Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

NOTA DA EPSJV À SOCIEDADE BRASILEIRA SOBRE A CONSULTA PÚBLICA PARA MUDANÇA DO CATÁLOGO NACIONAL DE CURSOS TÉCNICOS

O Ministério da Educação (MEC) iniciou no dia 15 de março de 2022, com duração de 10 dias, a Consulta Pública para atualização do Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia (CNCST) e do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT).  Como parte de seu processo histórico de ampla participação em todas as estratégias de diálogo e fortalecimento da educação profissional em saúde no Brasil e nos países do Sul global, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), unidade técnico científica da Fiocruz, decide não participar da Consulta Pública, razão pela qual publiciza esta nota e convoca demais instituições para debater os pontos a seguir.

ANTECEDENTES

Em agosto de 2021, a EPSJV foi convocada para uma reunião sobre a atualização do CNCT conduzida pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC), no âmbito dos cursos técnicos do eixo ambiente e saúde. A atualização foi centrada, exclusivamente, na definição da carga horária presencial mínima dos cursos, evidenciando que a disputa na educação profissional em saúde passava a ter como foco a organização curricular com a ampliação da Educação a Distância, tendo como elemento prioritário para o debate a organização do mínimo de presencialidade nos referidos cursos.  Naquele momento, foi evidenciada a ausência, naquele Grupo de Trabalho, da participação de representantes da Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS), composta por 40 escolas técnicas, centros formadores de recursos humanos e escolas de Saúde Pública do SUS presentes em todos os estados do Brasil. Tais instituições constituem a referência histórica na discussão da formação dos trabalhadores de nível médio do SUS enquanto política pública. Do mesmo modo, representantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede EPCT) não se faziam presentes. 

Em função da discordância da metodologia de discussão adotada e da composição restrita do grupo de trabalho, a EPSJV anunciou, em setembro de 2021, sua saída do referido GT. Agora, em março de 2022, a produção desse grupo se apresenta publicamente expressando as preocupações identificadas inicialmente pela  EPSJV: a publicação de um novo catálogo com uma redução expressiva da carga horária presencial para a formação dos trabalhadores técnicos em saúde, comprometendo assim a qualidade do processo formativo e, em decorrência, a atenção à saúde no nosso país.  
 

CONTEÚDO DA CONSULTA PÚBLICA 

Sobre a carga horária mínima presencial

A resolução CNE/CP nº 1, de 5 de janeiro de 2021, define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica. No texto das diretrizes, afirma-se no art.26 " § 6º: “Os cursos oferecidos na modalidade de Educação a Distância (EaD), com exceção dos cursos na área da Saúde, que devem cumprir carga horária presencial de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento), devem observar as indicações de carga horária presencial indicadas no CNCT ou em outro instrumento que venha a substituí-lo”.

Essa flexibilização da carga horária presencial para 50% da carga horária total do curso já era motivo de preocupações para as instituições públicas e movimentos sociais. Neste momento, o panorama fica ainda mais agravado frente à atual consulta pública com a proposição de mínimos que variam entre 20% e 58% da carga horária para os diferentes cursos. 

Os sentidos dessa flexibilização apontam para a redução dos custos da educação básica e profissional materializadas na Emenda Constitucional 95/2016, com consequente restrição do direito a estratégias formativas de caráter emancipatório e humanista, fundamentais para o exercício profissional na área da saúde. Essa proposta de redução da formação dos trabalhadores em saúde, ocorre também em uma conjuntura de implantação da contrarreforma do Ensino Médio que tende a instituir a redução de uma formação crítica e o aligeiramento dos processos formativos.

A proposta de redução da carga horária presencial mínima dos cursos técnicos representará um impacto importante sobre os planos curriculares, comprometendo ainda mais a aprendizagem dos estudantes. Na área da saúde, na qual há predominância de cursos técnicos na forma subsequente, é preciso considerar que boa parte dos alunos são adultos trabalhadores, mulheres com múltiplas jornadas de trabalho, inseridas ou não nas atividades do setor de saúde.

Essa prevalência está fortemente associada à naturalização da inserção não qualificada de trabalhadores nos serviços, sob o histórico argumento da urgência das demandas na área. Por isso mesmo, a participação de agentes já contratados nos cursos de formação técnica esbarra, quase sempre, nas dificuldades de liberação pelas chefias imediatas. No Parágrafo Único do Art. 8º da Portaria MS 3.241/2020, que institui o Programa Saúde com Agente (Brasil, 2020), afirma-se que “a participação dos ACS e ACEs nos cursos de formação técnica ocorrerá sem prejuízo do exercício de suas funções”.

