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Pesquisadores discutem a participação popular nas políticas públicas de Saúde

Segunda mesa do evento que comemorou os 34 anos da EPSJV evidenciou a importância da participação popular para o Sistema Único de Saúde
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 23/08/2019 12h27 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Saúde’ foi o fio condutor da mesa de debate que fechou o primeiro dia do seminário 'Participação popular na construção de políticas públicas', realizado em comemoração aos 34 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) nos dias 19 e 20 de agosto. Nela, estiveram presentes a professora aposentada da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) Eliana Labra, o conselheiro municipal de saúde de São Paulo, Seiti Takahama, e o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, André Dantas.

Tempos difíceis

“O sistema participativo, que precisou de tanta luta para ser construído, está sendo destruído. Estamos vivendo uma época de obscurantismo, muito pior que a ditadura militar”, destacou Eliana ao iniciar sua fala.  Segundo a professora, na ditadura empresarial-militar brasileira, ao menos existia um plano de desenvolvimento nacional, com verbas para ciência e tecnologia: “Hoje há uma desvalorização do país, da história, dos valores, dos cidadãos”.

Eliana destacou que a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que criou as bases para implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1986, houve uma grande conquista – a possibilidade de incluir a participação da população organizada na formatação e no funcionamento desse sistema de saúde. “O SUS inclui do rico ao pobre, é a construção mais inclusiva que tem na América Latina e em muitos países do mundo. Foi uma saga estar em plena ditadura e pensar um sistema público, gratuito e para todos. Incluir a população foi uma tentativa de incorporar aos cidadãos a responsabilidade de ajudar a melhorar esse funcionamento. É escutar a voz do povo através dos conselheiros”, destacou.

O controle social

Segundo a professora, existem condições sociopolíticas que possibilitam uma participação consciente e que levam os cidadãos a pensarem nos interesses comuns, e não meramente na defesa de seus interesses privados. São eles: o capital social, o espírito cívico e o sentimento de pertencimento. “É fundamental conseguir estabelecer um grupo que, entre si, tenha relação de reciprocidade, confiança e de solidariedade. A participação nos conselhos desperta o interesse para a coisa pública, a importância de ser cidadão”, apontou.

Outra questão é saber como essas redes de participação, e no caso, o conselho de saúde funciona: “Até que ponto pode influenciar de fato na decisão de políticas de saúde? O conselho de saúde não tem a obrigação de implementar políticas, mas sim de sugerir”.

Na mesa, Seiti Takahama elencou problemas e possibilidades na participação popular em conselhos. Segundo ele, o conselheiro deve participar da gestão das unidades de saúde e das supervisões técnicas feitas pelo próprio município, respeitando as demandas dos diferentes segmentos da comunidade; participar da elaboração da agenda local de saúde, organizar reuniões do conselho com os grupos que representa, estimulando a participação de movimentos sociais.

O grande desafio é que os conselheiros de saúde não conhecem o caminho que devem seguir frente à demanda trazida pela população, desconhecendo as leis e o seu próprio papel, continuou Takahama. “Este é um problema do Brasil todo. Por essa razão, precisamos focar na educação permanente desses profissionais”. E destacou algumas causas: “A falta de proatividade dos militantes em busca das diversas fontes de conhecimento e de formação política nos espaços de reflexões e exercício de cidadania e cultura”.

Se essas questões fossem solucionadas, Takahama garantiu que seria possível ter um conselho com pessoas capacitadas  para dar continuidade à luta pelo direito à saúde, com uma comunidade participativa e consciente de seu papel. “Cabe a nós atuarmos sobre a conjuntura enquanto sujeitos individuais ou coletivos, buscando estratégias que possam contribuir para a resistência contra modelos que sabidamente são perniciosos à democracia e para a garantia de direitos arduamente conquistados com muita luta e envolvimento da população”, destacou.

Um problema de gestão ou de estratégia?

