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Entrevista: 
Suely Araújo

‘A tendência é uma lei que aumente o descontrole ambiental no país’

A campanha foi pelo veto integral ao projeto. Como era de se esperar, ele não veio. Mesmo assim, a coordenadora do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, comemora os 63 dispositivos do PL da Devastação que o presidente Lula deixou de fora quando sancionou a Lei 15.190/2025. “Ainda bem que o governo fez isso”, diz, defendendo que a sociedade civil precisa agora lutar para que esses vetos não sejam derrubados no Congresso. Mesmo essa improvável vitória, no entanto, não resultaria numa legislação que ela considere boa para o país. “Essa lei é um equívoco”, lamenta. Soma-se a isso o fato de o governo ter mantido mudanças que pesquisadores e militantes da área têm denunciado como graves retrocessos, com destaque para a Licença Ambiental Especial (LAE), que foi, inclusive, incluída na Medida Provisória (nº 1.308) apresentada pelo Executivo como complemento à lei sancionada. Nesta entrevista, Araújo comenta as principais decisões da resposta do governo ao Projeto 2.159/2021, explica como funciona o licenciamento ambiental no Brasil hoje e dá exemplos concretos dos efeitos prejudiciais que algumas das mudanças propostas podem causar ao meio ambiente e à saúde da população.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/08/2025 10h41 - Atualizado em 15/08/2025 10h58

Pedro França/Agência SenadoQual a sua avaliação geral sobre a resposta e as alternativas que o governo deu ao Projeto de Lei 2.159/2021 com os vetos, a edição de uma Medida Provisória e a apresentação de um novo PL ao congresso?

O governo procurou abranger os principais pontos com problemas do texto aprovado pelo Congresso. Essa lei nunca vai ser a lei ideal, porque a concepção é equivocada. O Congresso priorizou um olhar que vê a licença ambiental como entrave. E entrave a gente tira da nossa frente. No texto o que foi priorizado é a não licença, é o licenciamento flexibilizado, é o estabelecimento de prazos que na prática vão ser inexequíveis. Então, a concepção do texto equivocado dificulta até correções. Mas o governo buscou pegar os principais pontos com problemas e dar um tipo de caminho. Isso tem que ser reconhecido. Tem pontos importantes que foram vetados. São 67 artigos e 398 dispositivos e, desses, houve 63 vetos. Isso é bastante, 16% dos dispositivos foram vetados. Esse esforço todo tem que ser reconhecido e provavelmente é fruto de um intenso trabalho de articulação política interna ao governo. Porque os ministros da pauta de infraestrutura estavam favoráveis ao conteúdo aprovado pelo Congresso. Então, o fato de terem ocorrido esses 63 vetos reflete uma vitória provavelmente da Ministra Marina [Silva] e seus aliados dentro do governo. Eu, pessoalmente, esperava que, pelas pressões da área de infraestrutura, a maior parte do texto não fosse alterada.

A Licença Ambiental Especial não tem que existir

Mas tem problemas, principalmente na Medida Provisória 1.308, que trata da Licença Ambiental Especial [LAE]. Esse é o principal problema, na minha avaliação. Para mim, a Licença Ambiental Especial não tem que existir. Eu realmente acho inaceitável. Isso vem da emenda ao [Davi] Alcolumbre no Senado e provavelmente foi a troca política. Eu compreendo politicamente, mas não aceito do ponto de vista técnico. Essa lei é um equívoco.

Mas há análises segundo as quais a Licença Ambiental Especial seria de interesse também do governo federal para acelerar a exploração de petróleo no Foz do Amazonas. Qual a sua avaliação sobre isso?

