Meio Ambiente, Alimentação e Drogas foram temas centrais de umas das mesas do seminário ‘Participação popular na construção de políticas públicas’, realizado nos dias 19 e 20 de agosto, em comemoração aos 34 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Entre os convidados da segunda mesa do dia 20, Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e analista de políticas da ActionAid Brasil, falou sobre as tentativas de extinguir esse colegiado. Rogério Rocco, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), abordou as mudanças na composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama. Por fim, Dênis Petuco, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, discutiu a redução da participação do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Mediador do debate, o também professor-pesquisador da Escola Alexandre Pessoa, ressaltou a importância do tema do evento: “O controle social está em xeque. O país sofre um processo erosivo da participação popular que muda toda a arquitetura da administração pública”.
Segurança Alimentar em xeque
Em sua fala, Francisco Menezes falou sobre a criação do Consea, em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. “Na época teve muita força porque havia uma mobilização contra a fome no país”, relembrou. O conselho, entretanto, foi revogado no governo Fernando Henrique Cardoso com a criação do Programa Comunidade Solidária, e só reorganizado em 2003, no primeiro governo Lula. Segundo Menezes, o Consea tinha uma peculiaridade: foi atrelado à Presidência da República e não somente a um ou outro ministério. “A segurança alimentar e nutricional é, na sua essência, intersetorial. Não pode estar unicamente em um ministério, porque reúne um conjunto de temas que se entrelaçam e devem ser pensados enquanto políticas públicas articuladas e coordenadas”, caracterizou. E continuou: “Em sua composição havia dois terços [de mebros] da sociedade civil, procurando ser representativo dos diferentes segmentos que atuavam nesse campo, além de um número considerável de ministérios. Não era um conselho deliberativo, mas sim consultivo e propositivo. Ele propunha leis e políticas para a Presidência”.
No período de 2003 até 2018, o Consea acumulou avanços, segundo Menezes. “Um grande ganho no sentido de estabelecer um marco legal para o tema foi a lei orgânica de segurança alimentar e nutricional, aprovada no Congresso Nacional em 2006”, apontou. Ele também citou a criação da lei 11.947, de 2009, que determinou que pelo menos 30% do valor repassado a estados, municípios e Distrito Federal pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) deveria ser utilizado na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, com prioridade para os assentamentos da reforma agrária e as comunidades indígenas e quilombolas. “São 45 milhões de alunos durante 200 dias se alimentando. Isso significou uma enorme expansão de mercado para esse pequeno agricultor”, observou.
Em meio a tantas vitórias, Menezes afirmou que o esvaziamento do Consea teve início no governo de Michel Temer, em 2016. “O desinteresse do governo com os conselhos já se marcava nesse período. E o Consea se tornou um espaço de denúncia de coisas que aconteciam, como a expansão da liberalização de agrotóxicos que impactam diretamente a saúde”, lamentou. A maior ameaça, contudo, aconteceu em 2019, quando o presidente da República, Jair Bolsonaro, determinou a extinção do Conselho logo no primeiro dia de mandato. “Isso nos gerou outra surpresa no sentido da mobilização quase que espontânea que se decorreu daí. No mês de março, mais de cem municípios pelo Brasil fizeram protestos. Foi aí que a gente reconheceu que o Consea já tinha se tornado um espaço político importante”, concluiu.
A mobilização foi importante para pressionar o Congresso, que determinou a recriação do Consea ao analisar a medida provisória do presidente, em maio desse ano. O Conselho, contudo, foi colocado no Ministério da Cidadania – o governo já previa que as atribuições do colegiado iriam para a Pasta. Entretanto, o presidente vetou a continuidade do conselho, contrariando a decisão do Congresso. “Não havia precedente de uma medida provisória ser apreciada e quase tudo aquilo que foi introduzido pelo Congresso ser vetado pelo presidente”, apontou, acrescentando que, de fato, há uma judicialização do caso específico do Consea, porque ele estava previsto na lei orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. “Diante das inúmeras ilegalidades que estão sendo cometidas, o judiciário está repleto de recursos e não sabemos os desdobramentos disso”, destacou.
Dentre as justificativas para a extinção, segundo Menezes, estavam os gastos desnecessários e a existência de entidades partidarizadas. “É uma política de destruição e desmonte do sistema participativo”, concluiu.
