Nos anos 1970, quando o Brasil, por falta de tecnologia própria, importou uma série de equipamentos hospitalares, faltou adquirir uma coisa: o conhecimento sobre a manutenção dos itens comprados. “Por isso, dez anos depois, nos anos 1980, a situação era catastrófica: o parque público já estava completamente sucateado”. A afirmação é de Francisco Bueno, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). De acordo com ele, o problema foi fruto de uma posição dos próprios fabricantes, que buscaram provocar uma obsolescência precoce do material. “Os produtos duravam muito. Se fossem bem mantidos, a necessidade de reposição só se daria depois de muito tempo. A maneira encontrada pelos fabricantes para conseguirem vender mais equipamentos foi não passar informações sobre as técnicas de manutenção. Dessa forma, eles precisariam ser substituídos mais rapidamente”, explica.
Para contornar esse problema, em meados dos anos 1980 entidades como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e os ministérios da Educação e da Saúde (MEC e MS) começaram a pensar as primeiras políticas públicas do país em relação à manutenção de equipamentos médico-hospitalares. Na mesma década, foram criados centros de manutenção de equipamentos em que trabalhavam tanto engenheiros quanto técnicos – mas ainda não havia técnicos específicos para os equipamentos biomédicos: eram, por exemplo, profissionais formados em eletrônica. “Havia duas grandes oficinas especializadas, uma no Rio de Janeiro e outra no Distrito Federal, que resolviam os problemas mais complexos de manutenção. Mas havia também oficinas locais, nos próprios hospitais, responsáveis pelos menos complicados. Assim, a terceirização era mínima e os recursos financeiros circulavam dentro do próprio sistema público, sem financiarem o privado”, conta o professor.
Isso acabou nos anos 1990, quando os recursos que financiavam as oficinas foram retirados. “Nessa época, o Brasil gastava cerca de 500 milhões de dólares por ano com a terceirização da manutenção de equipamentos nos serviços públicos”, conta Alfreu Peres Lopes, coordenador do Curso Técnico em Equipamentos Biomédicos do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). “A solução levantada pelo Ministério da Saúde era a de criar um curso para formar técnicos para a manutenção de equipamentos, com o objetivo de evitar esse desperdício na área”, diz Alfreu. De acordo com ele, o Cefet-MG foi procurado em 1994 pelo Ministério da Saúde para montar o curso – e, ainda hoje, é a única escola pública que oferece a habilitação integrada ao ensino médio.
Atuação dos técnicos
No processo de trabalho, esses profissionais atuam sob a supervisão do engenheiro. De acordo com o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), que, com os conselhos regionais, registra e fiscaliza esses profissionais, a lei que rege suas atividades é a 5.524/68 — que dispõe sobre o exercício da profissão de técnico industrial de nível médio — que, em 1985, foi regulamentada pelo decreto 90.922.
Quanto à área de atuação, segundo o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT), o técnico tem como opções os hospitais, clínicas e postos de saúde, indústrias e empresas de manutenção hospitalar, comércio e instituições de pesquisa.
O técnico para o Brasil
Ainda segundo o Catálogo, o técnico é responsável por planejar e executar a instalação de equipamentos biomédicos, executar montagem, medições e testes em equipamentos biomédicos, realizar a manutenção preventiva, preditiva e corretiva de equipamentos médico-hospitalares e atuar na administração e comercialização de equipamentos biomédicos.
Segundo Francisco Bueno, existem, basicamente, dois tipos de profissionais nessa área: o mais generalista e o mais especializado. “De regra geral, os profissionais que trabalham em unidades de saúde devem possuir uma competência mais generalista e serem capazes de atender as mais variadas formas de demandas surgidas em seu dia a dia. A necessidade, nesse caso, é de solucionar rapidamente problemas de complexidade média e baixa, característicos das unidades ambulatoriais e laboratórios, que são fortemente demandados pela atenção básica”, explica. Mas para esse profissional, que Francisco acredita ser um bom perfil para o setor público, há muito pouco investimento na formação. O profissional especializado para lidar com altas tecnologias, ao contrário, recebem capacitação do setor privado, financiado pelos fabricantes e representantes dessas tecnologias. Resultado: “Problemas de alta complexidade geralmente são contratados no mercado e problemas do dia a dia que podem interferir no atendimento são resolvidos localmente”, conclui Francisco.
