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O direito à moradia digna enquanto direito à saúde: o que vimos no desastre do Rio Grande do Sul

Pesquisadores da Escola Politécnica estiveram recentemente no território gaúcho para ver de perto como a emergência climática tem afetado um direito fundamental e garantido pela Constituição Brasileira
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 19/12/2024 12h29 - Atualizado em 19/12/2024 14h46

Jonathan Hirano (MAB)Ondas de calor no Sudeste, secas severas no Norte e chuvas intensas no Sul: eventos climáticos extremos, que se tornaram frequentes no Brasil, têm reconfigurado de forma drástica os territórios, as formas de vida e a existência da população brasileira, a partir de impactos nos direitos humanos, sociais e ambientais. Um deles é o direito à moradia que, embora ratificado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário, e garantido na Constituição Federal, não tem sido uma realidade para a maioria dos brasileiros atingidos por desastres climáticos.

 Jonathan Hirano (MAB)

Recentemente, entre abril e maio de 2024, municípios ao longo do Rio Taquari, no Rio Grande do Sul, foram impactados com chuvas intensas, que fizeram com que o nível do rio passasse dos 30 metros. Áreas urbanas e rurais, casas, equipamentos públicos, muita coisa foi destruída e famílias ficaram, e algumas ainda estão, desabrigadas. 

Dados do Mapa Único do Plano Rio Grande (MUP/RS) revelam que, nesse último episódio, cerca de 970 mil pessoas foram atingidas. E passados sete meses da tragédia, dos 497 municípios gaúchos, 357 ainda estão em situação de emergência e 95 em calamidade. Em relação aos equipamentos públicos danificados, ao todo foram 1247. Desse total, 782 estabelecimentos são da área da Educação, dentre eles, escolas municipais e estaduais sendo as mais afetadas; na Saúde, foram 243 equipamentos destruídos, sendo que hospitais, Unidades de Pronto Atendimento e Unidades Básicas de Saúde foram as mais atingidas.

Felipe Bagatoli (EPSJV)

Segundo Rualdo Menegat, professor titular do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o caso gaúcho é um fenômeno muito complexo, com muitas causas e diferentes resultados, seja do ponto de vista físico, geográfico e social. Para entender esse fenômeno, Menegat faz uma análise em cinco grandes eixos. “O primeiro diz respeito ao fenômeno meteorológico; o segundo à configuração do contexto geográfico, geológico e hidrográfico de toda a região nordeste, central e costeira do Rio Grande do Sul; o terceiro eixo se refere aos serviços ecossistêmicos, ou seja, o modo como a configuração dos ecossistemas e o uso da terra na superfície, amplifica ou diminui o efeito da precipitação da água; o quarto diz respeito à infraestrutura, isto é, como o estado e os municípios estão organizados e possuem instrumentos, equipamentos, ferramentas e organização para enfrentar um desastre dessa natureza; e, por fim, o último elemento diz respeito à Defesa Civil, ao plano de emergência e à resposta da população”, explica.

Segundo o professor, o que ocorreu nesse último episódio foi causado por uma elevação da temperatura do Oceano Atlântico, que fez com que aumentasse a evaporação. Na altura da região do Rio Grande do Sul, essa umidade ficou estacionada, por conta de uma frente fria que não avançou devido a um centro de alta pressão estacionária na região central-sudeste do Brasil. “Assim, formou-se um enorme corredor de umidade, onde, em questão de cinco ou seis dias, houve a precipitação de nada menos que 800 milímetros de chuva. Isso equivale a 80 centímetros de lâmina d'água para cada m²”, disse. "Essa precipitação imensa se deve, claro, ao agravamento da emergência climática causada pela queima de combustíveis fósseis, principalmente, os que emitem gás carbônico. Em 2024, assistimos a um aumento dessa temperatura em 1,63º C. Então, evidentemente que há uma relação entre a emergência climática e esse fenômeno extremo”, explicou.

Menegat destaca ainda as condições geomorfológicas do Rio Grande do Sul, que fizeram com que essa fosse a maior catástrofe climática em uma região metropolitana do hemisfério sul. "A região de Porto Alegre e toda essa região de vales profundos se situam em uma zona de grande perigo para inundações e enxurradas por conta das configurações próprias do terreno. Isso não foi conhecido agora, sabemos disso por conta de sucessivas inundações que ocorreram. Nesse caso, a área inundada foi de 800 km², onde vivem quatro milhões e meio de pessoas. Portanto, se trata de um desastre de grande magnitude”, destacou.