A perfuração de petróleo do bloco 59 não precisa da lei porque tudo indica que essa licença sai no mês de setembro. Foi noticiado pelos jornais que já marcaram a data do teste pré-operacional. Isso é final de processo de licenciamento. Infelizmente, porque eu acho que essa expansão de petróleo na bacia sedimentar da Foz, em toda a margem equatorial ou em qualquer outra nova fronteira exploratória, é decidir com o olhar para o século passado. O Observatório do Clima defende que a exploração de petróleo deve continuar nas áreas já abertas e não em novas fronteiras. E o governo deve ter um cronograma de descarbonização, de redução dessa abertura de novas possibilidades, novos blocos, novas áreas exploratórias. Se o bloco 59, na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, provavelmente receberá licença no mês de setembro, esse processo não precisa da LAE. Agora, sim, a LAE pode ser usada para facilitar os futuros licenciamentos na mesma bacia sedimentar. Vários blocos foram leiloados agora em junho. O bloco 59 é o que está com o licenciamento mais adiantado, mas tem outros blocos sob licenciamento. Quando eu era presidente do Ibama, neguei a perfuração em cinco blocos da empresa Total do lado do 59. Depois a Petrobras adquiriu o controle desses cinco blocos e está relicenciando. Para esses outros blocos, sim, a LAE pode ajudar. E eu sinceramente acho que o senador Alcolumbre tinha isso em mente: toda a bacia sedimentar e não apenas o bloco 59.

A LAE pode e vai ser usada para vários empreendimentos de grande porte, com significativo impacto ambiental. Como é que dá para afirmar isso? Porque o texto já pressupõe EIA/RIMA [Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental] para todos os processos. Se fosse para empreendimentos de pequeno ou médio potencial poluidor, não haveria essa previsão expressa. Então, acredito que a LAE vai abranger hidrelétricas, estradas, mineração, uma série de empreendimentos de grande porte. Na verdade, ela pode abranger tudo que o conselho de governo entender que é estratégico. E isso é bastante subjetivo e bastante passível de mudança conforme o governo de plantão.

Qual é o problema?  No texto original dos parlamentares tinha o registro de que o processo iria ser monofásico. O governo tirou isso [nos vetos], mas na prática, o que ficou no texto ainda é processo monofásico porque só se gera uma licença, a LAE, que vai pegar o equivalente ao que hoje está na licença prévia, na licença de instalação e na licença de operação. O texto fala que a LAE é uma licença para definir diretrizes para localização, instalação e operação. É uma licença única. Não existe LAE 1, LAE 2 ou LAE 3. A LAE pode ter etapas, eles redigiram o artigo 5º da Medida Provisória nesse sentido. Mas etapas podem ser qualquer coisa: ‘agora nós vamos analisar o EIA/RIMA, agora nós vamos analisar o relatório de controle ambiental X...’. Qualquer tipo de análise documental pode ser uma etapa. A licença é única. Então, se a licença é única, ela realmente vai ser um processo monofásico.

Eu considero que isso é inconstitucional, porque você vai simplificar processos complexos. O artigo 170 da Constituição, que define os princípios da ordem econômica, quando fala de proteção do meio ambiente, fala para considerar os impactos dos produtos ou serviços. O que significa que você deve tratar [levando em conta] o quanto aquele processo gera impacto ambiental ou não. Você tem que fazer processos simplificados para os empreendimentos de baixo impacto ambiental e processos mais complexos para os de alto impacto ambiental. Eles estão invertendo a ordem. O texto da LAE está na Medida Provisória 1.308 e no PL 3.834. Eu acho que a tendência é a LAE ir parar no Supremo Tribunal Federal.

Uma das principais mudanças aprovadas pelo PL 2159, e criticada por ambientalistas, é a criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que dispensa empreendimentos de pequeno e médio porte de passarem por análise dos órgãos responsáveis para autorização, praticamente criando um autolicenciamento. Qual a sua avaliação sobre a contraproposta do governo em relação a esse ponto, que também foi vetado?

Em relação ao principal problema da LAC, melhorou. A LAC realmente é um autolicenciamento, é o único tipo de licença que não tem entrega de estudo ambiental. Então, você não faz análise de alternativas técnicas locacionais, que é a essência da avaliação de impactos ambientais. É realmente uma simplificação. Ela está sendo aplicada por alguns estados, mas não é aplicada no nível federal, que agora passará a ter essa possibilidade. Mas eu acho que no Ibama a LAC continuará sendo exceção, porque o Ibama, em geral, mexe com empreendimentos com alto impacto ambiental. O problema da LAC é principalmente o licenciamento estadual e municipal. Nós chegamos a fazer uma simulação no Distrito Federal e em São Paulo com [a utilização da LAC para empreendimentos de] médio potencial poluidor, que é o que os parlamentares aprovaram. E [vimos que] 90% dos processos estaduais acabariam tendo a possibilidade de serem beneficiados com a LAC. O governo colocou também mais requisitos ambientais para a LAC, que vão garantir que esse processo ocorra de forma mais restrita. Então, a correção do governo foi bastante importante.

