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Evento debate efeitos da ditadura sobre gerações

Seminário sobre Direitos Humanos discutiu efeitos da violência de Estado sobre os 'filhos' de vítimas das ditaduras militares na América Latina.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 02/10/2008 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Debater os efeitos da violência de Estado que sobrevivem às diversas gerações nos países do Cone Sul: essa era a proposta do Seminário sobre Clínica e Direitos Humanos organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que aconteceu no dia 26 de setembro. Para isso, foram convidados palestrantes membros de entidades que desenvolvem trabalhos de ordem terapêutica com pessoas afetadas direta ou indiretamente pelos regimes ditatoriais. Estiveram presentes Simona Ruy-Peres, pedagoga do Centro de Saúde Mental e Direitos Humanos (Cintras), do Chile; Mariana Lagos psiquiatra e psicanalista da Equipe Argentina de Trabalho e Investigação (EATIP); Miguel Scapusio, diretor e psicólogo do Serviço de Re-habilitação Social (Sersoc) , do Uruguai; e Tânia Kolker, médica e psicanalista do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), do Rio de Janeiro. O evento contou ainda com a participação de Marcos Besserman Vianna, do Grupo de Direitos Humanos e Saúde Helena Besserman (GDIHS/Fiocruz), convidado para ser debatedor da mesa.






Chile: estudo dos jovens






Substituindo a psiquiatra Cecília Vera, que não pôde comparecer, Simona Ruy-Peres abriu sua fala dando destaque ao trabalho realizado por Cintras na investigação das mudanças nos perfis dos beneficiários desde que a entidade foi criada, em 1985: “Nos primeiros anos atendíamos ao interessado direto, saído da tortura, do exílio, da clandestinidade. Depois foram surgindo os parentes dessas pessoas, as chamadas segunda e terceira gerações, que embora não tenham tido esse contato mais imediato com a violência, também foram afetados por ela”, relatou. Para Simona, uma das características mais marcantes dessas gerações posteriores é um “profundo sentimento de tristeza e de ausência na tentativa de completar a lacuna do que se passou com o familiar ausente”. 






Ela explicou que a entidade tem como público mais numeroso os adolescentes e que essa particularidade gerou um estudo sobre a geração nascida pós -1990. “Nessa investigação procuramos, de um ponto de vista mais sociológico e global, entender o que se passa na nossa sociedade – analisando jovens beneficiários e não-beneficiários. Esse estudo revela algumas das principais questões com as quais o jovem tem que lidar”, disse, destacando, como exemplos, a adicção por drogas pesadas e a dificuldade de adaptação frente aos apelos do consumismo. Para a pedagoga, outra questão que se coloca é até que ponto a democracia se instaurou de fato nos países latino-americanos: ”Sou muito cuidadosa em usar o termo democracia. Não há indícios de que estejamos vivendo uma democracia plena. A violência policial continua, principalmente contra os jovens menos favorecidos. As marcas da ditadura estão longe de terem se apagados e vão muito além do que vemos no dia-dia”, disse.






Argentina: obstáculos à democracia






“A situação de impunidade reina na Argentina”. A frase, de Mariana Lagos, representante da EATIP, organização criada em 1990 por representantes de um grupo que prestava assistência psicológica ao movimento que ficou conhecido como Mães da Praça de Maio, se refere ao desaparecimento de Julio Jorge Lopez. Segundo ela, o caso do ex-preso político da ditadura seqüestrado, em 2006, quando estava a caminho de dar seu testemunho final no julgamento de Miguel Etchecolatz, ex-diretor de investigações da polícia de Buenos Aires, demonstra como o país ainda precisa avançar na democracia: “Esse acontecimento causou uma retraumatização”, disse.






Além da obstrução dos processos judiciais movidos contra repressores da ditadura, Mariana destacou outros obstáculos que a Argentina enfrenta na questão dos direitos humanos: “Temos os casos de gatilho fácil, que são atos policiais de violência contra jovens e pobres, crise no sistema penitenciário, colapso do sistema público, condições de trabalho degradantes para uma grande parte de trabalhadores argentinos, criminalização de movimentos sociais...”. Para a médica, também é grave a situação das crianças seqüestradas: “Acho importante mencionar a luta pela restituição dos filhos de presas políticas, que foram seqüestrados e entregues para outras famílias. Estima-se que o terrorismo de Estado tenha tirado de suas mães cerca de 300 crianças”, avaliou.






Uruguai: impunidade






Segundo Miguel Scarpusio, o Uruguai viveu uma situação particular nos anos pós-ditadura, explicitada pela ratificação popular da lei de Caducidade de Intenção Punitiva do Estado, que impedia que os responsáveis por torturas, seqüestros, violações, ocultamento de cadáveres e assassinatos fossem punidos. Promulgada em 1986 pelo parlamento, a lei foi a plebiscito popular dois anos depois, mas não obteve o número suficiente de votos para ser anulada. “Isso mostra como a impunidade está entranhada na sociedade”, afirmou. Para ele, “as negociações políticas para sair da ditadura tiveram conseqüências funestas, que contribuíram para que nossas sociedades não se tornassem, em muitos aspectos, democráticas”. O psicólogo lembrou ainda que os governos neoliberais e as políticas de globalização instituídas tiveram um papel no silenciamento, por implantarem uma lógica  “de esquecimento de etapas históricas”.






O diretor do Sersoc também falou sobre o aumento na procura por ajuda: “Notamos o aumento das consultas da segunda geração, que começa a se sentir afetada por situações vinculadas ao passado de seus familiares”. Criado em 1984, um ano antes da ditadura uruguaia chegar ao fim, o Sersoc nasceu como um projeto solidário de um grupo de profissionais da saúde voltado para as pessoas afetadas pela violência.






Brasil: despolitização






Tania Kolker, do Grupo Tortura Nunca Mais, abriu sua fala se referindo a um “passado que insiste em não passar”.  A médica explicou, durante sua apresentação, como o silenciamento repercute nas gerações afetadas indiretamente. Segunda ela, o trauma não elaborado não pode ser superado: “Existe uma série de conseqüências negativas ligadas ao esquecimento. No GTNM encontramos muitos casos de pessoas, que, para materializarem esse sofrimento não trabalhado, o investem no próprio corpo. Essa atitude pode ser representada por comportamentos de risco, como o uso de drogas pesadas. Também há uma tendência à repetição. Por exemplo, uma criança que viveu com seus pais na clandestinidade, mudando de cidade, não assumindo o próprio nome, tem grandes chances de herdar esse formato para sua vida. Esse adulto não consegue criar raízes nem confiar nos outros”, explicou.






Para a psicanalista, a violência de Estado atingiu a sociedade como um todo, “assujeitando, individualizando e apolitizando” as pessoas: “Existe um mandato de silêncio incorporado a toda sociedade. Ao contrário dos nossos vizinhos da Argentina, Chile e Uruguai, os documentos da ditadura aqui não foram tornados públicos ainda”, exemplificou.



Relato de um representante da segunda geração de vítimas da ditadura brasileira



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