O professor da UFRGS conta que a intensividade da monocultura, principalmente da soja, desestruturou os serviços ecossistêmicos, como as matas ripárias, os banhados e as nascentes. “Quando nós analisamos a expansão urbana nos últimos 20 anos, praticamente todas as cidades dessa região expandiram suas saias urbanas para as margens de rios, para as zonas baixas e úmidas, expondo a população ao risco. Isso se dá pela disputa cada vez maior da guerra por causa do agronegócio, que não só desestrutura os serviços ecossistêmicos, mas também devido à pouca terra disponível hoje para expansão urbana, o que faz com que a especulação imobiliária ocupe os últimos estoques ambientais que estão exatamente situados nas regiões ribeirinhas”, disse.

 Jonathan Hirano (MAB)

O quarto fator analisado por Menegat é o da infraestrutura do Estado e dos municípios para enfrentarem o cenário de desastre. Para ele, no último período, houve no Rio Grande do Sul o desmantelamento da gestão territorial e ambiental, com a desestruturação de órgãos importantes, como a Secretaria do Meio Ambiente do Estado (SEMA) e a Secretaria do Meio Ambiente (SMAM) do município de Porto Alegre, que foram incorporadas em outras secretarias. "A Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, um órgão histórico na pesquisa e estudo das áreas de conservação, com uma das maiores coleções científicas de espécies botânicas e faunísticas, foi extinta, assim como a Fundação de Economia Estatística, importante órgão para reunião e interpretação de dados socioeconômicos do Estado”, relatou. A consequência disso, ele aponta: “Vimos a infraestrutura do Estado, a capacidade estatal e os serviços de planejamento ficarem muito aquém do necessário”.

A capacidade e preparação da Defesa Civil para enfrentar desastres é o quinto fator importante a ser considerado, de acordo com Menegat, que acredita que o órgão esteve despreparado e sem planos de emergência. “Nós sabemos que o socorro é o último recurso de um plano de emergência, é quando as coisas não funcionaram por alguma razão, escaparam ao planejamento feito. Nunca o socorro é o primeiro ou o único recurso. O que nós vimos foi que o socorro acabou sendo o único recurso, transmitindo uma sensação de tragédia, mas do ponto de vista técnico, nós sabemos que isso não é uma tragédia. Eventos como esse são desastres, nós temos controle sobre eles”, alertou.

Para Menegat, o desastre socioambiental e hidrogeoclimático deixa ainda mais evidente a injustiça climática que o mundo enfrenta, pois as populações da capital, da periferia urbana, da zona rural e dos aglomerados menores são diferentemente atingidas. “Algumas parcelas da população, as mais vulneráveis, acabam sendo expostas de maneira mais cruel aos riscos. As comunidades indígenas, que não tem a cultura de inundações, porque eles sabiam habitar a terra e evitar as zonas de grande inundação; as comunidades quilombolas, as comunidades vulneráveis economicamente, também do ponto de vista racial. Isso tudo mostra que a inundação atinge diferentemente as pessoas, e nós temos, portanto, que ter planos de gestão específicos para cada comunidade”, apontou.

Justamente essa inexistência de planos de gestão de emergência fez com que houvesse situações conflitivas do ponto de vista social na região. “A população foi jogada por sua própria conta à condição de sobreviver. Isso destitui, torna frágil as relações humanas, o que leva a um aumento dos problemas dos direitos humanos, das garantias individuais, gerando uma catástrofe social dentro da catástrofe”, disse Menegat. 

Diante disso, o professor acredita que é necessário desenvolver uma inteligência social do lugar. “Vem a ser o conhecimento, não só o conhecimento científico fundamental, mas um conhecimento científico aberto, em franco diálogo com os saberes do lugar, com os saberes tradicionais, capazes de conhecer e de aprender. A inteligência social do lugar é a capacidade também de gestão e planejamento territorial de respeito às leis ambientais e à natureza própria do lugar. Há um caminho a ser seguido e penso que as comunidades científicas, nesse momento, têm um papel fundamental diante da falência e do colapso do Estado neoliberal”, ressaltou.

 Jonathan Hirano (MAB)O que vimos?

