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Cuidado

Termo assume diferentes significados, tanto do cotidiano como na academia. Nesta matéria enfatizamos como trabalho pouco ou não remunerado realizado principalmente pelas mulheres, cenário recentemente reconhecido pela aprovação da Política Nacional do Cuidado
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 07/01/2025 12h16 - Atualizado em 07/01/2025 13h58

Carinho, afeto, tarefas domésticas, atenção com o corpo, apoio emocional. Falar de cuidado é falar de muitas coisas. “É um termo com múltiplos significados”, avisa Anna Bárbara Araújo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mas o cuidado torna-se um conceito principalmente a partir da década de 1990, quando a cientista política Joan Tronto o define, de forma bastante abrangente, como todas as ações que fazemos para a manutenção e continuidade da vida em harmonia com os outros seres humanos, com nossos corpos e com o meio ambiente. “Todos esses elementos se entrelaçam em uma rede complexa de sustentação da vida. O que ela está propondo é uma resolução social e ética em que o cuidado seja mais valorizado pela sociedade”, explica Araújo.

Nessa concepção ampla de cuidado podem caber as mais variadas atividades: desde o trabalho doméstico não remunerado exercido pelas famílias até a função das empregadas domésticas, babás, cuidadoras, manicures e alguns profissionais de saúde. “O conceito é bastante amplo e sobre algumas posições [ocupações em geral] não há consenso de que podem ser consideradas trabalhos de cuidado”, diz a professora Clarisse Paradis, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Entre as ocupações da área da saúde, tradicionalmente relacionadas ao cuidado, Anna Bárbara Araújo faz a distinção entre o cuidar e o curar. Ela explica que o curar está mais relacionado à atividade de solucionar agravos de saúde e doenças, identificada mais diretamente ao trabalho dos médicos. “Já o cuidar está relacionado à prevenção, ao tratamento, a esse apoio em saúde que muitas vezes é feito por outros profissionais, como enfermeiras, técnicas, psicólogas, nutricionistas”, ilustra.

Trabalho reprodutivo
Mas antes de o conceito abarcar essa concepção mais ampla, que inclui uma variada gama de profissões, uma parte do movimento feminista de inspiração marxista já pautava um debate similar, especialmente a partir da década de 1970, focando mais as tarefas domésticas.Nessa perspectiva, o cuidado está relacionado à necessidade de evidenciar o quanto as tarefas exercidas pelas mulheres em ambiente doméstico são fundamentais para que o trabalho remunerado na esfera pública seja realizado. Com isso, o que as teóricas e militantes feministas querem destacar é como o trabalho reprodutivo – associado ao cuidado –, que é exercido historicamente pelas mulheres, foi sempre fundamental para que os homens desenvolvessem o trabalho assalariado, além de questionar o valor conferido ao trabalho produtivo ao mesmo tempo em que se ignora o trabalho não pago exercido pelas mulheres dentro de casa. “Essa forma de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o da separação (existem trabalhos de homens e outros de mulheres) e o da hierarquização (um trabalho de homem ‘vale’ mais do que um de mulher)”, escreve a socióloga Daniele Kergoat, no ‘Dicionário Crítico do Feminismo’.

Em outras palavras, os trabalhadores só conseguem chegar aos seus postos de trabalho porque as mulheres são responsáveis por preparar comida, limpar e organizar a casa e dar apoio psicológico. “E essa dimensão da reprodução [social] lembra para a gente que esse trabalho é insubstituível, é um trabalho sem o qual a gente não pode viver”, diz Paradis, que completa: “É um trabalho verdadeiramente de reprodução da vida, sem o qual nenhum de nós estaria aqui hoje. Se estamos, é porque alguém cuidou da gente, deu banho, deu comida, alguém mimou durante muito tempo”. Mais do que uma constatação, essa compreensão está na origem de demandas de políticas sociais, como a ampliação da cobertura de creches para que as mães tenham com quem deixar seus filhos.

Paradis lembra ainda que, além das tarefas executadas, o tema da carga mental de trabalho, que envolve o planejamento para que as atividades sejam realizadas, como fazer listas de compras, planejar o almoço e a ordem dessas atividades também precisa ser levado em conta. E ela ressalta que se trata de um cuidado que não se restringe aos filhos, mas muitas vezes também se dirige aos maridos e pais: um trabalho que não prevê folga e nem pagamento
remunerado.

Embora a ideia de divisão sexual do trabalho possa parecer ultrapassada, dados do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mostram que estamos muito longe da igualdade. As mulheres brasileiras dedicam 21 horas semanais às tarefas domésticas, dez a mais do que os homens. Os números são de 2022 e expressam os resultados mais recentes do módulo ‘Outras formas de trabalhos’, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.

