Apresentar um quadro do avanço do setor privado sobre o fundo público nas áreas de saúde, educação e trabalho foi o objetivo de uma mesa-redonda realizada na última terça-feira (30/10) no âmbito do seminário internacional que celebrou os 30 anos do SUS e os 10 anos da Revista Poli, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A mesa reuniu o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, e os pesquisadores José Sestelo e José Dari Krein, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), respectivamente.
Financeirização da educação em debate
Roberto Leher explicou que um dos efeitos da crise capitalista deflagrada em 2008 foi que uma enorme soma de capitais controlada por investidores deixou de ir para a produção e circulação de mercadorias no comércio, na agricultura e na indústria, passando a ser prioritariamente direcionados para investimentos de origem financeira, que se tornaram mais lucrativos. “Entre eles há o interesse crescente em esferas que em vários países estavam sob o rol do Estado, como a educação e a saúde”, explicou. Nesse contexto, os fundos de investimento transnacionais passaram a ter um interesse grande nos negócios educacionais, adquirindo instituições privadas que atuavam no ensino superior no Brasil. “Esses negócios se tornam atraentes porque, com as políticas neoliberais, há um encolhimento do Estado no provimento da educação superior, o que abre brecha para o mercado. A partir de 2013 a crise no orçamento federal é de grandes proporções, com uma redução significativa nas novas matrículas no setor público. Isso sinaliza para o setor privado que a ‘porteira está aberta’”, disse o reitor da UFRJ. Um ponto fundamental da análise da atuação do mercado financeiro na educação, continuou Leher, é o papel do Estado como fiador dos negócios privados. “Sem Estado, sem provimento de recursos do fundo público nessas áreas – educação, saúde, previdência – é absolutamente impossível existir negócios na escala que os setores financeiros estão operando hoje na área educacional”, ressaltou.
Segundo Leher, a política de indução da expansão de matrículas por meio da aquisição, pelo Estado, de vagas nas empresas educacionais no Brasil cresceu por meio de instrumentos como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (ProUni). “O Fies opera no mercado financeiro, porque compra vagas no setor privado por meio de títulos da dívida pública”, destacou. Já o ProUni, continuou Leher, teve como principal problema a inclusão das organizações educacionais com fins lucrativos, conferindo isenção tributária às empresas e realimentando o Fies. “Originalmente, a empresa que recebia os títulos do Fies podia apenas pagar seus impostos e se sobrasse algum título podia trocá-los por dinheiro. Como as grandes corporações educacionais não pagam mais impostos, todo o recurso que vem do Fies é utilizado para ampliar sua margem de lucro”, disse Leher. Segundo ele, em 2016 e 2017, o Fies pagou R$ 42,4 bilhões, mas arrecadou apenas R$ 10 bilhões. “Isso significa que o recurso que está indo para o Fies é do fundo público”, destacou. É justamente no período de redução das vagas do setor público que há um crescimento exponencial do Fies, cujo orçamento em 2017 foi de R$ 36 bilhões, segundo Leher. “O lucro da Kroton foi de 241% e em 2015 foi de 22 mil%. Não tem nenhum setor econômico no Brasil que teve esse lucro”, ilustrou Leher, que completou ainda que o número de matrículas da Kroton atualmente é maior do que o de todas as 63 universidades federais do Brasil juntas. “Em 2017 as 63 universidades federais tiveram R$ 6 bi para custeio e R$ 800 milhões para investimento. O Fies recebeu R$ 32 bi. Se nós tivéssemos esses recursos teríamos quadruplicado as vagas. Hoje apenas 23% das matrículas totais, incluindo estaduais e federais, são públicas. O restante são privadas e mais da metade delas controladas por apenas seis fundos de investimento, que formam a maior parte dos estudantes no país”, resumiu.
Como consequência dessa expansão da mercantilização da educação houve o que Leher chamou de um “processo inédito” de monopolização da educação superior no país. Segundo ele, em 2003 as empresas educacionais com maior faturamento detinham 14% do mercado; em 2015, os 12 maiores grupos possuíam 44% do mercado. “Atualmente já deve estar em algo como 52% do mercado”, estimou o reitor da UFRJ. Já entre 2010 e 2014, continuou Leher, esses 12 maiores grupos passaram de 44% das matrículas na modalidade EaD no Brasil para 66%. “Isso coloca questões muito importantes se considerarmos que nesses cursos à distância nós temos formação de professores e professoras. Temos que nos indagar quem está educando os educadores”, completou Leher. A maior parte dos estudantes que têm curso superior no Brasil hoje é formada por grupos educacionais sob controle financeiro, destacou o reitor da UFRJ. “Com cartilhas, com instrução programada, com professores que não têm nenhuma margem de liberdade, por mais que se esforcem, assim como os estudantes, que sempre são muito criativos, mas não têm espaço de criação significativo dentro dessas instituições, até porque elas têm um funcionamento que não propicia uma vida acadêmica”, lamentou. Caso não seja revogada a Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos da União pelos próximos 20 anos, essa financeirização tende a continuar crescendo, alertou. “O recurso para custear a educação, a saúde, a previdência, é decrescente, mas não há limite no Estado para operações financeiras, que seguem sem controle. Isso significa que temos no Brasil uma situação complexa no bloco de poder. O setor que trabalha com commodities - soja, ferro bruto, gado, etc – está pressionado no mercado internacional, com a queda nos valores dos seus produtos. Como resolver? Reduzindo a dimensão social do Estado, ampliando a precarização do trabalho com contrarreformas trabalhistas, flexibilizando os direitos sociais e desconstruindo a previdência social”, destacou. Nesse cenário, a perspectiva de que o bloco de poder precisa fazer concessões aos trabalhadores – por meio de políticas de elevação do salário mínimo, de alívio à pobreza, de ampliação do crédito para a agricultura familiar, por exemplo – está hoje fora da pauta. “Está evidente que hoje as classes dominantes entendem que é possível ter apoio social sem incluir os trabalhadores no bloco de poder como frações subalternas. Isso que hoje se chama políticas populistas, de relação direta com a massa, por meio de instituições religiosas, etc, é uma expressão dessa dissolução de uma forma de organização do bloco de poder em nosso país. Isto recoloca a importância do que Florestan Fernandes cunhou como a perspectiva da ‘autocracia burguesa’, que é o oposto da democracia”, assinalou Leher. Na educação, essa dissolução do bloco de poder se expressa no tensionamento entre perspectivas educacionais: de um lado, os negócios educacionais, em que o conteúdo científico, cultural, artístico e tecnológico é secundário, no sentido de uma formação aligeirada, em harmonia com movimentos como o Todos pela Educação, que preconiza que a formação dos trabalhadores dever ter como foco algumas competências básicas. De outro lado, há a inclusão de perspectivas educacionais defendidas por grupos que passaram a integrar o bloco de poder, a exemplo do Escola sem Partido.
Forjar alternativas a essas perspectivas é, segundo Leher, uma tarefa urgente hoje por parte daqueles que defendem concepções democráticas de educação pública. “Se em 1964 precisávamos ter o apoio do povo para fazer reformas de base, nesse momento precisamos fazer isso para que o país não recaia em um cenário de ódio, de violência, de barbárie”, concluiu.
Precarização do trabalho e enfraquecimento dos fundos públicos
Abordar o enfraquecimento dos fundos públicos na esteira da flexibilização dos direitos trabalhistas e da proteção social foi o objetivo do economista e professor da Unicamp José Dari Krein. Ele lembrou um exemplo que chamou de paradigmático da situação desfavorável do trabalho no capitalismo hoje: o maior acidente trabalhista já registrado, em Bangladesh, em abril 2013, quando o desabamento de um prédio onde funcionava uma fábrica de confecções matou mais de 1,1 mil pessoas. Nas fotos da destruição, apareciam os nomes das grandes marcas internacionais de roupas, que, sob a égide da liberalização da economia e da globalização, terceirizaram sua produção para países como Bangladesh se aproveitando da fraca regulação sobre o trabalho. “O deslocamento da produção de vestimentas é possibilitado pela constituição dos fundos de investimento capazes de organizar sua produção em escala internacional. Eles vão possibilitar a concentração do processo de produção de bens e serviços nas mãos de um conjunto cada vez menor de grandes grupos econômicos. Ao mesmo tempo, a possibilidade de manter o investimento no setor especulativo em detrimento do setor produtivo vai fazer com que seja preciso ‘ajustar os custos’ da produção de bens no sentido de fazer com a que rentabilidade do investimento seja compatível com a do mercado financeiro”, introduziu Krein. Esse ‘ajuste’ se deu pela intensificação da superexploração do trabalho e redução das condições de vida e de salários dos trabalhadores, segundo ele. “Em cada lugar procura-se explorar quais são as vantagens comparativas em relação aos outros países. Em Bangladesh, o salário mensal dos trabalhadores gira em torno de 40 dólares, o que dá R$ 150 por mês. Lá não tem jornada semanal de 40 horas, as férias são de uma semana por ano, não tem previdência social, portanto não tem encargos trabalhistas, as taxas de sindicalização são extremamente fragilizadas. Ou seja, é o paraíso do capital, que pode reinar absoluto”, complementou o economista.
O exemplo de Bangladesh é importante, segundo ele, porque a lógica da reforma trabalhista implementada no Brasil, bem como a proposta de reforma da Previdência, é justamente buscar uma maior competitividade do país no mercado internacional de mão de obra por meio da desregulação do trabalho e consequente precarização das condições de vida dos trabalhadores. “As reformas trabalhistas desenvolvidas pelo mundo afora indicaram um padrão de regulação do trabalho em que se amplia a liberdade do capital de gerir a sua forma de trabalho de acordo com aquilo que é mais conveniente para seus negócios, e ao mesmo tempo diminui os níveis de proteção social, jogando os trabalhadores em uma maior insegurança e vulnerabilidade para se sujeitar às leis do mercado”, disse Krein. Na esteira destas mudanças houve o crescimento da desigualdade social. Um dado que expressa esse aumento é a relação entre o rendimento de um trabalhador de chão de fábrica e o CEO da empresa: em 1960, o CEO ganhava em média 30 vezes mais do que um trabalhador; na segunda década do século 21, essa diferença passou a ser de 295 vezes.
A integração do Brasil à lógica do capitalismo globalizado, a partir da década de 1990, significou transformações no mercado de trabalho nacional, que se tornou mais heterogêneo e precário, segundo Krein, à revelia do que ele chamou de “movimentos contraditórios” nos anos 2000, com a melhoria de indicadores do trabalho, como o crescimento da formalidade e do salário mínimo. “A partir da crise de 2008 há uma retomada do processo histórico de avanço da informalidade. Dados do segundo trimestre de 2018 apontam que hoje temos praticamente 50% de trabalhadores com proteção social e 50% sem acesso à seguridade social”, ilustrou. Segundo ele, os setores da produção direta de bens, da construção, da indústria vão perdendo participação na composição geral da classe trabalhadora no Brasil. “Surgem muito mais trabalhadores na área de serviços, terceirizados, ocupações menos qualificadas e com tradição de organização mais fragilizada”, completou. A subnotificação de acidentes de trabalho e o desrespeito à legislação por parte de muitas empresas são problemas que cada vez mais afetam o fundo público, segundo ele. “Há uma quantidade imensa de empresas que não depositam fundo de garantia. Em 2017, 2,4 milhões de empresas deviam FGTS”, pontuou. Além disso, em torno de 11 milhões de pessoas trabalhavam sem registro na carteira de trabalho em 2018, e há um crescimento da taxa de sub-utilização da força de trabalho medida pelo IBGE. “Essa taxa atingiu a cifra de 27,6 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2018, um quarto da força de trabalho brasileira está sub-utilizada, seja porque procura emprego, não encontra e acaba desistindo de procurar, ou porque até achou emprego mas não tem condição de trabalhar porque não tem uma creche para deixar o filho, por exemplo, ou então porque trabalha menos horas do que poderiam porque tem um ‘bico’ que é totalmente insuficiente”, esclareceu.
De acordo com o economista, as reformas que foram sendo implementadas como resposta a essa crise têm sido desastrosas para o fundo público, particularmente a reforma trabalhista e a aprovação da Emenda Constitucional 95. “A reforma trabalhista dificulta o acesso aos benefícios da proteção social existentes. Por outro lado, fragiliza imensamente o financiamento dos fundos públicos da seguridade social”, alertou Krein. Um exemplo, segundo ele, é o crescimento vertiginoso dos microempreendedores individuais, os MEI, que muitas vezes trazem uma relação de emprego disfarçada, substituindo o trabalhador assalariado. “Sob essa forma de contratação, a pessoa paga R$ 50 para a previdência, enquanto que um assalariado, considerando um salário médio de 2015, paga R$ 2,1 mil por mês, somando contribuição da empresa e do trabalhador. Se todo mundo virar MEI, vamos ter um problema grande de financiamento da seguridade social”, alertou. No caso da contratação de trabalhadores por meio da chamada ‘pejotização’, em que o trabalhador é contratado como pessoa jurídica de modo a diminuir os encargos trabalhistas dos empregadores, o estrago para a Seguridade Social também é significativo. “Ao deixar de ser assalariado, pelo salário médio, com base em 2015, e passar a ser um PJ, cada trabalhador vai representar uma queda na arrecadação para a seguridade social de R$ 3,7 mil por ano”, disse Krein.
A tendência é que a desigualdade social se amplie ainda mais, disse ele, tendo em vista o papel que as políticas de proteção social ainda têm hoje na atenuação da desigualdade. “Vamos viver um momento de grande turbulência, de disputa, e temos que defender mais do que nunca os direitos sociais, a universidade pública, o SUS”, concluiu o pesquisador da Unicamp.
Financeirização: tema estratégico para o SUS
Atualizar o debate sobre o papel da saúde como espaço de acumulação capitalista e sobre a relação público-privada nos sistemas de saúde hoje foi o objetivo da apresentação do professor-pesquisador da Universidade Federal da Bahia José Sestelo. Ele defendeu que a Saúde Coletiva tem hoje o desafio de pensar formas de compatibilizar o debate sobre como regular o setor privado na saúde com as dinâmicas do capitalismo contemporâneo. “As formas de regulação atuais foram concebidas para uma realidade que já se transformou, e eventualmente caducaram. As ações do Estado regulador foram pensadas na realidade do pós-guerra, quando havia um movimento de reconstrução da base industrial e da base produtiva destruída durante a guerra, quando havia uma necessidade do uso de um contingente muito grande de trabalhadores industriais, sindicalizados, organizados, com partidos políticos fortes. Isso mudou”, pontuou Sestelo.
No Brasil, diz ele, a referência teórica para a reforma do aparelho do Estado que criou as agências reguladoras como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por exemplo, foram autores do que chamou de “escola regulacionista estadunidense”, que tinham em mente o contexto do pós-guerra. “É preciso que a gente entenda que privatização é essa de que estamos falando hoje, que globalização, que neoliberalismo, como concretamente cada um desses grandes conceitos se expressam. Porque às vezes pode ser que seja preciso privatizar para aumentar o nível de acumulação, às vezes não. Às vezes isso se dá por dentro da institucionalidade pública. Há contradições e há uma complexidade a ser explorada, e a gente precisa investigar isso”, ressaltou.
Segundo Sestelo, a produção acadêmica sobre saúde precisa incorporar a financeirização do capital na análise do que fazer diante da crise que, como ele destacou, é uma crise do trabalho, e não do capital, que continua sua trajetória de crescimento e concentração de renda. “A gente precisa correr atrás disso agora mais do que nunca. Hoje há novas formas de inserção da atividade financeira no universo assistencial, que sempre foi historicamente afastado da esfera financeira. Claro que sempre houve a indústria farmacêutica, a indústria de equipamentos, mas a parte comercial e financeira circula agora dentro do chamado setor saúde com uma dimensão nunca antes observada”, assinalou o professor da UFBA.
O movimento de entrada e saída dos fundos de investimento nas empresas e grupos econômicos de planos e seguros de saúde, no setor hospitalar e também de exames complementares a partir dos anos 2000 coloca novas questões que precisam ser melhor apropriadas para combater o processo de apropriação do fundo público pelo grande capital hoje. “Não dá mais para falar de empresa de plano de saúde como se fosse uma entidade isolada de um grupo econômico que tem articulações com diversos setores simultaneamente, muitos inclusive fora da esfera de regulação da agência que supostamente regula empresas de planos de saúde. Que na prática acaba não regulando nada porque o substancial que seria objeto de regulação foge completamente do seu escopo”, afirmou Sestelo, destacando a complexificação das estratégias do capital desde a criação do SUS. “Se nós queremos hoje construir um sistema público de saúde que seja coerente, politicamente factível nessa realidade hoje, precisamos entender como é que agora esses grupos econômicos se organizam. Não estamos falando do mundo dos anos 1970, onde havia empresa de plano de saúde que os donos eram médicos do trabalho, descapitalizados, que não tinham relação com o mundo financeiro. Isso não existe mais”, resumiu.