Vistoria de residências, depósitos, terrenos baldios e estabelecimentos comerciais para buscar focos endêmicos. Inspeção cuidadosa de caixas d’água, calhas e telhados. Aplicação de larvicidas e inseticidas. Orientações quanto à prevenção e tratamento de doenças infecciosas. Recenseamento de animais. Essas atividades são fundamentais para prevenir e controlar doenças como dengue, chagas, leishmaniose e malária e fazem parte das atribuições do agente de combate de endemias (ACE), um trabalhador de nível médio que teve suas atividades regulamentadas em 2006, mas que ainda tem muito o que conquistar, especialmente no que diz respeito à formação.
Assim como os agentes comunitários de saúde (ACS), os ACEs trabalham em contato direto com a população e, para o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Gerson Penna, esse é um dos fatores mais importantes para garantir o sucesso do trabalho. “A dengue, por exemplo, representa um grande desafio para gestores e profissionais de saúde. E sabemos que um componente importante é o envolvimento da comunidade no controle do mosquito transmissor. Tanto o ACS como o ACE, trabalhando diretamente com a comunidade, são atores importantes para a obtenção de resultados positivos”, observa.
O ACE é um profissional fundamental para o contole de endemias e deve trabalhar de forma integrada às equipes de atenção básica na Estratégia Saúde da Família, participando das reuniões e trabalhando sempre em parceria com o ACS. “Além disso, o agente de endemias pode contribuir para promover uma integração entre as vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental . Como está em contato permanente com a comunidade onde trabalha, ele conhece os principais problemas da região e pode envolver a população na busca da solução dessas questões”, acredita o secretário.
Precarização
Durante muito tempo, as ações de controle de endemias foram centralizadas pela esfera federal, que, desde os anos 70, era responsável pelos chamados ‘agentes de saúde pública’. Mas, seguindo um dos princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1999 as ações de vigilância passaram a ser descentralizadas e hoje o município é o principal responsável por elas. O problema é que boa parte dos agentes ficou precarizada, sem um piso salarial comum e trabalhando por contratos temporários.
Apenas em 2006 foi publicada a lei 11.350 , que descreve e regulamenta o trabalho dos ACEs e ACS. O texto diz que o trabalho dos agentes deve se dar exclusivamente no âmbito do SUS, que a contratação temporária ou terceirizada não é permitida (a não ser em caso de surtos endêmicos) e que deve ser feita por meio de seleção pública – alguns municípios já vêm realizando seleções. A lei diz ainda que um dos requisitos para o exercício da atividade do agente de endemias é ter concluído um curso introdutório de formação inicial e continuada. E aí surge um problema: se, por um lado, a qualificação é requisito para exercer esse trabalho, por outro, apenas alguns estados oferecem cursos de formação para esses profissionais. “Ainda não existe um padrão definido nacionalmente. É nessa proposta que stamos trabalhando”, explica Gerson Penna.
O secretário se refere a um processo coordenado pelo Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/ SGTES/MS), com participação da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), da EPSJV/Fiocruz e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que pretende estabelecer referenciais curriculares para orientarem as escolas técnicas na elaboração de seus cursos, além de resolver uma outra questão: a definição do perfil de competências dos profissionais de nível médio. Isso porque o ACE é, na prática, responsável pelas atividades descritas no início deste texto, mas essas atribuições ainda não estão formalmente delimitadas. “As atribuições dependem do perfil epidemiológico da localidade onde os agentes trabalham e da organização dos serviços de saúde, pois o gestor municipal é soberano na definição de suas prioridades. Mas sabemos da necessidade de definir mais claramente os papéis de cada profissional quando pensamos o trabalho em equipe, e estamos empenhados nesse sentido”, explica Penna.
Os ACS já têm suas ações estabelecidas pela Política Nacional de Atenção Básica e, segundo Carlos Eduardo Batistella, pesquisador da EPSJV, a definição das competências dos agentes de endemias é importante para que eles também venham a ter uma identidade mais forte. “Se compararmos os agentes de endemia aos agentes comunitários de saúde, creio que, apesar de todos os enfrentamentos, os ACS se veem com mais clareza como uma categoria profissional”, diz.
Quanto à formação, a ideia que está se configurando é a de oferecer não apenas uma qualificação inicial, mas um curso técnico em vigilância. De acordo com Gerson Penna, uma formação ampla certamente atenderia de forma mais integral às necessidades da comunidade. “Quando falamos de endemias , muitos são os fatores que determinam esse problema ou interferem nele: há questões ambientais, sociais, culturais e econômicas, entre outras. Uma formação mais ampla torna possível compreender os problemas e realizar o iagnóstico com clareza, identificando seus determinantes e optando por ações mais eficazes, numa abordagem integral”, opina.