Meio ambiente desqualificado
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) teve sua composição alterada. Segundo Rogério Rocco, o órgão foi criado em 1981, a partir da lei 6938, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente e constituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). “A lei listou uma série de instrumentos que servem até hoje à sociedade e ao poder público para ordenar atividades que são utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetivas ou potencialmente poluidoras”, definiu.
De acordo com Rocco, ao longo das décadas de 1950 e 60 começa-se a se experimentar o processo de industrialização no contexto internacional, que desconsiderou as questões ambientais por falta de conhecimento dos atores políticos. “Não se tinha conhecimento dos efeitos do lançamento de matérias na natureza decorrentes dos processos industriais, do aterramento, do despejo de rejeitos. Diversas concepções equivocadas fizeram o mundo discutir questões ambientais e promover a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972”, relembrou. À época, o Brasil vai à Conferência de Estocolmo e incorpora as medidas propostas. “A principal delas é que as nações tivessem políticas de proteção ao meio ambiente. Foi quando o Brasil criou a Secretaria Especial do Meio Ambiente, no âmbito do Ministério do Interior“, contou Rocco.
Conquistada com amplo processo de participação popular, a Constituição de 88 passa a dispor que todos têm direito ao meio ambiente. “Ela reforça a ideia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, capaz de produzir os serviços ecossistêmicos essenciais para a manutenção da vida”, comemorou, acrescentando que, a partir disso, os movimentos sociais passam a se debruçar mais sobre a pauta ambiental.
É nesse contexto que o Conama aparece como um órgão consultivo e deliberativo do Sisnama, amparado dentro do Ministério do Meio Ambiente, segundo Rocco, “com o objetivo de estabelecer normas e padrões ambientais a serem aplicados em todo o país”. “O ministro Ricardo Salles agora resolveu desmontar o Conama, retirando trabalhadores, ambientalistas e tantos outros representantes da sociedade civil tão essenciais”, denunciou. O colegiado, que contava com 96 conselheiros, entre membros dos vários níveis de governo, de entidades públicas e de ONGs, agora tem 22 membros titulares, incluindo seu presidente, o ministro. A sociedade civil contava com 22 assentos. Agora, são apenas quatro. Mas para Rocco, o mais problemático foi o novo critério usado para escolher os representantes. “Foi através de sorteio, desqualificando e banalizando o papel político do conselho”, lamentou.
Retrocessos no combate às drogas
“Primeiro, antes de tudo, é importante saber que o Brasil em 1930 foi o primeiro país do mundo a ter uma legislação de criminalização do uso, do comércio e da circulação de algumas drogas, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro”, afirmou Dênis Petuco ao iniciar sua fala. Na época, Petuco continuou, ficou nítido que essa proibição não havia preocupação com a saúde, mas sim uma preocupação em produzir um “dispositivo de controle dos corpos negros” na cidade com a maior população escravizada do mundo, até então.
Segundo o professor-pesquisador da EPSJV, o pioneirismo se dá também com a criação do Conselho Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, um dos mais antigos do Brasil, instituído em 1936. A criação, porém, aconteceu distante da participação social. “O tema das drogas e da produção de políticas públicas para a gestão dessas substâncias, que foi construída ao longo do tempo, teve uma total ausência da sociedade civil por pelo menos 80 anos do século 20”, afirmou, explicando: “Até esse momento não é porque houvesse um interesse do governo de fazer um esforço para impedir essas vozes, mas porque a sociedade civil organizada brasileira por muito tempo não se interessou por esse tema. E assim foi por muitas décadas”.
Recentemente, o conselho, que passou a se chamar Conselho Nacional da Política sobre Drogas (Conad), em 2006, também teve sua composição alterada. O que saiu dessa lista? Petuco respondeu: “É muito simples. Saiu toda a sociedade civil, não tem mais nenhum representante dela. Lamentável”.
Por fim, o professor-pesquisador ressaltou a importância da participação social nas lutas que, segundo ele, não se resume a conselhos. “A participação social no campo das drogas nasce junto com o Movimento Nacional de Redução de Danos representado por duas grandes entidades, no fim dos anos 90 – a Associação Brasileira de redução de danos e a Rede Brasileira de redução de danos e direitos humanos”, afirmou, acrescentando: “Entidades que nascem no contexto do movimento brasileiro de luta contra a AIDS, são essas duas entidades que vão abrir as portas para a participação da social civil na produção e fiscalização das políticas de drogas. E hoje nós temos uma diversidade enorme de organizações que querem participar dessa discussão”.