Uma triste coincidência marcou o primeiro dia do Simpósio Nacional de Saúde, evento promovido pela Câmara dos Deputados para contribuir com as discussões da 15ª Conferência Nacional de Saúde (CNS). É que há um ano, também em 17 de junho, os agentes comunitários de saúde e de combate às endemias comemoravam a aprovação da lei 12.994, que instituiu o piso nacional e as diretrizes para o plano de carreira da categoria. De lá para cá, a maior parte dos gestores estaduais e municipais se recusou a aplicar o piso, sob o argumento de que, antes, a lei precisaria ser regulamentada por decreto do governo federal. Aproveitando a presença do ministro da Saúde, Arthur Chioro, e de outras autoridades da pasta, dezenas de agentes questionaram nos debates: “onde está o decreto?”.
Chioro informou que o decreto já está na Casa Civil, mas reconheceu que não sabe quando será assinado pela presidente Dilma Rousseff. O ministro também reconheceu a demora na elaboração do texto: “O atraso não se deve à Fazenda, ao Planejamento ou à Casa Civil. Foi nosso, devido ao processo de negociação que o Ministério da Saúde tem que fazer com prefeituras e estados, uma negociação mais delicada, mas que está sendo feita com compromisso”.
Já o secretário da Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde do Ministério da Saúde (SGTES/MS), Hêider Pinto, presente no Simpósio na parte da tarde, afirmou que “do ponto de vista do governo federal está claro que a lei foi aprovada”. Ele explicou que a pasta instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar o decreto que, agora, trabalha na criação de “um programa de apoio aos municípios para garantir que se cumpra o que está na lei”, dando como exemplos a realização do concurso público e a formação inicial. Questionado sobre a formação técnica dos agentes, o secretário da SGTES lembrou que algumas Escolas Técnicas do SUS (ETSUS) oferecem o curso, mas não deixou claro se o Grupo de Trabalho irá avançar nessa direção. Ainda sobre as ETSUS, Hêider afirmou que está em curso uma “importante articulação” com o Ministério da Educação para que essas instituições participem do Pronatec.
Baixas na programação
Promovido pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados em parceria com a Frente Parlamentar da Saúde e o Conselho Nacional de Saúde, o Simpósio tem como tema ‘Saúde: Direito de Todos, Dever do Estado’. Segundo a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), que propôs o evento, o intuito foi superar a fragmentação do debate que, segundo ela, muitas vezes dá a tônica das discussões de uma comissão parlamentar e também acomete os relatórios finais das Conferências, muito extensos “com mil pontos que, às vezes, nem quem participou consegue ler”. Nesse sentido, a parlamentar afirmou que a contribuição do simpósio seria a abordagem de “grandes temas, diretrizes e formulações no campo da saúde”.
O objetivo, no entanto, ficou comprometido pela ausência de diversos debatedores previstos na programação, como o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa; o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Lélio Bentes; o pesquisador e sanitarista Gastão Wagner (que seria substituído por Nelson Rodrigues dos Santos, que também não foi); o economista Márcio Pochmann; e o técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio.
Financiamento e participação
ntre os debatedores e parlamentares presentes, questões como mais recursos para o SUS e entraves à participação popular na elaboração das políticas públicas mereceram destaque, e o Movimento Saúde + 10 foi citado diversas vezes, justamente por simbolizar uma e outra luta.
Nas palavras do presidente da Abrasco, Luis Eugenio Portela, “só a sociedade vai resolver o problema do financiamento do SUS e de outras políticas públicas”. Portela criticou o ajuste fiscal promovido pelo governo federal, que, segundo ele, vai na contramão de exemplos internacionais que demonstram os resultados ruins dessa política e lembrou que a opção pelo rentismo e pelo capital financeiro se apresenta há muito tempo, com o pagamento do serviço da dívida pública, que abocanha quase metade do orçamento da União. Ainda segundo Portela, os ataques ao SUS – como a Proposta de Emenda à Constituição 451, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que propõe que plano de saúde seja um direito de todo trabalhador – o colocam em uma encruzilhada: “Se o SUS não avançar, ele irá retroceder”.
Esses dados da conjuntura mostram que a 15ª Conferência “não veio para cumprir calendário”. A avaliação é da presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro, que destacou que “o povo brasileiro quer ser ouvido pelo parlamento e pelo governo”. Segundo ela, as discussões sobre a saúde não podem ser descoladas de uma crítica ao modelo de desenvolvimento do país, que além de concentrar poder e renda, degrada o ambiente e coloca o sujeito como objeto dos interesses do capitalismo. “Queremos construir um Estado democrático de direito, mas temos uma herança conservadora e autoritária, de tomar decisões de cima para baixo, sem participação popular”, afirmou, criticando o projeto da Reforma Política, que tramita na Câmara e a aprovação da entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde. “Nós não aguentamos mais mobilizar a sociedade por mais recursos para o SUS e ver um dos maiores projetos de iniciativa popular ser tratado da forma como foi. Tem que alterar a tramitação da Iniciativa Popular. O problema não é só financiamento, é que essa casa esteja aberta e legitime outras formas de participação”.
Já no debate, parlamentares como Osmar Terra (PMDB-RS), Chico D´Angelo (PT/RJ) e a própria Jandira Feghali destacaram a necessidade de se aprovar novas fontes de recursos para o SUS. Terra, que atualmente preside a Frente Parlamentar de Saúde, citou o recente – e polêmico – reajuste que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou para os planos de saúde individuais, de 13,55%, acima da inflação, destacando que o inverso aconteceu com o orçamento público. “A própria ANS reconhece que para ajustar o seguro privado tem que dar o dobro da inflação por conta da incorporação tecnológica. Já no setor público se retira 10% do orçamento”, afirmou, citando o corte no orçamento do Ministério da Saúde. Já D´Angelo se pronunciou favorável à rediscussão da CPMF, enquanto Feghali lembrou a taxação de grandes fortunas e o fim das isenções fiscais para planos de saúde.
O ministro da Saúde, Arthur Chioro, concordou que o SUS é subfinanciado, mas ponderou: “Muitas vezes todos os nossos problemas se colocam no subfinanciamento, mas temos capacidade e necessidade de avançar em inúmeros outros desafios”, afirmou em referência à revisão do pacto federativo, com vistas a maior responsabilização dos estados pelas regiões de saúde. Chioro lembrou que em abril, o país chegou à marca de 55 milhões de pessoas com planos de saúde privados: “Esses brasileiros com planos de saúde são restituídos no imposto de renda, como só nesse país acontece”. Contudo, o ministro destacou principalmente o avanço da judicialização da saúde. Segundo ele, em 2015 o governo federal vai gastar R$ 15 bilhões com medicamentos e a previsão é que R$900 milhões desse total sejam determinados por ações judiciais, padrão que se reproduz nos orçamentos estados e municípios. Para ele, há uma estratégia internacional da indústria que inclui utilizar o poder judiciário como uma “plataforma de lançamento para insumos, equipamentos e medicamentos”. Chioro citou ainda, sem dar maiores detalhes, que deve haver uma revisão na estrutura do Ministério da Saúde “para modernizá-lo, enxugá-lo de acordo com os desafios do SUS”.