A permanência das análises e das vistorias por amostragem é um problema

Permaneceu um problema só, na avaliação do Observatório do Clima, que é a questão da análise do relatório do empreendimento ser por amostragem e a realização de vistorias também. Isso estava no texto dos parlamentares e permaneceu. Como eu disse, a LAC não tem estudo ambiental. O empreendedor entrega um relatório de caracterização do empreendimento. Só que essa é uma mera descrição. E essa descrição não vai ser nem lida, porque a análise vai ser feita por amostragem. E com a vistoria por amostragem, você vai ter casos de empreendimentos que não vão ter controle ambiental nunca na sua vida útil, porque não entraram na análise do relatório por amostragem e nem foram vistoriados. Então, a permanência das análises e das vistorias por amostragem é um problema. Você pode ir gerando um descontrole ambiental inaceitável. E não precisava nem ter essa referência no texto, porque hoje, com a tecnologia que nós temos, basta que esse relatório de caracterização fosse já todo integrado num sistema do governo que analisasse até por Inteligência Artificial. Falar que só vai ser analisado por amostragem parece uma lei do século passado.

Um dos pontos muito criticados do projeto aprovado no Congresso, e vetado pelo governo, foi a ampliação da autonomia de estados e municípios no licenciamento ambiental. No entanto, já existe uma cera autonomia hoje porque a LAC, por exemplo, já é aplicada por estados e municípios. Eu queria entender como funciona essa divisão de responsabilidade e autonomia entre os entes federados no licenciamento ambiental hoje e o que mudará.

Nós não temos uma lei geral do licenciamento. Temos o artigo 10 da Lei nº 6938, de 1981, que é a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que instituiu a licença ambiental no país como um todo. Antes disso, já havia legislação estadual, principalmente nos estados industrializados, falando em licença ambiental. Em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, a legislação é anterior a 1981. As três esferas da federação podem legislar sobre meio ambiente, só que você tem que ter normas gerais nacionais, básicas, que são complementadas por estados e municípios. Nós não temos a lei geral do licenciamento, temos uma série de resoluções do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], que tem esse poder de estabelecer normas reconhecido pelos tribunais superiores, pelo Supremo. Então, as normas ambientais do Conama valem como se fossem leis. A resolução 237 do Conama, de 1997, que é uma bem ampla sobre licenciamento, fala que os estados podem criar outros tipos de licença ambiental. Eles criaram [a LAC] com base nessa possibilidade trazida pela resolução 237. O estado que criou primeiro foi a Bahia e outros estados foram copiando a LAC. Eu não sei o número total, mas devem ser pelo menos uns dez estados, com regras diferentes. Então, a ideia é que a lei trouxesse regras mínimas nacionais para garantir proteção ambiental no uso dessa ferramenta tão flexibilizadora.

Agora, a legislação estadual foi questionada no Supremo. E o Supremo tinha estabelecido que os estados tinham que manter a LAC para os empreendimentos de pequeno potencial poluidor. Os parlamentares, quando aprovaram essas regras gerais da LAC [autorizando-a] para [empreendimentos de] médio [potencial poluidor], estavam contrariando uma decisão do Supremo. O que o governo fez com o conteúdo que botou no Projeto de Lei 3.834 foi exatamente ajustar a LAC de forma que ela não colidisse com a posição do Supremo sobre o tema.

O projeto aprovado no congresso definia que o órgão regulador só poderia impor condicionantes sobre os impactos diretos dos empreendimentos. Isso foi vetado, mas o texto do governo propõe que as condicionantes tenham relação direta com o impacto causado. Qual a sua avaliação sobre isso?

