Para comemorar os 10 anos da Feira Agroecológica Josué de Castro: Sabores e Saberes, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) promoveram, no dia 6 de junho, o evento “Emergência climática: Agroecologia no enfrentamento da insegurança hídrica e alimentar”, que contou com debates, rodas de conversa, lançamento de publicações, espaços literários, ações ambientais, apresentações musicais, danças de quadrilha, entre outras atividades.
A mesa de abertura do evento contou com o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS), Hermano Castro; a diretora da Poli, Anamaria Corbo; o diretor da Ensp, Marco Menezes; o agrônomo, cofundador da Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT) e integrante da Associação dos Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (ABIO), Roberto Selig; e o militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Bruno Gustavo Geraldo; além da mediação da pesquisadora da Ensp, Flávia Guimarães, que coordena o projeto da Feira Agroecológica com a também pesquisadora da Ensp, Carolina Burle de Niemeyer, e com o professor-pesquisador da EPSJV, Alexandre Pessoa.
Saúde reprodutiva e a nocividade dos agrotóxicos
Na parte da tarde, aconteceu o lançamento da publicação “Saúde reprodutiva e a nocividade dos agrotóxicos”. O documento, fruto do trabalho e da pesquisa do Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), aprofunda o debate sobre os impactos do uso massivo de agrotóxicos na saúde pública.
Na mesa, a pesquisadora Karen Friedrich, do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, da Ensp/Fiocruz, ressaltou a importância de o evento trazer discussões, com apoio de instituições técnico-científicas da área da saúde e do meio ambiente, para garantir o enfrentamento dos problemas e das crises climáticas com propriedade. “Uma das faces mais invisíveis dos venenos são os efeitos sobre a saúde reprodutiva. A capacidade de reprodução e o fortalecimento daquela comunidade, da própria perpetuação de sua etnia, podem ficar comprometidos com o envenenamento dos nossos corpos. Temos poucos estudos sobre isso e, por isso, este momento é tão importante”, comentou.
Maria Eduarda Burchardt, do Projeto Pipa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentou alguns resultados sistematizados na publicação. Ela afirmou que, embora o Brasil seja um dos maiores consumidores, produtores e importadores de agrotóxicos do mundo, o país tem uma produção científica sobre o tema reduzida e há uma concentração das pesquisas na região Sudeste. “Ainda falta logística e uma estrutura melhor para que consigamos fazer coletas de amostras nos mais diversos territórios do país, principalmente nas populações mais expostas, como no Norte e Centro-Oeste. É uma área de expansão da fronteira agrícola, em que a população está muito exposta e que tem uma produção ínfima de investigação”, destacou.
Segundo Maria Eduarda, dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação apontam que ocorrem oito mil casos, por ano, de intoxicação aguda por agrotóxicos no Brasil. Em paralelo a isso, há ainda a dificuldade de quantificar os efeitos crônicos dos agrotóxicos. “Os efeitos a longo prazo são mais subnotificados ainda. Esse dado é só a ponta do iceberg”, lamentou, acrescentando: “Dentre os principais danos estão: infertilidade feminina e masculina; altas taxas de abortos espontâneos; partos prematuros e alterações hormonais que levam a aumento das taxas de câncer de mama. Temos esses dados na publicação para que fique claro e para que não caiemos no mito de que existe dose segura de veneno”.
Da crise ao colapso ambiental
Em seguida, teve início a roda de conversa “Rio Grande do Sul, da crise ao colapso ambiental: o papel do Estado e dos movimentos populares”. Para o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, Alexandre Pessoa, o caso do Rio Grande do Sul não é um casoisolado. “Não podemos interpretar esses eventos como uma sequência de colapsos. É um processo de crise ecológica que já chegou a um processo de colapso ecológico. O Rio Grande do Sul já estava sinalizando processos de desmonte do Estado. Isso tem nome: é neoliberalismo”, afirmou.
Segundo o professor-pesquisador, é preciso pensar na triangulação entre crise ecológica, emergência climática e crise estrutural do capital na perspectiva da Determinação Social da Saúde. "A ecologia está completamente fragilizada. Destruir corpos hídricos significa violentar os corpos humanos. Essa reflexão é fundamental”, ressaltou.