Os dados coletados em 2022 mostram um cenário muito semelhante ao da edição anterior, realizada em 2019. Essa pesquisa mais antiga foi usada como base para o artigo ‘O valor das oportunidades perdidas pela realização do trabalho de cuidado não remunerado no Brasil’, presente no livro ‘Cuidar, Verbo Transitivo’, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2023. As autoras Ana Luiza Barbosa, Joana Costa e Maíra Franca calcularam que cerca de 17% das mulheres brasileiras possuem ocupação fora de casa para se dedicar exclusivamente ao trabalho reprodutivo. Por outro lado, como escrevem – e sugerem – as autoras, se esse trabalho doméstico de cuidado fosse remunerado, haveria “uma significativa redução da pobreza e da desigualdade”. Anna Bárbara Araújo explica que essa análise vem da constatação de que são as mulheres com baixa escolaridade que acabam optando por cuidar da casa e dos filhos, uma vez que receberiam salários muito baixos no mercado de trabalho.

Há também o trabalho reprodutivo remunerado, e igualmente pouco valorizado, executado por trabalhadoras domésticas, babás e cuidadoras, tanto de pessoas com deficiência quanto de pessoas idosas. Em geral invisibilizadas, recentemente essas trabalhadoras do cuidado protagonizaram duas tragédias emblemáticas da desigualdade que a pandemia de covid-19 evidenciou no Brasil. Uma delas foi a morte da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, de 63 anos, a primeira vítima fatal do novo coronavírus, no Rio de Janeiro, infectada pelos patrões recém-chegados da Europa. A outra foi a morte de Miguel Silva, uma criança de cinco anos, após queda do apartamento em que sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Por solicitação da empregadora, Mirtes Santana levou a cachorra da família para passear e, quando voltou, encontrou seu filho sem vida. “Esses são dois casos emblemáticos que colocaram no centro de quais as condições que essas mulheres têm de cuidar”, pontua Paradis.

Política Nacional do Cuidado
É a partir desse entendimento da precarização e da carga excessiva de trabalho não remunerado que sobrecarrega as mulheres que nasce a Política Nacional do Cuidado, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro passado. “O foco da Política está nos trabalhos de baixa remuneração, invisibilizados e que sobrecarregam as mulheres de trabalho. Uma vez que muitas vezes as trabalhadoras domésticas têm que cuidar da casa delas e da casa dos outros para que aquelas mulheres e homens possam estar no mercado de trabalho de tal forma”, explica Paradis, que participou da etapa inicial da elaboração do texto.

A Política Nacional do Cuidado foi elaborada de forma interministerial, com assessoria de especialistas na área, sob a coordenação dos ministérios do Desenvolvimento Social (MDS) e das Mulheres. O texto define o cuidado como direito e coloca como públicos prioritários de atenção da Política tanto as crianças e adolescentes, pessoas idosas e com deficiência que necessitam de assistência quanto aquelas que executam esse trabalho, seja feito de forma remunerada ou não. “A Política entende que a responsabilidade pelo cuidado deve ser mais bem dividida entre os indivíduos, as famílias, a sociedade e o Estado. Ela acredita que a gente possa viver numa sociedade que possa se corresponsabilizar pelo cuidado”, explica Daniel Groisman, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e membro da equipe que elaborou o texto. Ele entende que o país está atrasado na implementação dessa agenda uma vez que o envelhecimento acelerado da população brasileira e a diminuição do tempo disponibilizado para o cuidado por parte das famílias obriga o Estado a ser mais presente em relação a essas demandas.

Quando definitivamente aprovada, a implementação da Política requer a elaboração de um plano, que irá detalhar as ações mais práticas previstas e ainda está em fase de discussão. No texto atual, está prevista a implementação de ações no setor público e privado que possibilitem “a compatibilização entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e as responsabilidades familiares relacionadas ao cuidado”, assim como a promoção do “trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho”.

Entre os países que já tiveram iniciativas semelhantes nessa área e podem servir de inspiração, Groisman cita o Uruguai. Um dos méritos da política adotada no país vizinho, diz o professor-pesquisador, está na capacidade de integrar as diversas estratégias e ações de cuidado em um sistema. “Foi uma conquista importante dos movimentos [sociais], sobretudo feministas”, enfatiza. Clarisse Paradis cita como exemplo também a existência da profissão pública de cuidadora para o acompanhamento de idosos na Colômbia. Segundo ela, lá existem centros de acolhimento chamados de ‘maçãs de cuidado’, aonde as pessoas podem ir para lavar suas roupas e, enquanto esperam, podem fazer diversas atividades recreativas e formativas – inclusive destinadas aos homens, com temas como a divisão sexual do trabalho. “A ideia de centros-dias de idosos já existe e está prevista nas políticas no Brasil, mas são muito pouco implementadas. E elas são importantes porque possibilitam que o cuidador desse idoso tenha um tempo livre”, diz. No Brasil, o Congresso aprovou a regulamentação da profissão de cuidadora da pessoa idosa, crianças e pessoas com deficiência em 2019, mas a lei foi inteiramente vetada pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro, decisão que foi mantida pelos parlamentares. Um novo Projeto de Lei, de autoria do senador Flávio Arns (PSB-PR), restrito à profissão de cuidador da pessoa idosa, foi aprovado no final de 2023 pela Comissão de Direitos Humanos e desde abril de 2024 está pronto para entrar na pauta da Comissão de Assuntos Sociais (CAS).