O governo fez bem em alterar esse dispositivo porque a redação realmente foi feita para eliminar condicionantes sobre impacto indireto. Vou dar um exemplo: o desmatamento gerado pelo futuro asfaltamento do trecho do meio da BR 319, uma coisa bem polêmica. As previsões dos cientistas, dos técnicos da área, é de que, se houver esse asfaltamento, com a falta de governança ambiental que se tem hoje na região, o desmatamento dessa região vai multiplicar por pelo menos quatro vezes. Então, esse asfaltamento vai gerar a intensificação grande do desflorestamento no estado do Amazonas, que é um estado com floresta bem preservada, muito mais que o estado do Pará, por exemplo. E no estado do Pará, o grande vetor de desflorestamento foi exatamente a instalação de estradas. Quando instala ou melhora as condições da estrada, você facilita a abertura de ramais ilegais, que os infratores fazem no meio da floresta. A partir da estrada, eles fazem ramais que os colocam para dentro da floresta para tirar de forma mais fácil a madeira. Esse impacto na BR 319 é indireto, porque não é o desmatamento no leito da estrada, é na região. Então, com a redação que os parlamentares colocaram, esse tipo de impacto não poderia estar entre as condicionantes. O DNIT [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes] não vai virar fiscal, mas [num caso como esse] teria que garantir apoio à fiscalização do Ibama. A Norte Energia, lá em Belo Monte, dá apoio à fiscalização do Ibama, e ela não é fiscal. Ela custeia, por exemplo, lá na região de Altamira, a questão do contrato de aluguel de helicópteros do Ibama para fiscalizar. Está nas condicionantes de Belo Monte. Se [o projeto] fosse aprovado como os parlamentares colocaram, isso estaria vetado.

E o texto, nesse artigo, procura restringir as condicionantes que têm essa cara de política pública: instalar escolas, hospitais. Só que quando você faz determinados empreendimentos complexos, muda toda a dinâmica da região, gera migração, a população das cidades incha... Então, o empreendedor tem responsabilidade sobre isso. O texto deve garantir que possa ser exigida a instalação de uma escola ou de um posto de saúde, porque a prefeitura não tem condição de arcar com o que está sendo gerado. Esse tipo de condicionante, para os parlamentares, não deveria ocorrer na prática.

O governo mudou a redação, mas na avaliação do Observatório do Clima, ela ainda não está totalmente corrigida. Se tiver inchaço populacional, por exemplo, você tem que comprovar a relação direta com o empreendimento – [a palavra] ‘comprovadamente’ está presente várias vezes no texto do governo. E tem condicionantes, principalmente as compensatórias, que não precisam ter essa relação direta. As condicionantes têm uma ordem de hierarquia: primeiro você tem que evitar o impacto, depois você tem que mitigar e, se não conseguir, você pode prever condicionantes compensatórias. E nas condicionantes compensatórias, não precisa ter essa relação direta. Por exemplo, uma condicionante compensatória que tem na licença de operação de Belo Monte é instalar água e esgoto no município de Altamira. Isso não tem a ver com a hidroelétrica, porque é uma condicionante compensatória: diante dos danos gigantes que Belo Monte causa, no mínimo eles têm que ajudar no saneamento de Altamira. Pelo texto que está, mesmo com os ajustes do governo, você vai ter dificuldades nas condicionantes compensatórias. Então, a posição do Observatório do Clima é que houve melhora no dispositivo, mas que a redação ainda precisa de ajustes.

Eu queria que você comentasse o fato de esse projeto, que se tornou o PL da Devastação, ter nascido, 21 anos atrás, como uma proposta de ambientalistas que defendiam a criação de uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental.

Realmente, o projeto nasce de ambientalistas. A ideia da Lei Geral do Licenciamento veio de ambientalistas. Nasce para tentar organizar conflitos que existem entre as normas do Conama e as normas subnacionais. Isso é bastante ruim. Uma das intenções era também reduzir o nível de judicialização, que não ajuda ninguém, nem a proteção ambiental nem o setor empresarial. Mas, ao longo do tempo, ele foi se transformando na não licença, com priorização do dispositivo que trata das isenções, inclusive uma ampla isenção do agro, que continua no texto. O governo ajeitou um item da isenção do agro, que falava que eles teriam a dispensa de licença, mesmo com o CAR [Cadastro Ambiental Rural] não validado. Isso eles tiraram, mas a ampla isenção continua. Pelo texto, só tem licença a pecuária intensiva de média e grande porte. O resto não tem. Então, uma plantação de eucalipto de 10 mil hectares, se o CAR estiver validado, não tem licença. E a implantação de eucalipto não se resolve com APP [Área de Preservação Permanente] e Reserva Legal, porque tem outros danos ambientais à biodiversidade, o rebaixamento excessivo do lençol freático... Então, não dá para tirar a [exigência da] licença. Mas tiraram. E o governo não vetou. Eu até esperava que esse veto não viesse, porque o agro simplesmente derrubaria todos os vetos nessa situação.

