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Território, Violência e Saúde Mental

6º Seminário de Saúde Mental, promovido pela EPSJV, discutiu a questão com alunos e trabalhadores da Escola
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 14/11/2018 10h04 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

‘Território, Violência e Saúde Mental’ foi o tema do 6º Seminário de Saúde Mental, promovido no dia 5 de novembro pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A palestra foi ministrada por André Lima, historiador da Cooperação Social da Fiocruz, e Tânia Kolker, psicanalista, coordenadora técnica da 'Clínica do Testemunho' no Rio de Janeiro e membro da equipe Clínico Política e do Centro de Reparação Psíquica. O evento contou ainda com a participação dos alunos dos cursos de Atualização Profissional em Práticas Grupais em Saúde, de Qualificação Profissional no Cuidado à Pessoa Idosa e de Qualificação Profissional em Saúde Mental.

Para André Lima, morador de Manguinhos, bairro localizado no entorno da Fiocruz, no Rio de Janeiro, não existe uma única violência, mas sim violências das mais variadas formas, como a falta de água e de saneamento básico que se encontra nas favelas. “Chamo atenção também para a questão do estigma sobre a favela. Se você mora numa vila, você não é ’vilado’, mas se você mora na favela, você é ’favelado’", afirmou, acrescentando: “A favela, que muita vezes foi atribuída como solução para esses ’favelados’, é, na verdade, uma solução para o Estado brasileiro que não conseguiu criar condições para que os trabalhadores pudessem ter uma habitação digna”. Dentre essas características estigmatizadas, André citou o “favelado” visto como morador pobre e preguiçoso. Para ele, atualmente, não é possível dizer que a favela é lugar de pobreza. Na verdade, como na sociedade em geral, ela é um espaço de “grandes hierarquias sociais e de desigualdade”.

O historiador fez críticas também à ideia de favela como lugar de violência, onde os indivíduos são naturalmente levados a serem violentos. Para ele, isso traz um recorte de raça. “Quem são os moradores da favela?”, questionou e respondeu: “São nordestinos e negros. Há quem diga que nas favelas nunca se vivenciou a democracia por diversas questões... os direitos civis, políticos e sociais nunca estiveram ao alcance do morador de favela. Especialmente os seus direitos de ir e vir, de se manifestar politicamente. Além desses estigmas todos, em relação à violência armada, o morador de favela é visto como conivente ou suspeito por estar envolvido com ações do narcotráfico. O que sabemos é que isso é falacioso”.

Apesar disso, André defendeu que o espaço de favela é um espaço de resistência e que, portanto, a produção de estigmas precisa ser superada, inclusive, dentro dos espaços das favelas. “Existe movimento social, existe vida. Todos os termos equivalentes para retratar a favela acabam precarizando o local como comunidades pobres, carentes... É sempre um espaço da ausência e não da potência. Quando você afirma a favela como lugar de resistência, é uma disputa simbólica. Precisamos disputar esse termo. Porque senão a possibilidade de se gozar a vida em sua plenitude, o que representa o sentido ampliado de saúde, fica comprometida”, concluiu.

Danos à saúde

Tânia Kolker falou sobre as Clínicas do Testemunho, um programa de atenção psicológica a afetados pela violência do Estado, criado em 2013 pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, na perspectiva de reparar crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar no país, como perseguições, tortura, desaparecimentos e assassinatos. Além do atendimento às vítimas e familiares de vítimas da ditadura, as Clínicas do Testemunho incluem ainda outras atividades, como o treinamento de profissionais para atender pessoas afetadas pela violência de Estado e pesquisas sobre as consequências psíquicas e sociais da violência de Estado.

Apesar do grande avanço da iniciativa, a psicanalista afirmou que o projeto beneficiou um determinado grupo populacional na qual a violência sofrida havia sido mais visibilizada: uma classe média alta, branca, mais politizada, com mais espaço de vocalização na sociedade. Mas os trabalhadores precarizados, indígenas, camponeses e os que tinham menos voz na sociedade não foram contabilizados entre mortos, desaparecidos e torturados. E, com isso, não poderiam ser beneficiados pelo programa. "Na ditadura, os aparelhos repressivos do Estado não se ocuparam apenas de pessoas que se organizaram na luta contra o regime. Eles se voltaram contra setores criminalizáveis da sociedade. Foi um período no qual se multiplicaram os grupos de extermínio, que cresceu muito a população prisional, prisões por não poder comprovar trabalho, por participarem de associação de moradores, movimento negro, enfim, ativismos menos vocalizados na época. Vários setores da população foram atingidos", observou.

Tendo em vista essa questão, a Comissão da Anistia começou a pensar em como lidar com essa população que estava excluída desse processo. Foi criado então o Centro de Estudos em Reparação Psíquica, um projeto que visou desenvolver e estabelecer mecanismos e práticas de atenção psicossocial para o enfrentamento dos efeitos da violência de Estado. O projeto capacitou aproximadamente 30 profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) da região de Acari, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que trabalhariam com a atenção à população local. "A especificidade do projeto era garantir a qualificação de profissionais para atuarem nessa perspectiva. A gente estava lidando com profissionais que estavam se disponibilizando a trabalharem com afetados com a violência do estado, que não se viam fora desse drama, seja porque moravam ou trabalhavam em locais afetados pela violência", afirmou, lamentando a descontinuidade dos projetos, que foram encerrados há quase dois anos.

Segundo Tânia, hoje existe um cenário de agravamento maior. Uma das questões fundamentais, para ela, é que o dano causado pela violência do estado não se limita a mortes, torturas, prisões... "ele se estende a forma como o estado e a sociedade respondem ou não a isso". "Há um discurso das autoridades justificando esse tipo de ação e a própria sociedade se sentindo contemplada nessa justificativa. Pessoas portando guarda chuva, furadeiras ou até mesmo professores, alunos dentro da escola pública têm sido atingidos cada vez mais por simplesmente viverem em locais da cidade bastante vulneráveis a esse tipo de ação. E duplamente penalizados pelo discurso que justifica a violência, como se fosse uma legitima ação do estado para coibir grupos que colocam em risco o restante da sociedade", concluiu.