A pós o mundo vivenciar a pior crise sanitária dos últimos 100 anos, ainda patina a redação de um documento que preveja as formas de atuação para prevenção de uma nova pandemia e, caso ela ocorra, defina ações que devem ser realizadas para a proteção da população global. Regras mais amplas de condutas sanitárias já estão previstas pelo Regimento Sanitário Internacional (RSI) da Organização Mundial de Saúde (OMS), um documento de 2005, que neste momento está sob revisão. Mas quem aposta num caminho global de políticas nessa área neste momento tem depositado expectativas sobre o Tratado de Pandemias, um acordo que, quando (e caso) seja aprovado, deverá ser incorporado ao RSI.
O texto do tratado está sendo negociado pelos 194 países que integram a OMS por meio do Órgão Negociador Intergovernamental da entidade, instância criada em dezembro de 2021 com o intuito de promover um entendimento comum entre as nações sobre o que fazer em caso de uma nova crise sanitária de magnitude global. A expectativa era de que esse acordo fosse fechado na 77ª Assembleia Mundial da Saúde ocorrida em junho de 2024 em Genebra, mas, até agora, nada se efetivou.
O que prevê o atual texto?
“O acordo da pandemia está muito voltado para a discussão da preparação e da resposta. Agora, a parte de recuperação e as consequências de uma pandemia não estão cobertas”, avalia o pesquisador Gustavo Matta, Coordenador do Núcleo Interdisciplinar sobre Emergências em Saúde Pública do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. O objetivo principal ao qual o texto do acordo está vinculado é a produção de uma vacina em 100 dias a partir do comunicado de alerta de uma pandemia. Isso significa principalmente o fortalecimento de iniciativas de aumento da vigilância epidemiológica e da vigilância de patógenos, o estabelecimento de estratégias de comunicação de risco, mudanças de comportamento por parte da sociedade e do estabelecimento de uma produção rápida para diagnóstico e tratamento para uma nova possível pandemia.
Para Matta, no entanto, falta um plano que abarque as sequelas das doenças, tanto mentais quanto físicas, e que considere as desigualdades sociais e tecnológicas entre os países para que as respostas sejam mais efetivas em todas as partes do globo. E ele defende que, entre os caminhos de se incluir uma perspectiva mais ampla para o documento, está a valorização do papel da atenção primária e das ações intersetoriais para proteger a população, medidas que, alerta o pesquisador, vão muito além da vacina. “O acordo deixa de lado fatores estruturais fundamentais, como o desenvolvimento técnico-científico dos países o impacto das desigualdades sociais ou das pessoas e populações mais vulnerabilizadas na vigência de uma emergência”, opina.
Quais são os principais impasses?
Um dos principais pontos de divergência está na forma de gestão das descobertas sobre os novos patógenos causadores de doenças. Segundo a proposta da União Europeia, a notificação de descoberta de um novo possível causador de doenças deve ser obrigatória por parte dos governos e deverá ser feita a uma rede que seria coordenada pela OMS e à qual as principais indústrias teriam acesso. Em troca desse compartilhamento de dados epidemiológicos e biológicos, os países mais pobres teriam acesso facilitado a medicamentos, a um custo mais baixo. No entanto, as indústrias não têm interesse nessa troca e levaram alguns dos seus países de origem a saírem da pactuação, de acordo com Gustavo Matta. “Os países mais ricos se recusaram a estar nas mesas de negociação”, conta.
A contrapartida está prevista de duas formas no texto. A primeira é um acordo direto entre os produtores de vacinas e os países que seriam beneficiados, em que haveria uma redução de custos na produção desses insumos. A segunda forma é o estabelecimento de um fundo autônomo da própria OMS para que a entidade possa realizar as compras diretas e direcionar aos países que não têm condições de fazê-lo. A ideia não é nova e foi tentada pela Organização na pandemia, mas não se concretizou. Se, por um lado, as indústrias localizadas nos países mais ricos não querem realizar a contrapartida, por outro, os países em desenvolvimento ou mais pobres não aceitam que não haja um retorno ou incentivo para a sua produção interna. Isso significa que estão sendo pautadas, no debate sobre o tratado, questões como aumento de investimentos com garantia de auxílio internacional para que os países com menos recursos também possam construir seus parques industriais, tenham acesso a insumos e possam produzir suas próprias vacinas e diagnósticos. Matta ajuda a entender para onde tende essa queda de braços quando lembra que a contribuição anual repassada pelos países à OMS é pequena, enquanto os recursos extraorçamentários somam um montante superior. “Os países só investem em programas específicos no qual tenham interesse”, resume.