Mas qual é a situação hoje? Eu não acho que o governo não vai ser vitorioso em tudo que vetou. O agro já está anunciando a derrubada de vetos, mas também não acho que eles vão derrubar todos. Por exemplo, a LAC ficar [valendo] só [para empreendimentos de] pequeno potencial poluidor, o próprio agro chegou a debater isso. Então, é difícil fazer previsões, principalmente em relação aos representantes políticos do agronegócio, mas eu acho que a LAC tem chance de ficar como o governo colocou. Eu acho que a tendência vai ser a derrubada de vetos importantes e, com isso, você traz inconstitucionalidades, porque a maior parte dos vetos foi por inconstitucionalidade. Por exemplo, [pelo texto aprovado no Congresso], terras indígenas que não estivessem homologadas e territórios quilombolas não titulados seriam simplesmente desconsiderados na análise e no licenciamento. Isso é muito inconstitucional. Se isso voltar, não tem como escapar do Supremo Tribunal Federal. Então, nós criamos uma situação agora de insegurança jurídica. Provavelmente, parte do que o governo colocou vai permanecer e ficaria fora desse questionamento judicial.

É uma lei que, mesmo consertada, ainda não é a lei correta

Mas, de qualquer maneira, a tendência não é uma lei boa. A tendência é uma lei que aumente o descontrole ambiental no país. Quando gera essa situação, você está potencializando degradação ambiental, problema de saúde pública, descaracterizações de patrimônios culturais, de modos de vida. Porque o licenciamento ambiental não fica só em fauna, flora, recursos hídricos. Ele pega tudo, inclusive, os aspectos culturais das comunidades. Vai piorar em termos de controle ambiental. É tudo que nós não precisávamos. Por isso que os movimentos da sociedade civil fizeram a campanha pelo veto integral. Porque é uma lei que, mesmo consertada, ainda não é a lei correta. Nós sabíamos que não viria o veto integral, que isso seria praticamente impossível. Mas a campanha foi para mostrar o quanto a lei é equivocada.

A sensação que eu tive com os 63 vetos é que ainda bem que o governo fez isso. E nós temos que mantê-los. Mas vai ser muito difícil. Então, vamos ter que lutar

Temos que esperar, nesses próximos meses, o que vai acontecer no Congresso e na esfera judicial. Não tem como comemorar. A sensação que eu tive com os 63 vetos é que ainda bem que o governo fez isso. E nós temos que mantê-los. Mas vai ser muito difícil. Então, vamos ter que lutar.

Queria que você nos ajudasse a entender os efeitos dessas mudanças no licenciamento ambiental para a Saúde Pública.

Vou dar um exemplo diretamente relacionado à Saúde Pública. Na década de 1970, a região de Cubatão, na Baixada Santista, era conhecida como Vale da Morte. Tinha inúmeros problemas de contaminação por poluição industrial. Além dessa contaminação, a região tinha um índice absolutamente elevado de crianças que nasciam com anencefalia. Havia relação entre esse número de crianças com anencefalia e a poluição, a contaminação das mães com poluição industrial. Foi o licenciamento corretivo, depois da legislação, que garantiu que Cubatão fosse um local normal. Tem um monte de indústria, não corrigiu 100%, mas é uma realidade completamente diferente. Houve programas sucessivos de instalação de filtros contra a poluição nas indústrias, de ajuste nas condições de cada indústria da região. A região ainda tem áreas com solos contaminados, mas o governo do estado de São Paulo tem controle de onde isso existe. É uma outra realidade.

