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Soberania Alimentar e Agroecologia

Escola Politécnica promove aula inaugural do Curso de Desenvolvimento Profissional em Soberania Alimentar e Agroecologia: Boas Práticas para Cozinhas Solidárias Promotoras da Saúde
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 15/08/2023 11h49 - Atualizado em 15/08/2023 12h30

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu, no dia 10 de agosto, a aula inaugural do Curso de Desenvolvimento Profissional em Soberania Alimentar e Agroecologia: Boas Práticas para Cozinhas Solidárias Promotoras da Saúde. A formação é uma parceria da EPSJV/Fiocruz com o grupo Movimenta Caxias e é financiada por uma emenda parlamentar.

O objetivo do curso, que vai até o dia 6 de dezembro, é desenvolver formação em soberania e segurança alimentar e nutricional com base na agroecologia, bem como fortalecer as redes de cooperação para a construção de uma economia solidária, visando a promoção da saúde e o enfrentamento da insegurança alimentar em populações vulnerabilizadas na Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Os estudantes do curso são agricultores familiares, trabalhadores de cozinhas solidárias e voluntários.

Abertura do evento

Na mesa de abertura do evento, Bruno Henrique Nunes, coordenador do curso pelo Movimenta Caxias, afirmou que a experiência das cozinhas solidárias durante a pandemia foi o que inspirou a criação do curso. “Nós conseguimos resistir a pandemia a partir de iniciativas feitas por lideranças territoriais, combatendo à fome com as cozinhas solidárias. Essas iniciativas nos fizeram pensar em como garantir que essa rede de solidariedade continue e como estabelecer formas de construir políticas públicas para que essas novas ferramentas sociais sejam potencializadas. E assim surge a ideia do curso”, contou.

Além de Bruno, fazem parte da coordenação do curso pelo Movimenta Caxias, Maylon Rodrigues e Vitor Baiense. Pela Escola Politécnica, também estão à frente os professores-pesquisadores Lásaro Stephanelli, Gladys Miyashiro, Priscila Faria e Taísa Machado. “Preparamos esse curso com muito respeito. Esperamos que vocês aproveitem, tragam dúvidas e questionamentos, façam conexões. Estamos aqui para dar início a esse grande processo. Sejam todos bem-vindos", disse Lásaro.

Parte da coordenação político pedagógica (CPP), a professora-pesquisadora Edilene Pereira falou da longa trajetória de formulação do curso. Segundo ela, o processo teve início em 2021, quando a Escola foi procurada para executar uma emenda parlamentar sobre o enfrentamento da insegurança alimentar em populações vulneráveis. “Desde então, tivemos muitos encontros e reuniões, visitamos cozinhas solidárias. Fizemos uma oficina de construção curricular do curso, em abril deste ano, com muitos parceiros. Nela, foram levantados os principais problemas e desafios de uma formação como essa”, ressaltou ela. 

Edilene falou ainda sobre a importância do curso no âmbito da Fiocruz: “O combate à fome é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, faz parte da Agenda 2030. O direito à alimentação está na Constituição de 1988. Essas pautas também são uma preocupação da Fiocruz. No nosso último Congresso Interno, em 2021, foram aprovadas teses e diretrizes com propósito de fomentar articulações intersetoriais, buscando contribuir no combate à fome”.

Em seguida, a diretora da EPSJV, Anamaria Corbo, ressaltou que a volta do Brasil ao Mapa da Fome trouxe o tema novamente para o cenário nacional e isso fez com que a escola se aproximasse da temática das cozinhas solidárias. “Infelizmente, nos últimos seis anos, tivemos governos que fizeram com que vários indicadores, principalmente da população mais pobre, ficassem muito pior do que já eram. As desigualdades aumentaram muito. Quando falamos das 33 milhões de pessoas que têm fome no nosso país, os indicadores têm cor e gênero. Seis a cada dez domicílios comandados por pessoas pretas sofrem com insegurança alimentar”, apontou, acrescentando: “Também tem região. As pessoas que mais passam fome se concentram nas regiões Norte e Nordeste. Quando isso se transforma em um problema de saúde pública, a Fiocruz começa a se organizar e nós começamos a discutir que precisaríamos aprender sobre cozinhas solidárias para trabalhar e ajudar os movimentos sociais na criação desses equipamentos”.