Um pouco de história
Quando as ações de vigilância foram descentralizadas, em 1999, coube à Funasa capacitar e ceder aos estados e municípios seus 26 mil agentes, conhecidos como guardas sanitários, supervisores, guardas de endemias ou matamosquitos. “O trabalho deles era caracterizado por uma atuação quase especificamente em uma doença: havia os guardas da malária, os guardas da dengue, os guardas da esquistossomose e assim por diante. Esses profissionais conheciam bem uma ou duas doenças, e sua formação era basicamente instrumental, ou seja, dissociada de qualquer base científica maior ou de conteúdos de formação mais
ampla. A formação estava absolutamente restrita ao conteúdo técnico para o controle daquela determinada doença, de modo que eram feitos treinamentos de curta duração, respaldados por guias ou cartilhas elaborados dentro da própria Funasa”, diz Batistella.
Para dar conta de um processo formativo voltado para esses trabalhadores, surgiu o Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância em Saúde (Proformar ), através de um convênio entre a EPSJV, a Funasa e, mais tarde, a SGTES. O programa ofereceu cursos de formação inicial entre 2003 e 2006, com o objetivo de fazer com que os agentes atuassem mais articuladamente com a própria realidade. “A ideia era levar os alunos a realizarem um trabalho de campo nas áreas em que já atuavam, fazendo um diagnóstico das condições de vida e saúde da população, identificando situações de risco, potencialidades e vulnerabilidades do local”, explica Batistella, que coordenou o programa.
Para estruturar o curso, teve início em 2001 uma série de oficinas em todos os estados brasileiros, elaborando diagnósticos e estudando o tipo de formação mais apropriado para atingir os trabalhadores da Funasa. “Mas, à medida em que realizamos as oficinas, nos deparamos com a seguinte realidade: além dos profissionais estimados, já havia outros milhares contratados pelos municípios e pelas secretarias estaduais. Em 2001, em vez de 26 mil, havia 85 mil trabalhadores a serem formados”, diz Batistella. Em quase três anos o Proformar qualificou 32 mil trabalhadores.
Próximos passos
De acordo com Batistella, o Proformar poderia ser encarado como uma qualificação inicial – um primeiro módulo comum a todo o país – para um curso técnico em vigilância em saúde. “Nosso curso não aprofundava nenhuma prática específica da vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental ou da saúde do trabalhador, mas dava um conhecimento comum do SUS e da área de vigilância. Assim, como já tinha expressão em todo o país, poderia ser concebido como módulo introdutório em um itinerário formativo”, afirma, explicando que essa ideia acabou não se tornando uma diretriz nacional. “Os trabalhadores têm reivindicado a continuidade da formação, inclusive devido à obrigatoriedade estabelecida pela lei 11.350. Os agentes que já atuam no SUS e aqueles que passaram nos processos de seleção querem ter seus certificados, e outras pessoas querem ter a formação justamente para participarem do processo seletivo”, ressalta Batistella.
Desde que o programa terminou, o MS começou a organizar o processo de construção de um itinerário formativo semelhante ao realizado para ACS e técnicos em higiene dental (THD). É justamente esse o processo que está em curso na SGTES, para definir o tipo de curso que se deseja oferecer e o profissional que se quer formar. E o primeiro passo desse processo foi uma pesquisa relativa às atribuições dos trabalhadores de nível médio nas áreas de vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e de saúde do trabalhador, para verificar se havia perfis nítidos ou se as áreas se sobrepunham. A análise das entrevistas mostrou que, em muitos municípios, trabalhadores vinculados à vigilância atuavam em mais de uma área. “Isso foi registrado, em geral, nos municípios pequenos, que são a maioria no país. Neles, há uma espécie de atuação complexa. Enquanto isso, nos municípios de médio e grande porte e, em especial, nas capitais, a diferenciação
nas ações é muito maior. Há uma certa especialização e os profissionais atuam com identidade forte em apenas uma das vigilâncias”, diz Batistella. “Assim, percebeu-se que a variação nas atividades está bastante vinculada ao tamanho e à capacidade de organização dos municípios para o desenvolvimento dessas práticas”, completa.
De acordo com Batistella, até o momento as questões levantadas ao longo desse processo, seja pelos trabalhadores seja pelas instituições formadoras, apontam para a necessidade de uma formação técnica integrada, envolvendo trabalhadores de todas as vigilâncias em uma formação ampla. A ideia é que, após as definições do MS, as escolas desenvolvam suas propostas de curso para apresentarem nos conselhos estaduais, à luz do perfil de competências e dos referenciais estabelecidos. “Hoje, algumas escolas já estão se movimentando para organizar essas propostas, que depois só vão precisar ser revisadas pelos referenciais. Como oferecemos na EPSJV o curso técnico de vigilância em saúde, recebemos em 2008 mais de dez escolas que pediram assessoria para construção curricular. Fizemos uma oficina de trabalho, procurando auxiliar as escolas na busca de referenciais teóricos e metodológicos para a estruturação de suas propostas”, conta Batistella, lembrando que, quando o referencial nacional estiver pronto, todas as Escolas deverão tê-lo como base.
Raquel Torres
*Texto publicado na Revista Poli – saúde, educação e trabalho nº 3 , de janeiro/fevereiro de 2009.