Na semana de 4 a 8 de dezembro de 2024, pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) participaram de algumas atividades no Rio Grande do Sul, com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), para a apresentação dos resultados da pesquisa “Diagnóstico das condições de vida e saúde ambiental em regiões atingidas por barragens no estado do Rio Grande do Sul”, realizada pela instituição em conjunto com o Movimento, além da participação em uma oficina para introdução à vigilância popular com militantes do MAB. O grupo que fez à visita ao Rio Grande do Sul era formado pela diretora da EPSJV, Anamaria Corbo; e os professores-pesquisadores Alexandre Pessoa, Martha Gomes, Gladys Myashiro e Felipe Bagatoli.

No âmbito dessas atividades, os pesquisadores da EPSJV foram convidados para uma reunião, no Ministério Público Federal, com Javier Palummo, representante da Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca), da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA); representantes de entidades da sociedade civil e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na ocasião, também ocorreram visitas de campo às cidades de Estrela e Lajeado, no Vale do Taquari, com a presença do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União, da Defensoria Pública do Estado, do Conselho Nacional e Estadual de Direitos Humanos, da Anistia Internacional e do coletivo ambientalista Eco Pelo Clima, entre outras entidades.

Segundo a Redesca, com o resultado da visita de trabalho, também será produzido um relatório final, que incluirá observações detalhadas e recomendações específicas dirigidas ao Estado brasileiro. Esse documento será apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para sua análise e aprovação.

Martha Gomes (EPSJV) Pesquisadores da Escola Politécnica também têm apontado a necessidade de as medidas adaptativas às mudanças climáticas considerarem o direito à moradia digna na perspectiva da Reforma Urbana e da Reforma Agrária e no sentido de promover processos que permitam a redução dos danos e o prolongamento do sofrimento em decorrência desses desastres. De acordo com Alexandre Pessoa, essas medidas devem considerar o aumento dos processos migratórios forçados, bem como a necessidade de construção de novos reassentamentos, com a realocação de bairros inteiros destruídos. “Nesse sentido, o auxílio social não consegue reconstruir minimamente as condições de vida das populações. É necessário, portanto, o estabelecimento de auxílio climático. Vimos diversas habitações espaçosas com quintais, de dois pavimentos em alvenaria e concreto, de paredes de revestimento cerâmico destruídas Todos os investimentos de gerações entraram em colapso”, contou.

Na visão do professor, efeitos psicossociais e transtornos de adaptabilidade dos atingidos pelas mudanças climáticas se ampliam e eles clamam pela ação do estado. “O sofrimento coletivo aumenta com a chegada das festas de fim de ano uma vez que vem a forte lembrança de tudo que foi perdido, associado com a ansiedade de um futuro incerto”, observou.

Segundo Anamaria Corbo, um dos pontos abordados na reunião no Ministério Público com o relator Javier Palummo diz respeito ao fato de que em uma situação como a que ocorreu no Rio Grande do Sul, fica evidente que o desmonte ou a desestruturação da saúde pública, seja no nível primário de atenção ou nos de maior complexidade, contribui para uma resposta ineficiente do Estado frente a uma emergência como essa. “As violações dos direitos, antes existentes, se intensificam. Além da existência de uma rede de atenção à saúde estruturada e articulada no momento do desastre, há a urgente necessidade de organização de uma atenção permanente para dar suporte aos impactos gerados pelas perdas que essas populações vivenciaram”, destacou.

Alexandre Pessoa (EPSJV) O sistema de saúde, para Anamaria, não está preparado para dar conta dessa demanda. “Sabemos que as populações mais vulnerabilizadas são e serão as mais atingidas pelo colapso ambiental em curso. O que foi apresentado na reunião com o relator, pelos pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é a existência de muito conhecimento acumulado nas universidades públicas, que se dedicam a estudar as mudanças climáticas na região, que poderia ser utilizado na elaboração dos planos de gestão da emergência, em conjunto com as populações atingidas ou que residam nas áreas de risco”, disse. Para isso, ela apontou: “É fundamental a elaboração desse plano ao mesmo tempo em que sejam implementados programas de governo que reconstruam as condições plenas para a retomada da vida das populações atingidas”.

O que tem sido feito?

