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'Cozinhando em banho maria com a água evaporada'

Servidores e estudantes das universidades estaduais do Rio se mobilizam contra sucateamento e privatização
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 13/03/2017 15h40 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Raquel Júnia - EPSJV/FiocruzAs outras duas universidades estaduais do Rio, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), localizada em Campos dos Goytacazes, há cerca de 400 quilômetros da capital, e a Fundação Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (Uezo), localizada em Campo Grande, bairro da zona oeste da cidade, distante mais de 50 quilômetros do centro, menores e com menos tradição do que a Uerj, estão na mesma situação. “Estamos muito depreciados, muito precarizados. Estamos sendo cozidos em banho-maria já quase com a água evaporada. Nós estamos nessa luta desde fevereiro de 2016. Eles trocam secretário, aí volta tudo à estaca zero. A gente não tem a quem recorrer. Nós estamos sendo vandalizados”, revolta-se a diretora da Associação dos Docentes da Uenf (Aduenf), Maria Angélica Pereira. Professora da Faculdade de Veterinária, ela conta que os animais atendidos na universidade estão sendo roubados. “E ali é o seguinte: Campos dos Goytacazes é o núcleo central do norte-fluminense, e antes da Uenf ali só tinha faculdades particulares. A Uenf deu chance de a população mais pobre estar de frente com uma educação pública de qualidade sem pagar. Nesses mais de 20 anos de presença da universidade, até o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] da região aumentou. Nós damos assessorias para os produtores, para os cortadores de cana, damos assistência a pescadores. A presença da universidade ali é um fator fundamental para aquela região progredir. E aí vem um governo desse e seca, fecha a torneira, e a gente fica à míngua, com o salário defasado e sem saber o que fazer. A gente vem aqui, fala, grita e nada”, lamenta a professora que caminhava com dificuldade devido a um dedo do pé quebrado, debaixo de um sol a pino, durante o ato em defesa das universidades públicas realizado em fevereiro. Maria Angélica e outros servidores da Uenf acordaram de madrugada para percorrer as quatros horas que separam a Uenf da capital.

A poucos metros de Maria Angélica, Daniele Grazinoli e a filha, Maria Clara Moura, caminhavam de mãos dadas no protesto. A menina, de 11 anos, é estudante do Colégio de Aplicação (CAP) da Uerj, também paralisado pela crise. A mãe explica por que aposta nesta formação para a filha. “A principal diferença é que nessas escolas as crianças têm o contato com o conhecimento de forma diferenciada, desde a educação básica eles têm acesso às modalidades de conhecimento através da extensão, da pesquisa e do ensino, que é a finalidade da escola. Isso faz uma diferença muito grande na produção de conhecimento. Eu acho que isso é o principal diferencial dessa escola”, sintetiza Daniele. “Normalmente, os colégios de aplicação são muito atacados, porque eles são a prova de que a educação pode ser potente. Ter essas escolas que demonstram isso é uma pedra no sapato de todo governo que não quer investir em educação. Investir em educação é investir na produção de um povo que contesta, de um povo que não está satisfeito com os desmandos dos políticos. Quem vai querer financiar uma escola dessas?  Então, essas escolas, assim como as universidades públicas, só existem por muita luta”, reflete.

Além dos campi e do Colégio de Aplicação, também faz parte da estrutura da Uerj o Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe). Ex-aluna da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Clarissa Pádua é estudante do último ano de medicina e passa todo o tempo da sua formação no hospital. Ela relata os prejuízos que a redução de atendimentos do Hupe, feita ao longo dos últimos anos, causa também à formação. “Nesse momento, a gente precisa de volume de paciente, precisamos ver situações diferentes. Estamos passando até mais tempo no hospital, voluntariamente, para podermos ver mais coisa. Os alunos de outros anos precisam ver muita gente, porque eles fazem anamnese, entrevistam, fazem exame. Tinha paciente que estava fazendo quase dez anamneses por dia, falando dez vezes a mesma coisa. Como tem pouco paciente, muita gente passa pelos mesmos. Então é muito sofrido para o paciente e para a gente também”, relata a estudante, que no momento de fechamento desta reportagem estava com a bolsa que recebe da universidade pelos trabalhos prestados no Hupe atrasada. Clarissa acredita que qualquer solução para a universidade que não seja o aporte de recursos públicos pode prejudicar ainda mais a formação. “Um hospital-escola não é lucrativo. O professor, que poderia estar fazendo uma cirurgia de forma rápida, precisa fazer a cirurgia explicando cada passo: ‘você está vendo isso aqui? Chega mais perto. Quer tocar?’. Então, ele leva o triplo do tempo que poderia levar. Por isso a nossa grande defesa aqui sempre foi que continuasse público, exatamente para nós podermos ter essa licença de demorar e aprender com qualidade”, defende.

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