prática da saúde pública é muito moralizante. Então, esse ser já entra nos serviço de saúde como desviante e patologizado", observa. E exemplifica: "Eu ainda era estudante de medicina e me lembro de um caso de uma travesti que deu
entrada no UTI que tinha se injetado silicone líquido. Como não tem espaço no serviço de saúde para modificar o corpo, essas pessoas usam seus próprios métodos. Não estou dizendo que isto é sensacional, mas é uma prática que existe e se a saúde não olhar para ela, não reconhecer, ela continuará sem o cuidado. Aí a travesti teve uma embolia [interrupção do fluxo do sangue] descomunal, porque a substância entrou na corrente sanguínea. E o discurso dos médicos, técnicos de enfermagem e enfermeiros era assim: ‘bem feito'".

Por trabalhar com pessoas com orientações sexuais diferentes da heterossexual e inclusive desenvolver uma militância junto aos movimentos LGBT na prevenção da Aids, a médica conta que foi tida e discriminada como homossexual dentro do próprio serviço de saúde. "A prevenção da Aids com mulheres chegou bem mais tarde. Eu questionava a necessidade dessa prevenção com as mulheres lésbicas e bissexuais. Aí me diziam: ‘ué, mas para que campanha se não existe penetração?' Aí eu respondi: ‘mas quem disse que não tem penetração?'. Isso foi o suficiente para eu virar lésbica. E na época eu já namorava o meu marido, mas as pessoas achavam que ele era decorativo. Eu já fui chamada de caminhoneira diversas vezes", relata.

Demandas

Lurdinha alerta que o chamado ‘universo LGBT' tem em comum o enfrentamento à discriminação e ao preconceito, mas que é preciso olhar com atenção para a diversidade presente dentro da população LGBT. "É preciso pensar de forma particular essas demandas, que variam para lésbicas, gays, travestis, bissexuais e transexuais. Por exemplo, hormonioterapia é uma demanda muito forte entre as travestis. O processo de transexualização é uma demanda prioritária dos e das transexuais. A prevenção do câncer de próstata e outros cânceres mais comuns em homens são prioritárias para a população gay, assim como as ações de prevenção em relação às DST em geral e particularmente o HIV. No caso das lésbicas, há demandas fortes de todas as mulheres de prevenção ao câncer de colo de útero, câncer de mama, as DSTs como o HPV, as hepatites", pontua.

Para Daniele, as demandas LGBT têm que ser desveladas, mas a professora alerta também para o risco de se vitimizar essas pessoas. "Quando pensamos em inclusão, temos que pensar em demandas, mas essas demandas não são exatamente especificidades, são as formas de estar no mundo das pessoas. Porque entre esse pensamento de que é uma especificidade e a medicalização, a moralização e a vitimização dentro do serviço de saúde existe uma linha muito tênue", fala. E completa: "O importante é entender o sujeito com uma identidade de gênero que é dele. E os gêneros são múltiplos. O problema é que sexo é tabu e os papéis de gênero que não se enquadram na questão tradicional binária também se constituem um tabu".

Júlia Rolland considera o combate ao preconceito presente nos serviços de saúde como uma questão complexa e difícil, e reforça que está fortemente presente na política a educação dos profissionais nesse tema. "Temos que investir na capacitação permanente dos profissionais de saúde, fazer campanhas, no sentido de mostrar a diversidade da população, mostrar que independentemente de raça, cor, gênero, orientação sexual, essa população tem que ser respeitada e bem acolhida dentro do SUS. Esse tem que ser um processo
permanente, temos que popularizar o debate dessas questões para que seja encarado de forma mais natural", destaca.

Recursos

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais recém oficializada pelo Ministério da Saúde, no entanto, não tem previsão orçamentária. Julia Rolland explica: "Como é uma política transversal, nós temos que trabalhar esses conceitos na atenção básica, na atenção especializada, na promoção da saúde. No Plano Nacional de Saúde que o Ministério da Saúde discutiu e o Conselho Nacional de Saúde aprovou para os próximos quatro anos já estava prevista a formalização dessa política. Então,
não precisa de um recurso extra, mas vamos inserir essas questões dentro da própria programação do SUS porque ela não é uma política verticalizada, mas sim que tem que ser transversal em todo Sistema", responde. De acordo com a coordenadora, no próximo ano, o MS investirá, sobretudo, na criação de instâncias de promoção de equidade nas secretarias de saúde e no fortalecimento desses espaços onde eles já existem. "Isso é fundamental para ter um processo de capilarização da política para os estados e municípios. Nossa prioridade
será essa e também constituir comitês técnicos, tanto da saúde LGBT, quanto da população negra, como também das populações do campo e florestas. Estamos querendo investir na gestão, constituindo esses comitês técnicos nos estados, capitais e cidades maiores porque sem isso fica difícil garantir que a política seja implementada", diz.

No artigo Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade, publicada na Revista Latinoamericana Sexualidad, Salud y Sociedade, os autores Luiz Mello, Marcelo Perilo, Camilo Albuquerque de Braz e Cláudio Pedrosa falam sobre as dificuldades para implementação das políticas que não têm orçamento. "Considerando a escassez - ou mesmo ausência - de previsão orçamentária para as medidas indicadas no Programa Brasil sem Homofobia, no Plano Nacional LGBT e mesmo no PNDH III [3º Plano Nacional de Direitos Humanos], as propostas de combate à homofobia e de promoção da cidadania LGBT, inclusive no âmbito da saúde, configuram-se até o momento como um conjunto de boas intenções, difícil, porém,
de ser implementado de maneira mais substantiva a curto ou médio prazo", concluíram os pesquisadores.

Daniele Moraes novamente alerta, no entanto, para a desigualdade de condições de "competição" por recursos entre as políticas LGBT e outras políticas de saúde. "As políticas para a população LGBT ainda são tidas como confete. Por exemplo, para as ações de educação permanente serão necessárias cartilhas, e como haverá dinheiro para isso? O recurso terá que ser disputado com outras ações. Se tiver uma epidemia, por exemplo, isso fica por último", questiona.

Comentários

Boa noite, sou universitária e estou cursando meu último semestre do curso de Administração. Estou fazendo meu trabalho de conclusão de curso com o tema: Gestão em saúde: Um Estudo Sobre a Política Nacional de saúde LGBT no cenário Brasileiro. Gostaria de pedir artigos para compor o meu trabalho, pude ver que você é uma referência no assunto. Abaixo segue a minha primeira estrutura, se você achar que preciso mudar alguma coisa, fica a vontade de opinar. Sua ajuda é muito importante para o meu trabalho. Meus tópicos iniciais seriam esses: Introdução 1- Referencial teórico 1.1 Contextualização a Política de saúde pública LGBT 1.2 A gestão do cuidado com a saúde da população LGBT 1.3 Os serviços de saúde, preconceito e descaso com a população LGBT 2- Metodologia Pesquisa Minha intenção seria fazer um questionário com 5 perguntas e que você pudesse me ajudar a responder. Fico no aguardo. Tenha uma boa noite e uma ótima semana.

Excelentes colocações. Sou enfermeira e especializando em gênero, sexualidade e direitos humanos da ENSP. E meu estudo fala da desconstrução de lentes críticos na inserção da política LGBT no ensino de enfermagem, minimizando as lacunas no cuidado. Gostaria de saber se possui algum grupo de pesquisa. Desde já agradeço:

Boa tarde! Gostaria de receber mais trabalhos que tratem do tema políticas de saúde LGBTI.