Nos últimos anos, o Movimento dos Atingidos por Barragens vem desafiando a militância a estar presente em momentos de calamidade. Nas enchentes do Rio Grande do Sul, o papel do movimento foi imprescindível com ações de curto, médio e longo prazo. Segundo Leonardo Maggi, membro do MAB e morador de Porto Alegre (RS), em setembro de 2023, já havia acontecido um evento climático bem significativo, especialmente no Vale do Taquari, e a equipe do Movimento no Estado e outros representantes do Brasil já haviam estado mais próximos da região com uma brigada de solidariedade. “Apesar de ter sido um esforço enorme em setembro de 2023, nem se compara com o desafio de maio de 2024”, comentou, acrescentando: "Neste ano, as inundações e os níveis de destruição foram diferentes. Ao longo dos rios Jacuí e Taquari, que desaguam em Porto Alegre, a precipitação foi mais violenta. O período de enchente durou cerca de cinco dias e teve um repique dez dias depois, mas, apesar de ser um tempo relativamente pequeno, foi mais violento. Onde o rio passou, não sobrou nada. As cidades simplesmente não existem mais. No caso da região metropolitana, a água subiu mais calmamente, mas ficou por muito mais tempo. As cidades ficaram alagadas entre 20 e 30 dias”.

Giulia Morschbacher (MAB)

Leonardo lembrou que, ainda no fim de abril de 2024, as previsões já indicavam uma quantidade grande de chuva na região. A partir dessa informação, o MAB mobilizou militantes do movimento para se prepararem para as ações. “Convocamos militantes nas áreas que estavam no alvo do atingimento para se prepararem e se protegerem, e militantes de onde não tinha previsão de emergência para se prepararem para ajudar quem ia ficar na emergência”, explicou. Ao todo, cerca de 140 militantes de 14 estados do Brasil e de outras partes do mundo estiveram no Rio Grande do Sul para constituir as brigadas e montar as cozinhas solidárias para levar alimento para as regiões mais atingidas. “Nós chegamos a produzir 160 mil refeições, em cinco cozinhas de emergência - nas cidades de Porto Alegre, Canoas, Arroio do Meio, Lageado e Estrela”, relembrou.

O cenário não era dos melhores. O Estado estava isolado: faltou gás de cozinha, comida seca, comida utilizável. “No caos, é necessária uma condição organizativa mínima. Nós estimulamos que as famílias criassem núcleos para coordenar o recebimento das refeições e a própria distribuição delas. E esse processo coordenado vai se mantendo até os dias atuais, em um aspecto da segurança alimentar, com o abastecimento de cestas de alimento, produtos de limpeza e a própria reconstrução dos sistemas de proteção, especialmente na região metropolitana de Porto Alegre. De barriga vazia, ninguém consegue pensar em nada. Quando a barriga está cheia, pensamos nos próximos passos. E esses próximos passos passam por um ambiente de reconstrução das cidades", ressaltou.

Jonathan Hirano (MAB)É inegável a necessidade de ações de curto e médio prazo. Mas sabe-se que a reconstrução de uma ou mais cidades exige, de fato, mais tempo. Por outro lado, o prolongamento do sofrimento dos atingidos por não terem moradias dignas aumenta ainda mais os riscos à saúde. É o que alertou Leonardo: “As cidades atingidas ficaram mais tristes, temos que reconhecer. Essa tristeza coletiva, de alguma maneira, contagia negativamente todo mundo. Por ser um evento novo, não existe ainda estrutura de lei e nem prefeitura capaz de dar essa resposta ao que está acontecendo hoje aqui nas nossas comunidades. Não há uma retomada das unidades de saúde que foram destruídas e há uma enorme dificuldade de que estruturas municipais atendam esse novo padrão de adoecimento produzido pelas enchentes, a partir de questões psicossociais, principalmente”. 

Para Leonardo, a população já se convenceu que não é mais possível viver nesses locais. A partir disso, o MAB tem uma proposta de reassentamento. “Diferentemente da política pública atual, que propõe uma habitação muitas vezes segregada pela faixa de renda ou pela forma como foi atingida, nossa proposta, enquanto movimento, para amenizar o trauma desses impactos é que a gente reassente comunidades inteiras, preservando os laços comunitários, os laços econômicos, os laços de afeto que a comunidade tem atualmente ou tinha antes da enchente nesse novo local", explicou

Celia Ravera, assessora de Regularização Fundiária no Projeto Construção de Território Sustentável e Saudável - Comunidades da Colônia Juliano Moreira, no Campus Fiocruz Mata Atlântica, na cidade do Rio de Janeiro, explicou de que forma o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) estabelece o direito à moradia digna e, como a partir dele, pode-se encaminhar propostas de reassentamento. Segundo Celia, o Estatuto é um marco legal fundamental para a regulamentação dos artigos constitucionais 182 e 186 da Constituição Federal de 1988, que tratam da função social da propriedade urbana e rural, respectivamente, outorgando a esta função a posição de direito fundamental. “O reassentamento é um dos temas abordados. Refere-se ao processo de realocação de pessoas que foram removidas de suas moradias originais, devido a obras públicas ou projetos de urbanização, sem menção a situação dos reassentamentos por eventos climáticos. Vale registrar que, até agora, não foi acordado qualquer estatuto oficial ou proteção legal às famílias afetadas por eventos climáticos extremos e mudanças climáticas”, destacou.

