Em novembro deste ano, Belém sedia, no interior da Amazônia brasileira, a 30ª Conferência das Partes da Convenção Quadro da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC), mais conhecida pela sigla COP30. O bioma amazônico é parte da expansão recente de uma nova fronteira agrícola, impulsionada pela produção de commodities, gerando um arco de desmatamento que se estende por 32 municípios dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia, identificados pela sigla ‘Amacro’. Também recente é o dado de que apenas o Pará, estado que sediará a COP30, foi responsável por 42% dos incêndios florestais na Amazônia – 2,8 milhões de hectares queimados - entre janeiro e outubro de 2024, segundo o ‘Monitor do Fogo’ do Mapbiomas.
A abertura das novas fronteiras agrícolas e as queimadas – muitas vezes utilizadas como estratégia de ‘limpeza do terreno’ para posterior ocupação de atividades agroindustriais – são partes integrantes dos dados do Sistema de Estimativa de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) que revelam, no caso do Brasil, que a soma das emissões do setor agrícola, do desmatamento e das mudanças no uso da terra correspondem a 73% das emissões totais do país.
Diante desse cenário, pesquisadores e movimentos sociais se pronunciam abordando a importância de um novo modelo de produção de alimentos como resposta à crise climática – e é nesse contexto que ganha centralidade o debate da agroecologia. Como afirma Letícia Tura, diretora executiva da FASE e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a agroecologia “não é apenas uma tecnologia, mas um projeto de sociedade que aborda as relações entre as pessoas, os direitos territoriais, o combate ao racismo e ao machismo, as relações com a natureza, o descarte de resíduos. Uma proposta ampla, para a produção de alimentos, a cultura, a promoção da saúde, para estruturas de armazenamento, transporte de alimentos e a construção de outros circuitos de comercialização, que sejam sustentáveis”.
A avaliação é corroborada pela pesquisadora da Agenda Saúde e Agroecologia da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS), da Fiocruz, Helena Lopes, para quem a agroecologia é um modelo de produção de alimentos que promove a sustentabilidade, a justiça climática e a saúde das populações. “Ela oferece respostas concretas para os desafios impostos pelas mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que enfrenta as desigualdades sociais e ambientais”, avalia.
A produção e sistematização de dados que comprovem esta avaliação tem mobilizado organizações da sociedade civil, movimentos sociais e a academia. “Na ANA, constituímos um grupo de trabalho sobre justiça climática e agroecologia que está iniciando o mapeamento de iniciativas agroecológicas no Brasil, relacionando-as à contribuição para mitigação e adaptação às mudanças climáticas. A agroecologia propõe não só outras tecnologias para lidar com a terra, com a floresta, com as águas, mas também com o próprio território e as comunidades e a cidade e a relação com a natureza.», conta Letícia Tura.
Agronegócio, produtor de desastres
A responsabilidade do agronegócio nas emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) do Brasil cresce na medida da expansão de sua atividade. E quando se fala de emissões, a referência não é apenas ao gás carbônico (CO2), em geral apontado como o grande vilão do aquecimento global. De fato, a produção de fertilizantes nitrogenados sintéticos, como os que são cada vez mais utilizados na agricultura, por exemplo, é intensiva em energia e gera a queima de grandes quantidades de combustíveis fósseis, com alta emissão de dióxido de carbono. Isso, entretanto, não é o pior: ao serem aplicados no solo, tais fertilizantes podem liberar óxido nitroso (N2O), gás de efeito estufa com potência 298 superior a do CO2. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) divulgou no ano passado, com dados referentes a 2021, que o Brasil é o país que mais usa agrotóxicos no mundo – com 10,9 kg de agrotóxicos para cada hectare de lavoura (10 mil m2), seguido pelos EUA (2,85 kg/ha) e China (1,9 kg/ha).
O Brasil também tem o maior rebanho bovino do mundo, estimado em cerca de 240 milhões de cabeças. E, segundo o FAQ ‘10 coisas que você deve saber sobre agricultura industrial’, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a criação de animais em confinamento, que é própria da pecuária intensiva, contribui para as emissões de GEE ao liberar na atmosfera óxido nitroso e metano – neste caso, através do esterco.
