O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) recomendou, e a Secretaria Extraordinária para a COP30 aceitou, que no cardápio aos participantes do evento seja oferecida “alimentação oriunda da agricultura familiar, dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, da produção agroecológica”.
Na edição de Baku, em novembro de 2024, a diretora de Operações da Secretaria Extraordinária para a COP30, Nilza de Oliveira, afirmou em entrevista coletiva para a imprensa internacional que “o que já acontece na alimentação escolar de municípios da região demonstra que temos capacidade local de atender a demanda da COP30 de forma sustentável e com alimentos de alta qualidade”. E completou: “Nosso objetivo é transformar essa experiência em um modelo a ser replicado para outros grandes eventos”.
A comida sustentável com alimentos de qualidade, entretanto, parece ser tema de relevância restrita apenas ao cardápio dos participantes da COP30. No menu de debates à mesa da diplomacia global, agroecologia é um ingrediente em falta.
A Comissão Organizadora da I Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional já denunciava em 2021, a respeito da Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares da ONU que ocorreria naquele ano, que o evento estava sendo “radicalmente cooptado pelas corporações”, mesmo que no âmbito da Cúpula os sistemas alimentares sejam compreendidos como “uma constelação de atividades envolvidas na produção, processamento, transporte e consumo de alimentos que afetam todos os aspectos da existência humana”.
No evento, no entanto, estão previstas propostas como o chamado mercado de carbono e novas alternativas energéticas, como as usinas eólicas, solares e a geração de uma frota de automóveis elétricos movidos a baterias, que têm sido criticadas por pesquisadores e movimentos sociais do campo por levarem conflito e impactos de saúde a territórios ocupados por populações tradicionais, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores, e exemplificado na denúncia de Roselita Albuquerque (ver pág. 16) acerca do que ocorre na região da Borborema, na Paraíba.
Letícia Tura, diretora executiva da FASE e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), observa que apesar de a agroecologia ser reconhecida como uma solução eficaz para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas, sua presença nas COPs tem sido limitada e, muitas vezes, marginalizada. Ela aponta que, historicamente, as COPs têm priorizado discussões sobre tecnologias de baixo carbono e mecanismos de mercado em detrimento da abordagem agroecológica. “Ela não é apenas uma tecnologia, ela propõe um projeto de sociedade. Ela fala das relações entre as pessoas, dos direitos territoriais, do combate ao racismo e ao machismo. Então, a agroecologia traz uma perspectiva bastante holística”, cita.
Tura historiciza como as COPs têm abordado os sistemas alimentares. “Foi na COP da Polônia (2018), em Katowice, que se constituiu um primeiro grupo de trabalho sobre agricultura, relacionando clima, agricultura e segurança alimentar. E isso passa por dentro das discussões de uso da terra. Depois disso, em 2022, no Egito, o debate de agricultura girou em torno basicamente das grandes cadeias internacionais de produção de commodities, que têm um impacto enorme sobre o clima. Do ponto de vista do transporte, elas emitem muito combustível fóssil. A agroecologia aparece nos grupos de discussão, mas de forma lateral, fala-se mais de ‘agricultura climaticamente inteligente’, ou ‘agricultura de baixo carbono’, discussões que partem dos grandes monopólios do agronegócio”, ressalta.
De acordo com ela, “a agroecologia em si é muito pouco debatida e, às vezes, quando entra é de forma capturada, corporativa”. Tura detalha: “Tem sido uma luta para que a agroecologia possa efetivamente entrar nesse debate garantindo uma perspectiva contra-hegemônica, holística, que signifique a entrada de toda uma categoria de sujeitos com a qual a agroecologia está lidando, que são agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas, população de quilombolas, toda essa diversidade que é presente nos territórios. Isso é muito pouco refletido na COP, e na COP30 ela ainda não entrou como um eixo específico, entra novamente de forma indireta porque o tema da floresta vai ser muito forte e é muito difícil você falar de combate ao desmatamento, da preservação da floresta se não falar sobre as cadeias internacionais de agroindústrias, de produção de commodities, agrícolas e pecuárias”.
Perguntadas sobre como a agroecologia poderia contribuir para o debate da COP30, as lideranças comunitárias ouvidas pela Poli avaliam criticamente o evento e defendem a participação da sociedade civil na busca por soluções globais diante do desafio da crise climática. O jovem Neiriel Terena lamentou a falta de reconhecimento sobre os conhecimentos tradicionais indígenas em fóruns internacionais como as COPs, defendendo que as soluções para a crise climática devem vir de quem vive e cuida dos territórios. “A gente percebe que quem vai para esses espaços são os nossos governantes, prefeitos, governadores, presidentes, ministros. Deveria ter a presença de quem executa as iniciativas, incentivar bastante a presença de agricultores, dos indígenas que estão fornecendo respostas dentro dos territórios, que estão ali protegendo, plantando, recuperando”, defende.
Por sua vez, Roselita Albuquerque acredita que o evento “vai ser um grande debate sobre o mercado de carbono, sobre ‘mercado sustentável’”. Para ela, isto não considera o fato de que as famílias já vêm conservando a natureza e buscando o equilíbrio com o meio ambiente há anos. “Nós temos muitos movimentos que estão construindo experiências de convivência com o semiárido, fundos rotativos solidários. Estamos falando dos agricultores que estão armazenando forragem no período do inverno para ter alimentação, para não ter que ir para a Caatinga e tirar alimentos dos animais. São experiências que deveriam ser ouvidas pelas autoridades”, ressaltou.
Para Miqueli Schiavoni, “houve uma mercantilização do clima, onde tudo se traduz em crédito de carbono”. De acordo com ele, empresas e organismos internacionais estão menos preocupados com a preservação do que com quanto gás do efeito estufa é permitido emitir, bem como se estabelecer como compensar em outros locais. “Os territórios, os povos, não aparecem nessa discussão. Mas eu tenho plena consciência e cada vez estou mais convencido de que a agroecologia é a nossa saída, é a nossa estratégia, é a nossa contribuição”, conclui.
Procurada pela reportagem, a Assessoria de Comunicação da COP30 não respondeu aos questionamentos da Poli sobre a ausência do tema agroecologia dos debates acerca das soluções para a crise climática.