O descontrole ambiental levava a situações como o Vale da Morte. Vamos dizer que o Congresso derrube na LAC [o veto para que ela valha também para empreendimentos de] médio potencial poluidor. Se isso acontecer, praticamente todo o parque industrial vai ficar com LAC. Além da questão do potencial poluidor, o governo botou no Projeto de Lei, [no trecho] sobre a LAC, uma série de requisitos: [o empreendimento] não pode estar em área ambientalmente frágil, não pode estar em APP... Vamos dizer que isso não seja aprovado, que volte ao texto inicial. Esse descontrole ambiental, sobre a poluição industrial, está diretamente relacionado a problemas de Saúde Pública. Assim como está relacionado com problema de Saúde Pública você flexibilizar muito os processos de licenciamento de empreendimentos de saneamento básico. Parece contraditório, porque o saneamento básico é Saúde Pública, até pela Constituição Federal. Mas você não pode eliminar as licenças, porque uma estação de tratamento de esgoto que esteja na beira d'água, se não for feita direito, vai poluir. E vai impulsionar problemas na área de saúde. O setor de saneamento fica defendendo que não tem que ter licença nenhuma. Você pode priorizar os empreendimentos de saneamento básico, pode simplificar, pode estabelecer ritos já padronizados para eles. Mas se simplesmente virar um apertar de botão ou não tiver licença para os empreendimentos de serviços de água e esgoto até a universalização dos serviços, como diz o texto aprovado pelos parlamentares que foi vetado, a gente pode simplesmente não estar controlando empreendimentos mal feitos.

O agronegócio é identificado muito diretamente como um dos setores empresariais com grande interesse nessas mudanças. Mas, neste momento, há também uma grande mobilização de setores da indústria contra os vetos do governo. A quem interessa esse projeto?

Essa pressão [pela aprovação do PL da Devastação]  sempre foi feita de forma articulada entre a Frente Parlamentar da Agropecuária e a Confederação Nacional da Indústria, com a mesma intensidade

A Confederação Nacional da Indústria [CNI] aprovou esse projeto desde que ele começou a ser visibilizado, desde sempre. É que no Congresso Nacional acaba que a Frente Parlamentar da Agropecuária aparece mais, mas essa pressão sempre foi feita de forma articulada entre a Frente Parlamentar da Agropecuária e a Confederação Nacional da Indústria, com a mesma intensidade. Tem exceções no agronegócio, tem exceções na indústria. Há empresários que estão preocupados com os efeitos dessa lei. Inclusive, chegou a sair em jornais o pessoal ligado ao grupo do [Instituto] Ethos e o pessoal da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura manifestando algumas preocupações. A Fecomércio manifestou e continua a manifestar preocupação, tem uma posição bem protetiva do meio ambiente em relação a esse texto. Então, não é todo o setor empresarial [que apoia]. Mas a Frente Parlamentar da Agropecuária, as entidades do agronegócio, em geral todas, e a Confederação Nacional da Indústria, infelizmente, sim.

Eu não consigo nem entender muito bem o posicionamento da CNI, que é até mais afetada do que o agro com licença ambiental. Todos os empreendimentos industriais têm licença. Mas, nessa posição, eu não gostaria de ter, por exemplo, 27 regramentos diferentes. E é isso que a lei vai gerar se cair o veto sobre a questão federativa. O governo botou um artigo ressalvando as diretrizes federais. Porque assim pode ter normas estaduais, municipais, mas tem que respeitar as diretrizes federais. Se isso cair, nós vamos ter 27 normas completamente distintas para licenciamento. E eu acho estranho o setor industrial achar que isso é bom. Porque as grandes empresas têm indústria em mais de um estado. É muito estranho a indústria achar que é positivo para eles essa fragmentação normativa.

Tem algum aspecto da resposta do governo federal ao PL 2.159 sobre o qual eu não tenha perguntado e você queira comentar?

Tem um ponto que eu gostaria de destacar, que é a questão do dispositivo que fala que o licenciamento independe da apresentação de certidão de uso do solo municipal e outros atos, como outorgas, que não sejam expedidos por órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente. Ele não está revogando a legislação sobre isso, o que eles estão falando é que não vai ser requerido no licenciamento. Isso não foi vetado e eu acho importante... Essa é a grande queixa da Anama, a Associação dos Órgãos Municipais de Meio Ambiente. Porque ninguém ganha com essa não apresentação. Uma termoelétrica, por exemplo, precisa de muita água. Você vai licenciar a termoelétrica sem ter a certeza de que a outorga do direito de recursos hídricos vai ser dada. Como é que você vai dar licença sem garantir que vai ter água? E, pela lei, os órgãos de recursos hídricos não são considerados do Sistema [Nacional de Meio Ambiente]. Ou você vai licenciar uma indústria numa zona exclusivamente residencial e depois o município vai barrar. Não tem por que esse dispositivo existir. Isso não vai tornar o licenciamento mais ágil. E, infelizmente, ele não foi vetado.