A participação dos movimentos sociais em eventos como esse também foi destacada por Alexandre: “Temos muito o que aprender. A Fiocruz não fica ‘encastelada’, a atuação é nos territórios. As parcerias com os movimentos sociais são para aprofundarmos a compreensão da realidade e é por isso que eles estão aqui”.
Ruth Rodrigues, representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), reafirmou: “A crise ambiental é a crise do capital. Quando o capital começa a perder o seu lucro, há exploração cada vez maior da natureza, seja nas queimadas, nos desmatamentos... Precisamos reforçar a importância da agricultura e da Reforma Agrária popular, que faz parte do projeto de país, modelo de produção de vida, que o MST apresenta, em contraposição ao Agronegócio, que acaba com toda natureza”.
Ruth ressaltou ainda a necessidade de fortalecer espaços de formação e troca de experiências: “Temos que avançar na nossa formação e em espaços de diálogo nos quais possamos trazer a nossa perspectiva e o nosso projeto de mundo, reunindo também estudantes e trabalhadores, junto com os movimentos sociais”.
Em sua fala, Julia Ladeira, representante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), destacou as consequências dos impactos da mudança climática na vida da população, principalmente nas periferias urbanas. Enquanto sociedade civil e movimentos de forma geral, o desafio inicial, segundo ela, é popularizar o debate. “É muito difícil fazer o link entre o debate do aquecimento global com o concreto da vida. Essa ponte é difícil. O debate ambiental é muito grandioso e essa discussão fica descolada da vida do povo”, apontou.
No cenário de enfrentamento, ela lembrou ainda da importância das cozinhas solidárias, nas quais os movimentos sociais têm feito um trabalho importante. “A cozinha solidária da Azenha, do MTST, em Porto Alegre [RS], tem ofertado quatro mil quentinhas por dia. É uma mobilização dos movimentos com a sociedade civil. Temos desenvolvido esse método de cozinha de emergência em momentos de desastre ambiental, que vem se consolidando, infelizmente. Mas também é uma forma de colocarmos em prática o que já temos de experiência”, ressaltou.
Diante dos desafios impostos pelos eventos climáticos, Julia enfatizou que o que pode ser feito é visualizar o problema e traçar caminhos. “Um dos caminhos é a mobilização dos movimentos, além, claro, da sociedade civil. Também precisamos responsabilizar os culpados. Parte do nosso desafio é nos organizar, colocar em prática e cobrar reconstrução, para que coloquemos a justiça climática no centro do planejamento urbano, das políticas públicas de produção de alimentos. Precisamos colocar dentro da agenda brasileira o combate às desigualdades”, concluiu.
Por fim, Vitor Lourenço, do Fórum de Cozinhas Solidárias do Rio de Janeiro, comentou sobre o cenário de insegurança alimentar que o Brasil vem enfrentando. “Saímos de seis anos de desgovernos negacionistas, que negavam tanto o processo da pandemia, como a crise climática. A face do neoliberalismo coloca para nós que comer não é uma necessidade, o lucro é uma necessidade. E nós, enquanto movimentos sociais, colocamos um contraponto: a primeira necessidade é comer. Não dá para pensar em nada com fome”, enfatizou.
Assim, surgem os conceitos de cozinhas solidárias, comunitárias, que, segundo ele, existem há muito tempo, não somente no Brasil, e que são instrumentos e ferramentas de organização política nos territórios. “Uruguai, Chile, Argentina, Estados Unidos... Existem diversos modelos no mundo todo, que fazem o processo de distribuição de alimentos. Tem as cozinhas emergenciais em territórios de guerra, em Gaza, por exemplo, que distribuiu 50 milhões de refeições nos últimos meses. É a sociedade dando respostas”, pontuou.
Vitor finalizou a mesa, sugerindo possíveis alternativas: “É preciso entender o nosso papel nesse processo de combate à fome e à emergência climática. Temos que nos organizar, enquanto movimento, para mitigar as emergências e cobrar o poder público, enquanto sociedade civil, para termos ações efetivas”.
Dez anos de história
Construída pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, a Feira Agroecológica Josué de Castro: Sabores e Saberes fomenta a agroecologia, o trabalho dos pequenos produtores rurais e urbanos, a alimentação saudável e o artesanato das comunidades tradicionais. Realizada desde 2014, a feira acontece quinzenalmente no Campus Manguinhos da Fiocruz, em parceria com movimentos sociais agroecológicos do estado do Rio de Janeiro: Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) e Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT).