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Perspectivas de futuro em tempos incertos

O IV Seminário de Saúde Mental abriu os trabalhos debatendo o que está no horizonte da rede pública de saúde em meio a uma conjuntura neoliberal de ajuste e corte de direitos
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 16/12/2016 09h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Mesa de abertura do seminário reuniu Márcia Valéria Morosini, Alexandre Trino, Pilar Belmonte (mediadora) e Ligia Bahia Foto: Maycon Gomes - EPSJV/Fiocruz

Discutir perspectivas de futuro para a saúde brasileira no dia seguinte à aprovação da PEC 55 pelo Senado Federal não é tarefa simples. Como não poderia deixar de ser, a conjuntura política atravessou o IV Seminário de Saúde Mental promovido essa quarta-feira (14) pelo Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Laborat/EPSJV/Fiocruz) sob o mote 'Não há saúde mental sem SUS'. Balanços e análises deram voz ao sentimento difuso, mas palpável, de que será preciso desconstruir velhas verdades e reorganizar as ideias para chegar a ter alguma perspectiva futura em um país cada vez mais dominado pela lógica neoliberal. Ligia Bahia, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Iesc/UFRJ),  Alexandre Trino, supervisor clínico do Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) Carlos Augusto Magal, e Marcia Valéria Morosini, professora-pesquisadora da EPSJV, debateram pela manhã 'A rede pública de saúde: perspectivas de futuro'.

Para que existe sistema de saúde?

"Eu acho que não tem rede pública de saúde no Brasil. O título, então, acho que é falso. Nós acabamos nos utilizando de palavras que não estão corretas, e isso foi dando para o gasto quando a gente estava trocando o pneu com o carro andando", começou Ligia Bahia, lançando mão de uma metáfora bastante popular entre os sanitaristas quando, a partir da década de 1990, tentavam explicar por que havia tanta distância entre o Sistema Único de Saúde sonhado e o SUS 'real', para completar em seguida: "Mas e agora que o carro não está andando? Não tem pneu, não tem nem carro? É melhor parar".

A proposta da pesquisadora à platéia era mais ou menos a seguinte: voltar às origens, redescobrir o sentido das coisas, fazer um balanço honesto e ver o que se pode aprender para combater o inimigo - que na sua opinião não é só o governo, mas a lógica privada que se imiscuiu na política pública e, sem meias palavras, o capitalismo. "Para que existe sistema de saúde? É uma pergunta que precisamos voltar a fazer".

Segundo Ligia, durante a maior parte da história humana as pessoas achavam que todo mundo ficava doente igual, que todo mundo morria igual. "Esse conhecimento de que existem populações vulneráveis, que as crianças menores de um ano correm mais riscos não existia. Até porque naquela época, ricos e pobres morriam mais ou menos igual. Havia diferença entre ser rico e pobre para comer, para morar. Há um século atrás, as pessoas morriam em média com 35 anos", contextualizou, dizendo que isso só mudou quando em 1830, o médico francês Louis René Villermé notou que as pessoas que moravam nos bairros mais pobres morriam antes daquelas que moravam nos bairros mais ricos. "E isso é uma descoberta científica que abalou todo o conhecimento existente até então", frisou, emendando que, por sua vez, Friedrich Engels, em 1845, fez outra importante contribuição para o conhecimento sobre saúde, quando estudou as classes trabalhadores na Inglaterra. "Ele anotava tudo o que o jornal dizia sobre tal família: tem tantas crianças, mora no porão, morreu tal pessoa. Ele notou que a questão não se resumia só a ser pobre ou rico, mas que em algumas ruas, em alguns lugares as condições de vida eram muito piores. Era o nível social, mas também o contexto social".

Essas descobertas que hoje soam triviais foram as bases que urdiram a criação dos sistemas nacionais de saúde. Mas, insistiu Ligia, não há nada de trivial nisso tudo e não é à toa que esse ideário está sob ataque. " É preciso que haja mais igualdade social para que as pessoas vivam mais e melhor. É científico, não é uma ideologia, não é porque somos de esquerda", disse, para em seguida retomar a provocação inicial: "E porque eu digo que não tem rede [pública de saúde]? Porque no Brasil  os pobres morrem antes, ficam mais doentes, têm mais problemas de saúde mental do que os ricos. Então não tem. Senão vamos esquecer porque existimos: sistema de saúde não é para prestar assistência médica, é para promover igualdade social. É mais radical, sempre foi mais radical".