Cozinhas solidárias e pandemia de Covid-19

Após a abertura do evento, foi realizada uma mesa de debates com o tema “Desafios das cozinhas solidárias a parti do enfrentamento à pandemia de Covid-19”. Natália Tenuta, Coordenadora-Geral de Equipamentos Públicos, da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) destacou que as cozinhas solidárias são um importante e estratégico equipamento da sociedade civil, seja em parceria com poder público ou não, para contribuir no enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional que temos no Brasil. Ela compartilhou dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), de uma pesquisa realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022. “Temos 125 milhões de pessoas em insegurança alimentar e mais de 33 milhões enfrentando uma situação de insegurança alimentar grave, o que inclui a fome”, apontou. 

De acordo com ela, os equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional têm como objetivo contribuir para o combate à fome, usando a garantia de alimentos saudáveis e culturalmente adequados, em busca de alcançar a promoção da dignidade humana. “Fazem parte desse rol de equipamentos os bancos de alimentos, as centrais de agricultura familiar, as cozinhas comunitárias e os restaurantes populares”, citou. E acrescentou: “Com a lei 14.628/2023, incorporamos o apoio às cozinhas solidárias, que estão sendo mapeadas para compor a agenda de apoio do Ministério”.

Natália apresentou ainda um mapeamento feito pelo MDS, que objetivou apoiar o planejamento e delineamento de ações estratégicas direcionadas às experiências locais de abastecimento e oferta de refeições que atendem pessoas e famílias em vulnerabilidade social e insegurança alimentar e nutricional. “Até 30 de junho, tivemos o cadastro de 2073 cozinhas. Isso é resultado de várias questões políticas e estruturantes dos últimos anos. A sociedade civil precisou dar uma resposta e atuar nos territórios na luta pelo combate à fome e à insegurança alimentar”, apontou, anunciando os próximos passos: “Queremos regulamentar o Programa Nacional de Cozinhas Solidárias e incluí-lo no rol de equipamentos públicos e sociais do MDS”.

Experiências territoriais

Em seguida foi a vez de Débora Silva, fundadora e gestora da ONG Sim! Eu Sou do Meio, em Belford Roxo (RJ), e conselheira da Casa Fluminense, falou sobre a experiência de oferta de quentinhas durante a pandemia. “Eu conheci Belford Roxo que eu não conhecia. Tinha uma população que nem a prefeitura tinha acesso. Eu descobri lugares que 89% da população vive com água de poço e não tem saneamento básico. As necessidades fisiológicas vão para o solo e eles bebem a água do solo contaminada”, relembrou.

Segundo Débora, foi a união da sociedade civil – ONG Sim! Eu Sou do Meio, ONG Conexão Solidária, ONG Coalização Negra por Direitos e ONG Crioula – que alimentou mais de 220 mil pessoas de Belford Roxo, de 2020 a 2021. “Eu acho muito legal quando falam ’pacto contra a fome’, mas eu quero ver corpos iguais aos meus pautando um pacto contra a fome. Nós precisamos sair daqui mais organizados, estamos pensando em um Fórum de Cozinhas Solidárias. Vamos construir uma agenda que venha da favela. Precisamos mostrar para o Estado e para iniciativa privada que há inteligência, sagacidade, experiência... A gente faz muito com pouco”, afirmou. E completou: “Minha missão é tirar Belford Roxo da invisibilidade social, econômica e política”.

Wesley Teixeira, da liderança da Coalizão Negra por Direitos e coordenador nacional da campanha humanitária “Tem gente com Fome”, iniciou sua fala com um poema de Bertolt Brecht. “A frase de Brecht que diz 'temeremos mais a miséria do que a morte’ nunca fez tão sentido quanto nesse último século que estamos vivendo. Eu estou falando aqui como aquele que foi beneficiário de programas sociais, que hoje tem orgulho de estar construindo outras formas de sobrevivência para o seu próprio povo”, destacou.