Segundo o professor, mesmo com essa ‘divisão de tarefas’, as empresas acabam abocanhando também boa parte da conservação dos aparelhos das unidades em saúde que, em tese, deveria ser realizada pelo setor público. “As empresas privadas apresentam serviços de níveis local, com baixos investimentos em capacitação, e instalam seus serviços nas unidades públicas cobrando custos exorbitantes. Agrava mais o fato de que, pela falta de experiência em gerenciamento de contratos terceirizados, não existe, em geral, acompanhamento desses serviços para verificar se estão sendo cumpridos ou não”. Vice-diretora de ensino da EPSJV, instituição que tem vários cursos de formação inicial e continuada e de especialização técnica nessa área e planeja, para o ano que vem, criar uma habilitação técnica, Márcia Valéria Morosini concorda: “Um dos problemas na área diz respeito ao fato de que o planejamento da construção dos prédios para os serviços de saúde e a compra dos equipamentos para iniciar o seu funcionamento não tem tido seguimento num posterior plano de conservação, manutenção e substituição planejada dos equipamentos. Essa situação termina por gerar um processo de sucateamento mais acelerado desses equipamentos, alimentando a indústria que produz esses bens e que tende a se beneficiar da má gestão do parque tecnológico do sistema de saúde”, diz.
Formação
Quando ao direcionamento do curso, que se apropria de outras áreas da engenharia, da arquitetura e das tecnologias da informação, Francisco defende um currículo voltado para uma formação ampla, não só a respeito das atividades, mas também em relação ao local de trabalho e do público atendido. “Nos EUA, o técnico ou engenheiro biomédico é uma figura muito importante no processo de trabalho do hospital. Ele é quem libera o leito para o uso clínico, quem abastece o leito com equipamentos pré-detalhados e previamente ensaiados para não haver problemas de agravo (riscos a saúde e a segurança) de qualquer ordem. O que buscamos na nossa formação é o profissional que possa ter a visão mais generalista do ambiente hospitalar e orientar a autogestão das unidades nas questões de incorporação das tecnologias e de manutenção. A nossa realidade não permite que um profissional se sente na bancada oito horas por dia e fique esperando para consertar as coisas, descolado da realidade do Ambiente Hospitalar”, diz.
Irai Borges, outro professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz nessa área, também destaca a importância de uma visão ampliada, que leve em conta conhecimentos de arquitetura, instalações, equipamentos e saúde do trabalhador, norteados pelo conceito de gestão participativa. Para ele, a formação do técnico deve equilibrar tecnologia e humanização: “O profissional precisa compreender esse ambiente complexo, que é o hospital, para poder orientar aqueles que executam as manutenções. Porém também é essencial a discussão sobre as relações do trabalho”, diz o professor.
Segundo Alfreu, o Cefet-MG não forma somente para o Sistema Único de Saúde (SUS),. Ele explica ainda que o aluno não é orientado para trabalhar apenas dentro do hospital. “O aluno é formado para trabalhar com equipamentos biomédicos. Porém, como esse tipo de equipamento ainda está, em sua maioria, nos hospitais, é neles que esse técnico tem mais possibilidades de ingressar. Por isso, existem disciplinas voltadas para o hospital como um todo”.
Para Márcia Valéria, o mais importante é formar trabalhadores que possam atuar no SUS, com capacidade de participar desde o planejamento, até a compra, uso e manutenção desses equipamentos, tendo um papel importante na gestão dessa tecnologia nos serviços de saúde. “Dessa forma, esse profissional poderá contribuir para melhorar resultados no uso dessa tecnologia, especialmente, na garantia do acesso da população, otimizando também a utilização dos recursos públicos”, diz. Qual é, então, o perfil do profissional que a EPSJV quer formar? Francisco Bueno explica: “O que queremos com o novo curso é dar ênfase nas novas tecnologias de equipamento, nos materiais utilizados na construção civil, em segurança das instalações de saúde e a própria saúde do trabalhador. Diferente do técnico que passa pelo curso de eletrônica, eletrotécnica e mecânica, esse vai trabalhar mais na incorporação e adequação clínica das tecnologias e da manutenção segura dos equipamentos e instalações”, explica.