O império do privado

Contudo, explicou Ligia, uma política pública setorial não consegue reduzir desigualdade sozinha - precisa estar acoplada a outras que incidam também na educação, no ordenamento urbano, etc. - nem pode ser um pedaço ou fragmento dedicado a melhorar a vida dos mais pobres, mas um projeto de sociedade. "Hoje várias cidades [do mundo] não permitem mais a construção de edifícios suntuosos sem que, no mesmo bairro, tenha habitação popular. Essas pessoas vão comprar no mesmo supermercado, ser atendidas no mesmo serviço de saúde. Tem o patrão, tem o empregado, mas eles não moram em lugares completamente diferentes. Isso faz diferença, embora a sociedade continue classista. Vamos pensar se a gente caminhou nessa direção e por quê?", questionou, citando o exemplo (ou contraexemplo) do Rio de Janeiro, cidade que depois da Copa do Mundo e das Olimpíadas ficou ainda mais gentrificada. "A fortaleza da saúde mental é que ela conseguiu atender o rico. A classe média usa e acha que o serviço tem qualidade", disse, já durante o debate.

Mas isso é uma exceção em um país onde o marketing do setor privado emplaca muitos gols. A pesquisadora citou dois casos para ilustrar. "O jogador da Chapecoense veio da Colômbia em um avião da Amil e foi ser atendido no [Albert] Einstein. É oficial, o governo brasileiro fez isso. Ele não foi para o SUS. Porque lá no Einstein ele vai ser bem tratado? Nós todos temos planos privados, todos nós achamos que é melhor ser atendido no Einstein. Isso virou uma certeza. Ele mora em Santa Catarina, que é um estado rico, tem hospital universitário. Eu, como médica, tenho certeza que ele seria super bem atendido no SUS. Mas ninguém critica, passa batido", afirmou, lembrando também de outro acidente aéreo que vitimou a família dos apresentadores de televisão Angélica e Luciano Huck. "Eles foram super bem atendidos no SUS, e depois foram para o Einstein. E aí o que apareceu foi o Einstein. É um problema enorme, temos que falar com clareza porque não dá mais. Eu sou defensor do SUS para os outros, para mim não?", disse.

Ligia Bahia sublinhou que o processo de privatização avançou há muito tempo por dentro do SUS, sustentando que, inclusive, muita gente achou normal quando áreas como limpeza, segurança e alimentação foram privatizadas nos serviços. "Há quem diga que esta seria uma terceirização do bem. É do mal. Segurança privada está protegendo patrimônio e não pessoas, segue a lógica privada. São esses contratos que nos levaram às OSs [Organizações Sociais]. A privatização não começa com as OSs; culmina nelas. E agora os prefeitos eleitos vão fazer outros contratos, com comunidades terapêuticas, contratos privados que nos deixam reféns da lógica privada. A lógica da comunidade terapêutica é a lógica da religião, não é a da saúde".

Para terminar, a professora voltou à carga de que o momento político não pode ser negado e é chegada a hora de um profundo acerto de contas. "Claro que caminhamos, demos passos, ensaiamos, aprendemos muito, mas não conseguimos construir um sistema público universal. Está mais do que na hora de parar e ter um freio de arrumação, não dá mais para ficar fingindo que o único problema é o [Michel] Temer, que, de resto, está tudo bem", disse ao fim da fala, retomando a linha de raciocínio no debate: "Se a gente fosse tão legal assim teria dado certo. Em alguma coisa nós erramos. Onde foi que nós erramos? A dificuldade não está em reconhecer a correlação de forças, mas a nossa responsabilidade nesse processo que, no Brasil, é muito dramático. Estamos muito desmoralizados. Teria que pensar tudo de novo. Pensar tudo de novo é a grande esperança".