Para se ter uma ideia sobre a urgência da existência de regras para a distribuição e produção de vacinas, podemos voltar um pouco no tempo. Em outubro de 2021, quase dois anos após o começo da pandemia de covid-19, a plataforma Our World in Data mostrava que os países desenvolvidos alcançavam a marca de 70% da população vacinada, enquanto os países de baixa renda tinham apenas 3%. Mais recentemente, mesmo que a imensa maioria dos casos do vírus Mpox, que antes era chamado de varíola dos macacos, se dê em países africanos, em especial na República Democrática do Congo, são os países ricos que concentram as vacinas existentes para a doença. “O que é mais preocupante é que a produção da vacina [para esta doença] é muito limitada e os países desenvolvidos compram a maioria e deixam poucas para os países do sul. Agora, com essa situação tão grave em alguns países africanos, não há vacinação suficiente. A quantidade é ínfima em relação à necessidade. Então mais uma vez, como vimos na covid-19, os países que têm as populações mais vulneráveis não conseguem obtê-las”, diz a diretora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Valdiléa dos Santos. E a dificuldade da chegada das vacinas não se dá apenas pela baixa disponibilidade, mas também pela falta de recursos para comprá-las. Ainda em agosto de 2024, quando a OMS emitiu um alerta global sobre a doença, o diretor executivo da fabricante Bavarian Nordic anunciou que a empresa tinha capacidade de ampliar a produção, no entanto era preciso encomendá-las com recursos que os países mais pobres não têm. As primeiras 10 mil vacinas contra a doença chegaram à República Democrática do Congo no começo de setembro passado, a partir de uma doação feita pelos Estados Unidos.
Uma das principais demandas dos países em desenvolvimento durante a pandemia era a quebra das patentes para possibilitar a produção local de vacinas e outros medicamentos. O Tratado aborda esse tema?
Por incrível que pareça, o debate das patentes não está tematizado no acordo, apesar dos esforços de alguns países, como a Índia, a África do Sul e o Brasil, em pautar o assunto. “Não há ideia de transferência de patentes ou de transferência de tecnologia”, diz Matta. O que está presente é uma previsão de que após a vacina pronta, os países possam ser beneficiados por custos mais favoráveis. Na contramão do que prevê o texto, Matta argumenta que é o aumento do parque tecnológico voltado tanto para vacinas quanto para testes diagnósticos nos mais diversos países que ampliaria “enormemente” a capacidade de vigilância epidemiológica.
Qual o novo prazo para o tratado ser acordado? Quais seriam os próximos passos?
Previsto para ser concluído na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em junho de 2024 em Genebra, na Suíça, o prazo foi prorrogado para 2025. Uma vez aprovado, os países devem decidir nacionalmente seu comprometimento com o acordo. O próximo passo é conversar com as agências financiadoras para que as propostas aprovadas sejam colocadas em prática, tanto a rede de compartilhamento de patógenos e dados de vigilância epidemiológica, quanto o fundo global para o compartilhamento de insumos, vacinas e ampliação do parque tecnológico – isso, claro, no caso de este último item ser incluído. “Há um processo muito grande no sentido tecnológico, político e econômico para que ele possa ser efetivamente implementada pelos países”, diz Matta.
Pouco otimista em relação a essa iniciativa, o pesquisador alerta que, ainda que esse objetivo seja alcançado, nada garante que o tratado seja posto em prática. Além do fracasso da proposta de criação de um fundo de distribuição de vacinas, o Covax, por parte da OMS, durante a pandemia de covid-19, ele lembra também uma experiência mais antiga, relacionada à Declaração de Alma Ata. Firmada em 1978 como documento final da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, o texto prevê o incentivo à doação de medicamentos essenciais a países pobres e o aleitamento materno. Naquela época, segundo Matta, as farmacêuticas criticavam fortemente a amamentação materna em nome do uso de fórmulas e leites artificiais. “No ano seguinte, diversos países, como Estados Unidos e Alemanha, retiraram sua contribuição anual em represália e a OMS caiu em um grande esquecimento por cerca de 15 anos”, recorda.