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Luta por uma sociedade sem manicômios

Tina Minkowitz ministrou a aula pública do Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental sobre a luta do movimento internacional de usuários e sobreviventes da psiquiatria
Portal EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 27/09/2018 14h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

‘O protagonismo dos usuários na luta por uma sociedade sem manicômios’ foi tema da aula pública do Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental, realizada no dia 25 de setembro, pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A aula foi ministrada pela americana Tina Minkowitz, advogada e ativista de Direitos Humanos, que falou sobre a luta do movimento internacional de usuários e sobreviventes da psiquiatria. “O encontro acontece em um contexto político grave do nosso país, em que o que está em jogo é a continuidade do Sistema Único de Saúde (SUS), da construção de um projeto antimanicomial que a gente vem trabalhando há muito tempo. Por isso, essa discussão é tão importante nesse momento, para que a gente não permita mais retrocessos”, destacou a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Nina Soalheiro, na mesa de abertura. “Tempos depois, a ameaça que paira sobre a saúde mental nos faz lembrar que o esforço para tornar o trabalho no interior do campo da saúde digno é uma luta que nunca se extinguirá”, completou Carlos Maurício Barreto, vice-diretor de Ensino e Informação da EPSJV/Fiocruz.

Patrícia Miranda, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, apresentou a Rede de Atenção Psicossocial do Rio de Janeiro (Raps), que foi construída com o objetivo de ampliar o acesso à atenção psicossocial da população e promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso do crack, álcool e outras drogas e suas famílias. A Rede busca também garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, englobando tanto o acolhimento,  quanto o acompanhamento contínuo e a atenção às urgências. Segundo Patrícia, no município do Rio de Janeiro, atualmente, existem 33 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que atendem grande parte da população com transtornos mentais, cerca de 450 usuários em Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e 300 usuários institucionalizados. “É essencial voltarmos à discussão do protagonismo dos usuários, que foi a base de toda a construção da Reforma Psiquiátrica e do trabalho da saúde mental no Brasil”, defendeu.

Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), explicou a origem do termo “usuário”, que segundo ele, surgiu para retirar a nomeação de “paciente”, “aquele que pacientemente recebia o que outros determinavam”. “Usuário foi um termo utilizado na Lei 8.080/90, que instituiu o SUS, para designar todas as pessoas que utilizavam o sistema de saúde. O termo representava o cidadão que utiliza o SUS”, pontuou, completando: “A gente está em um momento de transição, de pensar de forma mais crítica que essas pessoas não são usuários, nem ex-usuários e nem sobreviventes. São, na verdade, pessoas que reconstroem as suas identidades, redescobrem vidas e têm protagonismo para atuarem politicamente. Não necessariamente é preciso definir quem são essas pessoas”.

Amarante ressaltou ainda a importância do curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental, da EPSJV, que forma não somente no sentido mais tradicional, mas busca também propiciar uma consciência política no campo da saúde mental. “Tratar as pessoas de maneira diferente não é só aplicar remédio de outras formas. A mão que aplica o medicamento é mais importante do que o medicamento em si. A mão que apoia, o ouvido que escuta, a forma de acolhimento e de cuidado... o que está em jogo com a discriminação que existe porque a pessoa é louca, mas porque é pobre, negra, mulher, homossexual... Temos que ter essa consciência para ter transformação, o voto também é resistência”, destacou.

A experiência concreta de ser “usuário” veio na fala de Walter Farias, autor do livro ‘O Capa Branca: de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil’: “Sou um simples paciente do Hospital Juquery, que sofreu todos os horrores daquele lugar. Com tanta gente lutando para que a gente seja alguém na sociedade, eu não posso falhar. Eu me policio para que não falem ‘É louco’”, afirmou.

“O termo sobrevivente, para algumas pessoas, significa a vitória de ter deixado a psiquiatria para trás. Para mim, é importante uma pessoa ter usado o serviço de psiquiatria e continuar se considerando sobrevivente, porque sobreviveu aos abusos e a violência dos serviços”

Movimento internacional de usuários e sobreviventes da psiquiatria

A advogada e ativista de Direitos Humanos Tina Minkowitz deu início a conferência definindo o conceito de “usuários e sobreviventes da psiquiatria”. Segundo ela, são pessoas que passaram por loucura ou problemas mentais e sobreviveram a serviços de psiquiatria. “A gente não morre, mas sobrevive a toda violência. É importante pensar nos diferentes tipos de violência psiquiátrica. Pode ser quando alguém bate em você, ou te amarra em uma camisa de força ou ainda força você a tomar medicamentos. Tomar medicamentos é um tipo de violência por si só, porque eles provocam coisas na sua consciência que você não gostaria ou não faria sem eles”, afirmou Tina, que acrescentou: “O termo sobrevivente, para algumas pessoas, significa a vitória de ter deixado a psiquiatria para trás. Para mim, é importante uma pessoa ter usado o serviço de psiquiatria e continuar se considerando sobrevivente, porque sobreviveu aos abusos e a violência dos serviços” .

Segundo Tina, o Movimento Internacional de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria é a favor da luta antimanicomial e contra as instituições, contra o tratamento e hospitalização forçados, bem como contra a medicalização da vida e da mente humana. “Queremos a inclusão e participação total e de forma igualitária para todos. Buscamos novas alternativas, como criação de redes de apoio compostas por usuários”, defendeu.

Tina apresentou também o termo “pessoas com deficiências psicossociais”, que foi utilizado, segundo a ativista, como forma de inclusão em movimentos de pessoas com deficiência: “Esses movimentos nos permitem falar sobre discriminação. Eu não digo que sou uma pessoa com deficiência psicossocial, minha identidade como sobrevivente é mais importante. Mas coletivamente é mais forte estarmos juntos”.

Sobre a luta antimanicomial, Tina ressaltou que ela não significa só acabar com os manicômios, mas também parar de pensar na lógica manicomial. “Isso quer dizer que temos que pensar enquanto sociedade em formas não discriminatórias, em atividades sociais, culturais, políticas... A sociedade precisa dar todo suporte que precisamos para escolhermos serviços de saúde alternativos ou convencionais”, apontou.

Por fim, a ativista lembrou da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que é um instrumento internacional dos direitos humanos das Nações Unidas, adotada em 2006 e assinada e ratificada por 170 países, cuja finalidade é proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência. “O Brasil assinou a Convenção em 2008. E, portanto, se usuários e sobreviventes tiverem interesse podem procurar advogados para lutarem pelos seus direitos no tribunal”, esclareceu.