"Não vamos jogar fora a criança junto com a água da bacia"

Para Alexandre Trino, a falta de legitimação do SUS na sociedade é resultado de um acúmulo de mazelas sofridas ao longo dos 28 anos de existência pelo Sistema Único. "Tampouco nos governos do PT [Partido dos Trabalhadores] o sistema universal saiu plenamente do papel e sempre teve que conviver com desfinanciamento, privatização, formação inadequada de profissionais. Isso tudo acaba provocando a inadequação dos serviços às necessidades de saúde da população", afirmou, completando: "Vivemos um movimento de negação da Constituição Federal de 1988, do direito à saúde, do acesso universal, igualitário e integral financiado com recursos públicos. Hoje corremos, sim, um risco enorme desse governo empurrar goela abaixo plano de saúde popular que pode ser o canto da sereia para a nossa população, e sofreremos os efeitos deletérios do SUS se tornar um sistema pobre para empobrecidos com a aprovação do teto de gastos públicos, aliada à falácia de que a Constituição não cabe no orçamento".

Segundo ele, é fundamental que trabalhadores, usuários e militantes do SUS não se deixem abater pelo imobilismo e pelo pessimismo. "Ontem foi uma data emblemática, 13 de dezembro. Coincidentemente há quatro décadas atrás se instituía o AI-5 [Ato Institucional] e ontem foi aprovada a PEC da maldade que vai produzir o AI-5 da nossa atualidade. Vamos ter consequências sérias. Nessa conjuntura tão sombria é importante não se deixar tomar pela paralisia. Estamos paralisados e precisamos lutar para garantir os nossos direitos já conquistados".

Em um momento em que a chamada 'grande política' está tão deteriorada, Alexandre dividiu com a platéia do evento sua aposta na micropolítica que, na Saúde Mental, logrou vitórias. Ainda durante o governo de Dilma Rousseff, a Coordenação de Saúde Mental no Ministério da Saúde foi ocupada em 14 de dezembro de 2015 como protesto à nomeação de Valencius Wurch, nome identificado com o modelo asilar, pautado em internação, medicalização, isolamento social que o movimento da Reforma Psiquiátrica tanto combateu. "Na costura da própria Rede de Atenção Psicossocial e da Política Nacional de Saúde Mental a grande aposta é nas micropolíticas, na capilaridade dos territórios, no aquecimento e no fortalecimento do movimento dos trabalhadores e dos usuários. A Reforma Psiquiátrica é fruto do engajamento e fortalecimento de movimentos populares e sociais. Percebemos hoje um esgarçamento desses movimentos, que precisam ser oxigenados para fazer frente ao momento que a gente está passando".

O supervisor clínico do Centro de Atenção Psicossocial Carlos Augusto Magal citou alguns números que dão a dimensão dos avanços conquistados pela Reforma Psiquiátrica pautada em diretrizes como respeito aos direitos humanos, combate a estigmas e preconceitos, redução de danos, regionalização e cuidado no território. A drástica redução do gasto federal com pagamento de internações em hospitais psiquiátricos é um bom exemplo. Se em 2002, 75% desses recursos financeiros eram direcionados para gastos hospitalares, em 2011 o percentual caiu para 28%. Em contrapartida, naquele ano, os gastos com serviços de atenção comunitária representaram 71% do orçamento da União para a área. Outros dados, relacionados ao números de leitos de internação, também expressam a reversão do modelo tradicional: em 2002 eram 51,3 mil leitos, número que este ano chegou a 25 mil. Ao mesmo tempo, em 2016, 63% dos municípios elegíveis possuíam CAPs, que somam 2.340 centros em todo país.

"É suficiente? O que precisamos abandonar? Ou ir além, pensar de novo, fazer de nova maneira? Precisamos dialogar mais com o SUS real. Uma coisa são as portarias, outra é o que está acontecendo na ponta dos serviços que quase nunca têm a concretude daquilo que está escrito", disse, reforçando durante o debate: "Não vamos jogar fora a criança junto com a água da bacia".