A pouca rotação de culturas é outra característica do agronegócio com impactos climáticos. Baseado em geral na monocultura, esse modo de produção agrícola exige o cultivo repetido dos mesmos alimentos ou produtos no mesmo solo, tornando a agricultura altamente dependente de pesticidas e fertilizantes químicos. Em suas diretrizes sobre ‘Como praticar o Manejo Integrado de Pragas’, a FAO, por exemplo, descreve que “cultivar o mesmo tipo de cultura no mesmo lugar, temporada após temporada, e fertilizá-las com produtos químicos e usar pesticidas artificiais esgota os nutrientes de que a planta precisa”. Ainda segundo o texto, nessas situações, “as culturas ficam fracas, atrofiadas e são atacadas por pragas e doenças”. Desta forma, analisa o órgão, “plantar as mesmas culturas, ano após ano, perturbou a composição natural do solo, afetando seu conteúdo de nutrientes, sua estrutura e sua capacidade de reter água”. E o texto deixa clara a relação desse processo com os desastres naturais: “Um solo mais fraco pode se tornar seco, impermeável, infértil, mais suscetível à erosão, inundações, deslizamentos de terra causados por eventos climáticos extremos e incapaz de sustentar a produção futura de culturas e garantir a segurança alimentar de pessoas e animais”. “Em se tratando de Brasil e países com o nosso perfil, a agricultura é o principal emissor dos gases de efeito estufa”, analisa Tura, lembrando que é preciso considerar ainda os efeitos relacionados a armazenamento, transporte e beneficiamento. “Então, a agricultura em si tem um papel muito importante no Brasil em termos das emissões dos gases de efeito estufa”, completa.
Helena Lopes complementa a análise afirmando que “o modelo de agricultura vigente é promotor da injustiça climática, pelas mudanças climáticas, pelo racismo ambiental principalmente quando a gente pensa em acesso à terra e território, ou acesso aos bens comuns, e na destruição dos conhecimentos tradicionais, das populações que vão sendo expulsas, vão perdendo a agricultura ou a relação com o território enquanto um mote do seu modo de vida”. E explica: “É nesse sentido que esse tema vai chegando perto da agroecologia”.
A resposta pela agroecologia
As falas das pesquisadoras ilustram o que o texto para discussão ‘Ampliando abordagens agroecológicas: o quê, por que e como?’, da Oxfam, estrutura em suas 93 páginas: “as evidências mostram que pequenas propriedades familiares que utilizam técnicas agroecológicas são vastamente superiores [em benefícios para as sociedades] às fazendas industriais, por serem altamente eficientes, sustentáveis e resilientes às mudanças climáticas”.
Por sua vez, o relatório ‘Agroecologia e Mudanças Climáticas: Revisão Rápida de Evidências’, organizado pelo Programa de Pesquisa em Mudanças Climáticas, Agricultura e Segurança Alimentar e pelo Grupo Consultivo sobre Pesquisa Agrícola Internacional (respectivamente CCAFS e CGIAR, na sigla em inglês), explica e lista os principais benefícios climáticos da agroecologia: sequestro de carbono, através de agroflorestas, agricultura orgânica e manejo ecológico de nutrientes, com redução na emissão de GEEs; diversificação de cultivos; melhoria da saúde do solo; regulação de pragas; serviços ecossistêmicos, como a regulação do ciclo da água; integração entre ciência e conhecimento tradicional; educação rural; escalonamento de boas práticas; e redução da dependência de insumos externos, como fertilizantes e pesticidas químico.
Lopes enfatiza, como uma das respostas concretas proporcionadas pela agroecologia ao desafio da crise climática, a vinculação entre alimentos, territórios e populações, em que não é necessário o transporte de gêneros alimentícios por grandes distâncias, com o uso de combustíveis fósseis. “É o que chamamos de ‘circuitos curtos de comercialização’. Na agroecologia, também se usa muito a ideia de ‘mercados territoriais’, porque os produtos estão associados às dinâmicas territoriais. Por exemplo, os produtos de determinado território precisam ser valorizados na culinária local no PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que distribui alimentos na escola. Que o mercado seja territorializado nesse sentido, porque quando a gente pensa, às vezes, em circuito curto, a gente está falando de redução de distância, mas isso não necessariamente está associado a compreender como o sistema agroalimentar funciona. Se a produção está associada a um território específico, existe uma sazonalidade dos alimentos, hábitos alimentares e culturais associados a esse produto”, defende.