Sobre a forma de realização da carga horária mínima presencial 

Além da flexibilização da carga horária, propõe-se a "carga horária mínima total, seja na sede, em polo de apoio presencial ou outro ambiente de aprendizagem, considerando a necessidade de supervisão pedagógica direta".  Esta proposição de diferentes "formas/espaços" de realização do mínimo de carga horária presencial, ou, dito de outra forma, como/onde realizar o mínimo do mínimo, evidencia a possibilidade de condição de formação autoinstrucional, ou realizada exclusivamente em serviço, o que representa um retrocesso, considerando a atividade do cuidado em saúde e o investimento de mais de 30 anos na construção da RET-SUS para superação do modelo precário de ensino em serviço praticado até então. Há uma secundarização do ambiente escolar, formativo em sala de aula, ocorrendo a substituição do ensino à prática no serviço com base no pragmatismo sem, no entanto, a garantia de articulação com o momento de estudo teórico para qualificação da prática. 

Essa indefinição sobre o local onde realizar a formação fragiliza, por outro lado, a concepção de escola pública, ou de instituto público, a quem compete realizar tais estratégias formativas e que deve ter, para tanto, estrutura necessária e pessoal qualificado com experiência acumulada para sua execução. 

Uma vez que o processo de aprendizagem passa a ser predominantemente realizado com o uso integrado de tecnologias da informação e comunicação, valendo-se de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA), não está detalhado na proposta se esse processo ocorrerá no tempo de serviço dos estudantes-trabalhadores ou se demandará o uso de horários alternativos.  O aumento da carga horária passível de ser realizada à distância tende a sobrecarregar os trabalhadores, retirando-lhes o direito ao tempo livre, de descanso e convívio com suas famílias, e privando-os do momento do encontro em sala de aula, para o compartilhamento coletivo de experiências, impondo barreiras à construção de saberes a partir do estudo teórico das bases que constituem o trabalho em saúde na sua relação com a prática profissional. Há uma redução não somente quantitativa da carga horária presencial, mas também qualitativa no que se refere à proposta pedagógica de formação em saúde.

Tal como preconizado no Artigo 33 da Resolução CNE/CP Nº1/2021, a EaD deve “integrar as cargas horárias mínimas de cada habilitação profissional técnica e tecnológica” (BRASIL, 2021). Estas atividades, também qualificadas nos planos curriculares como “atividades de dispersão”, apresentam-se, a nosso ver, como arranjos precários em disputa com os espaços da rotina dos serviços e privilegiam a dimensão prática do saber-fazer. Atravessadas por relações de poder hierárquicas, que frequentemente desvalorizam os saberes e práticas dos trabalhadores técnicos, tais propostas mostram-se incompatíveis com um processo pedagógico que almeja a melhoria da qualidade da atenção e dos serviços prestados à população.

Os prejuízos da expansão desmedida da EAD na formação técnica em saúde podem oferecer riscos à qualidade da formação de seus trabalhadores, além dos riscos que esses profissionais podem causar à sociedade de imediato, a médio e a longo prazo.

Compreendemos que a tentativa de regulação nesse item não é apenas uma questão de legislação ou de carga horária, mas de concepção de formação humana aligeirada pautada pela lógica da precarização da força de trabalho e do acesso de novos setores educacionais privados aos recursos públicos.

O problema se agrava, também, pela ausência de balizamentos para a parte não presencial, abrindo brechas que permitam que essa parte da formação ocorra de forma autoinstrucional, uma contradição se pensarmos que a atividade do cuidado em saúde é, necessariamente, uma atividade social, relacional e de proximidade.

Diante do exposto, a EPSJV/Fiocruz propõe a defesa de um projeto político para a educação profissional em saúde, de modo que:

• O processo de elaboração das consultas públicas pelos órgãos governamentais esteja associado a metodologias participativas e não somente à validação das estratégias de deliberação definidas por grupos de interesses privados e mercadológicos;
• As novas tecnologias educacionais sejam apropriadas pelas instituições e usadas, no caso dos cursos técnicos, em caráter minoritário e complementar às atividades presenciais;
• Não seja permitida na modalidade EAD, a alocação de disciplinas de caráter assistencial e de práticas que tratem do cuidado/atenção em saúde individual e coletiva;
• Seja valorizada a formação técnica em sua modalidade integrada ao Ensino Médio. E que a formação subsequente seja pautada em um processo educativo para os trabalhadores técnicos em saúde de caráter geral, crítico e humanista, que supere exigências da flexibilidade e do pragmatismo que constam na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nas Novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica.

 

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Conselho Nacional de Saúde (CNS)

Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

 

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Portaria MS Nº 3.241. Institui o Programa Saúde com Agente, destinado à formação técnica dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias. Brasília: DOU, 2020.

BRASIL. Resolução CNE/CP nº1/2021. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica. Brasília: DOU, 2021. 

BRASIL. Proposta de Atualização do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos e Tecnológicos. Consulta Pública. Brasília: SETEC/MEC, 2022. Disponível em: https://consulta.catalogosept.com.br/cncst/aviso-sugestao-cnct