"Estamos fazendo luta"

"A minha fala não é de felicidade, os dias não tem sido felizes. Temos falado muito das possibilidades que as crises abrem mas, acima de tudo, das necessidades que elas abrem: reflexão, não negar aquilo que precisamos ver e é tão difícil enxergar", iniciou Márcia Valéria Morosini que falou sobre a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), exemplo atual de como tem sido feitas as discussões sobre pontos nevrálgicos do SUS: de afogadilho, sem ampla participação e no sentido contrário à concepção original."Nós gostaríamos de estar discutindo os desafios da PNAB. Só que dois eventos nos surpreenderam este ano e é sobre eles que vou falar".

A primeira surpresa, continuou a professora-pesquisadora da EPSJV, veio em maio, nos estertores do governo Dilma Rousseff quando o Ministério da Saúde publicou a portaria 958, que retirou a obrigatoriedade da presença do agente comunitário de saúde na composição mínima nas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) propondo sua substituição por auxiliares ou técnicos de enfermagem. "Essa portaria não durou um mês, os agentes comunitários e os agentes de combate às endemias foram à Brasília, tomaram as ruas e o Congresso Nacional. Com isso, conseguiram a revogação da portaria mas não revogaram a ideia que a embasou, que continua presente", contou ela, para explicar em seguida: "Em outubro ficamos sabendo que estava acontecendo o VII Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica. Esse evento acontece todo ano, mas este ano teve o objetivo declarado de reunir subsídios para reformular a PNAB".

O Fórum, que aconteceu em Brasília entre os dias 18 e 20 de outubro, foi promovido pelo Departamento de Atenção Básica (DAB/SAS/MS). Com o objetivo de “estabelecer um processo de consulta qualificada” sobre a revisão da PNAB “ao conjunto de atores que atuam na construção da atenção básica” o evento foi restrito a convidados e pouco divulgado. As propostas, contudo, apontam para várias mudanças polêmicas na Política: extinção do agente comunitário de saúde e do agente de combate às endemias – que seriam unificados em um único profissional –, flexibilização da quantidade de pessoas cobertas de acordo com “a necessidade sanitária do território”, diferenciação de regimes de trabalho, carga horária e vínculo dos trabalhadores também a partir “das características do território”, adoção de uma “carteira de serviços”. Essas e outras propostas estão contidas em um documento síntese que segundo o DAB traz “consensos estabelecidos”.

"A grande alegação é que essas mudanças ampliarão a resolutividade da atenção básica. A análise do documento demonstra, ao contrário,  a conversão integral dos direitos sociais à lógica de mercado", afirmou Márcia Valéria, para quem ao mesmo tempo que a atenção básica que foi o nível em que mais houve ampliação da oferta pública de serviços para a classe trabalhadora, essa expansão veio acompanhada de terceirização, via OSs e parcerias público-privadas.

Márcia Valéria ressaltou ainda que o documento é atravessado de cima abaixo por um viés de flexibilização da Política Nacional de Atenção Básica. “Primeiro que ‘carteira’ é um termo muito usado no sistema financeiro e no setor privado de serviços: carteira de investimentos, carteira de ações. Além de propor uma carteira mínima e ‘diversificada’, o documento diz que essa carteira tem que ser flexibilizada em relação às especificidades de cada território”. E o documento, segundo ela, vai usando o território para justificar flexibilização em termos de equipe, em termos de ações e até em termos de cobertura, ao falar que a quantidade de pessoas cobertas deve estar correlacionada com “a necessidade sanitária do território”.

"Que questão específica do território justifica a proposta de relativizar a quantidade de pessoas cobertas pela atenção básica, senão a retomada de uma concepção da atenção primária à saúde seletiva, com naturalização que uma parte da população está destinada a compor o mercado privado de saúde? O mesmo pode ser dito sobre  a flexibilização de vínculo de trabalho. Que questão específica do território a justifica? É importante notar que os profissionais técnicos sempre são convocados nos momentos de enfrentamento - como agora com dengue, zika e chikungunya - mas frequentemente subalternizados na implantação das políticas", disse ela, arrematando, já no debate: "Estamos fazendo luta política contra essas propostas".

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