Ele falou ainda sobre a importância da alimentação no contexto escolar. “A escola hoje é o principal acesso do poder público na maioria das periferias. Se não é a escola, é a polícia. É um lugar que muita gente vai para comer merenda, essa é a verdade. E a merenda faz um papel diferencial na vida das pessoas. Ninguém aprende de barriga vazia”, comentou.

Segundo Wesley, a campanha “Tem gente com Fome”, nascida no seio de organizações do movimento negro, foi lançada em março de 2021 para enfrentar a fome e auxiliar famílias brasileiras. “Começamos a entregar 40 cestas. Nos juntamos com a ONG Crioula e formamos a campanha “Agora é Hora” e entregamos 40 mil cestas nesse primeiro ano, com alimentos orgânicos. Também levávamos informação para as famílias. Era uma rede de troca de informação potente”, contou. E finalizou: “Surgiu assim a campanha ‘Tem gente com Fome’ e atendemos 200 mil famílias”.

“Essas ações durante a pandemia demonstram a nossa imensa capacidade de solidariedade, de sociabilidade, de construir soluções comuns e criativas para enfrentar as marcas de um dos sistemas mais cruéis que existe nesse planeta. A marca do Estado brasileiro é o controle dos corpos das mulheres, dos indígenas e negros, historicamente”, continuou Jailson Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas e assessor da Presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Segundo ele, a riqueza nacional é distribuída por um grupo social muito específico: homens, brancos, enriquecidos por este Estado e heteronormativos. “Precisamos construir, de fato, um movimento periférico, popular, que seja radicalmente negro, periférico, progressista e revolucionário”, destacou Jailson. 

Ele pontuou ainda o fato de não ter um número significativo de pessoas negras em cargos maiores na gestão pública. Na visão dele, isso não tem a ver com competências, mas sim com a estrutura da sociedade brasileira. “Não é que não tenhamos competência técnica para isso, mas a estrutura racista que constrói e constitui o Estado brasileiro faz que não tenhamos meios para chegar ali”, apontou.

Para encerrar a mesa e abrir para o debate com os estudantes e convidados, Fernanda Sá Brito, nutricionista e professora adjunta do Departamento de Nutrição Social e Aplicada (DNSA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), falou sobre o Sistema Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional. De acordo com ela, o termo segurança alimentar e nutricional é um conceito quase inalcançável. “O conceito surge no período de guerras, com a ideia de segurança alimentar como garantia dos países de terem um alimento e não sofrer boicotes. Não tínhamos a ideia da qualidade de alimentação e direito a ela”, historicizou.

No Brasil, segundo Fernanda, o debate surge principalmente a partir da década de 1980, com a redemocratização e luta dos movimentos sociais pela garantia de direitos. “É nesse período que temos a primeira Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, quando é proposta a construção de um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional”, lembrou, acrescentando que na década seguinte, em 1990, o país avança na luta pelo combate à fome: “Construímos um mapa da fome, que dizia que existiam no país cerca de 32 milhões de pessoas passando fome; também construímos o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], que foi extinto, pela primeira vez, durante o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995”.

Nos anos 2000, são criadas, segundo Fernanda, políticas e ações voltadas para o combate à fome. “Não à toa saímos do mapa da fome em 2014. Temos também a criação de vários programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa Bolsa Família, enfim, ações que foram fundamentais para a redução da fome. Ainda que ela não tenha acabado, sabemos que tivemos uma redução importante no número de pessoas passando fome”, afirmou.

A segurança alimentar e nutricional, continuou Fernanda, consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e sem comprometer o acesso a outras necessidades básicas. “Ou seja, não adianta eu ter acesso a alimentos se eu não tenho saneamento básico, moradia... Então, para estar seguro de que eu vou ter comida na mesa, eu tenho que ter um rol de outros direitos garantidos. Precisamos de práticas alimentares promotoras da saúde e que sejam ambiental, cultural, economicamente e socialmente sustentáveis”, finalizou.