“Controle social é conquista, é produto de luta popular”, defendeu André Dantas, contrapondo: “Entretanto, estamos diante de uma crise profunda da classe trabalhadora. Isso não invalida as conquistas, mas a eficiência de uma luta também se mede pela capacidade de defender essas conquistas. E estamos muito aquém de defender essas conquistas”.

Dantas apontou que costuma aparecer em diversos textos e na fala de militantes uma certa avaliação da experiência do controle social: a de que existem diversos problemas e déficits organizacionais. E, em geral, eles são atribuídos ao campo da gestão, portanto,  poderiam ser solucionados por esse campo. “Embora existam e precisem ser atacados, não se trata de problemas de gestão. O centro do problema está no registro da estratégia”, revelou.

Segundo ele, quando se acredita que não há uma luta de classes ou que é possível vencer as batalhas majoritariamente no plano institucional e não na luta popular, essa luta é capturada. “É comum que ainda se veja por parte de atores políticos uma defesa de uma prática de fazer política nesses termos, mais no plano institucional do que na base. É isso que tem que ser colocado no centro do debate, se esse teor da política tem condição de bancar os enfrentamentos que temos”.

O professor-pesquisador ressaltou que é preciso reconhecer os erros e fazer uma autocrítica. “Porque apostamos na possibilidade de conviver harmoniosamente com o capital privado na saúde, que era possível uma conciliação de classes e a construção de um Estado de bem estar social tardio no Brasil, mesmo sendo uma formação periférica e dependente”, apontou, acrescentando: “São essas apostas que instituem uma prática política determinada, que supervaloriza a máquina do Estado, como se fosse um lugar que contém poder fisicamente”.

Para Dantas, a luta pela construção do SUS não foi feita com ocupação de espaços na máquina institucional meramente. “O SUS é energia popular. Então, como a gente faz a defesa disso agora sem a mesma energia?”, questionou, afirmando que houve um tempo em que se achava que uma vez as conquistas sendo escritas no plano da lei, elas não retrocediam: “Mas elas retrocedem com lei e tudo”.

E foi nesse cenário de crise, que o controle social foi implementado, na abertura dos anos 90. Para Dantas, isso explica porque ele nunca foi como todos esperavam que fosse. “Não dá para continuar insistindo que é através dessas instâncias, sem a luta popular, que a gente vai manter o SUS”, apontou, acrescentando que o primeiro desafio para reconstruir os instrumentos de luta é entender o que é a classe trabalhadora atualmente: “Hoje temos uma classe trabalhadora fortemente fragmentada, sindicatos muito imóveis diante de uma conjuntura tão pesada porque suas lideranças se burocratizaram, e temos uma geração mais jovem se inserindo no mercado com trabalhos precarizados, que não viveu um momento de formação política que estava mais conduzido por partidos e sindicatos”.

Qual a força da institucionalização?

Durante o debate, Eliana fez uma crítica quanto à institucionalidade do SUS. “Não pode ter um sistema de saúde que é uma sigla, porque não tem força. Tem que ter uma instituição, tem que ter porta de entrada, com letreiro e diretor. O SUS não tem identidade. Quem é o chefe do SUS?”, questionou, dizendo que já falava isso mesmo antes da Constituinte.

Para Dantas, a institucionalização de políticas quase sempre é vitória e derrota ao mesmo tempo, e não há uma batalha que uma vez ganha está eternamente garantida. “É preciso continuar tencionando a máquina para que aquela vitória que se expressou na institucionalização, continue. Se a gente considera que uma vez que virou política pública e institucionalizou pode voltar para casa e aliviar a pressão, [o processo] reflui. Essa aposta de que a luta institucional se basta e que não é preciso continuar investindo em luta popular é parte da nossa derrota hoje”. Segundo o professor-pesquisador da EPSJV, desconsiderar isso como problema é ilusão. “Não é uma recusa de toda e qualquer institucionalização. O controle social e o SUS são conquistas. O problema é quando essa luta se isola no campo institucional e a própria classe que luta não percebe”.

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