O que acontece na maioria das vezes, de acordo com Celia, é que os programas de reassentamento reproduzem a segregação, apoiando propostas urbanísticas do capitalismo neoliberal e a captura de terras por parte do agronegócio, da mineração e do capital financeiro, omitindo a aplicação das sanções que a legislação ambiental e constitucional exige. Sendo assim, Celia apontou que é necessário colocar a problemática dos reassentamentos das comunidades atingidas pelas consequências climáticas em bases que impeçam a segregação territorial. “Como serão arrecadadas as terras para as famílias desabrigadas nessa complexa situação dos municípios do Rio Grande do Sul, atingidos pelas inundações? Entendemos que a elaboração de diretrizes, que possibilitem a identificação de terras que não cumprem sua função social ou provocam graves danos ambientais pela forma de exploração, com a contribuição de cientistas, organizações sociais e os próprios interessados, é fundamental para estabelecer normativas que permitam arrecadação de terras para a construção de territórios saudáveis e sustentáveis, enfrentando as propostas urbanísticas de exclusão urbana do capitalismo neoliberal e a preservação da captura predatória de terras por parte do agronegócio, da mineração e o capital financeiro”, ressaltou.

O clima e o colapso ecológico no centro do debate na Escola Politécnica

Para debater as contradições da relação entre o acúmulo de capital e uma profunda crise na produção e reprodução da vida humana, no dia 3 de dezembro, a EPSJV iniciou o Ciclo Internacional de Debates “Crise Estrutural do Capital, Emergência Climática e Determinação Social da Saúde”. O primeiro dos três encontros teve como tema “Crise ou colapso ecológico? Circuitos do capital produtores de danos ao ambiente e à Saúde Coletiva” e contou com a participação da professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e historiadora Virgínia Fontes; do também professor da UFF e pesquisador do NIEP-Marx, Eduardo Sá Barreto; e do biólogo, epidemiologista e ex-consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças Infecciosas (CDC) dos Estados Unidos, Rob Wallace. A mediação foi realizada pelo professor-pesquisador Alexandre Pessoa. No dia seguinte, o grupo de pesquisadores da EPSJV viajou para ver de perto as comunidades destruídas no Rio Grande do Sul, como consequência do colapso ecológico.  

Segundo Alexandre, a habitação não pode ser reduzida ao ambiente intradomiciliar.  “Ela vai além das suas paredes, do seu lote, ela também compreende as relações de vizinhança, suas relações sociooeconômicas, culturais e históricas”, explicou. A determinação social da saúde, de acordo com ele, considera a questão fundiária e a função social da terra como central para a reprodução da vida. “Nesse sentido, as pautas da Reforma Urbana, da Reforma Agrária e do Reflorestamento, integradas, cada vez mais deverão retornar e se tornar emergentes, visando a promoção de territórios saudáveis, sustentáveis e resilientes”, disse.

Alexandre Pessoa destacou ainda que a vigilância em saúde precisa ser fortalecida. “As comunidades e os movimentos sociais têm pressa, pois sabem que mortes são evitáveis e estão realizando cada vez mais uma vigilância popular em saúde, que promova a organização comunitária, a solidariedade, a segurança da vida e a defesa do bem comum, e que devem contar com apoio das universidades, das instituições de pesquisa e do Sistema Único de Saúde”, afirma.

Nesse cenário caótico, diversos relatórios do clima, a exemplo do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) de 2023, sinalizam que a insegurança hídrica irá aumentar. “Novas enchentes e prolongamento de secas acontecerão, de forma mais recorrente, mais intensa e mais duradoura. Por isso, a discussão deve ser a partir do concreto, ver e sentir o que está acontecendo, para que possamos nos aproximar da realidade, visando fortalecer a saúde coletiva e os territórios, com suas terras e águas, para vida, não para morte”, concluiu Alexandre Pessoa.