Talvez a primeira imagem que passe pela cabeça de muita gente quando ouve o termo ‘agroecologia’ seja a de alimentos orgânicos, isto é, produzidos sem o uso de agrotóxicos, adubos químicos ou mudanças genéticas, para evitar danos à saúde de quem os consome e à natureza. O que nem todo mundo sabe é que os princípios da agroecologia vão muito além disso. “A agroecologia não é nem mesmo um ‘tipo’ ou ‘modelo’ de agricultura alternativa: ela é uma ciência”, afirma Francisco Caporal, presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e coordenador de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA). De acordo com ele, essa ciência busca oferecer princípios, conceitos e metodologias para fazer a transição dos atuais modelos de agricultura para modelos mais sustentáveis, não apenas da dimensão ecológica e na econômica, mas também nas dimensões sociais, culturais e políticas.
Revolução verde
O conceito de agroecologia é relativamente novo – de acordo com Denis Monteiro, secretário-executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ele começou a ser mais utilizado e debatido entre as décadas de 1970 e 1980. No entanto, embora a palavra seja recente, as práticas que acabam resultando do emprego da agroecologia são bem antigas – foi justamente no estudo dessas práticas que nasceu essa ciência: “A agroecologia se relaciona a esses conhecimentos e práticas. Afinal, durante a maior parte da história da agricultura, por milhares de anos, a produção era feita sem insumos sintéticos, respeitando os ciclos da natureza”, afirma Denis.
Ele conta que, no século passado – especialmente após as guerras mundiais –, a agricultura começou a ser artificializar de forma cada vez mais rápida e intensa. “Máquinas desenvolvidas nos esforços das guerras foram adaptadas para a agricultura; venenos usados como armas químicas foram ajustados para combater pragas e doenças das plantas. As sementes passaram a ser desenvolvidas por empresas e hoje se usam sementes híbridas, transgênicas. A fertilização dos solos também passou a depender de insumos químicos. Com isso, parte do controle do processo passou dos agricultores para algumas empresas. A introdução desse ‘pacote tecnológico’ caracteriza o que chamamos de ‘revolução verde’, que se intensificou no Brasil a partir da segunda metade do século passado”, explica, completando: “Além da degradação ambiental, esse modelo gerou também um processo de expulsão das populações do meio rural. Conforme ele foi se aprofundando em diversos países, os impactos foram sentidos e começaram a ser pensadas alternativas”.
Sustentabilidade
O documento ‘Agroecologia – alguns conceitos e princípios’, do MDA, explica que a agricultura sustentável atende a oito critérios: a baixa dependência de insumos comerciais; o uso de recursos renováveis localmente acessíveis; a utilização dos impactos benéficos do meio ambiente local; a tolerância em relação às condições ambientais locais, em vez da alteração ou tentativa de controle sobre o meio ambiente; a manutenção em longo prazo da capacidade produtiva; a preservação da diversidade biológica e cultural; a utilização do conhecimento e da cultura das populações locais; e a produção de mercadorias também para o consumo interno, e não apenas para a exportação. E ele diz ainda: “esta agricultura deve atender a requisitos sociais, considerar aspectos culturais, preservar recursos ambientais, considerar a participação política e o empoderamento dos seus atores, além de permitir a obtenção de resultados econômicos favoráveis ao conjunto da sociedade, com uma perspectiva temporal de longo prazo, ou seja, uma agricultura sustentável”.
Nesse sentido, não é difícil avaliar que os princípios da agroecologia estão na contramão do modelo produtivo adotado atualmente no Brasil, baseado no agronegócio. “Os sistemas são tão mais sustentáveis quanto mais biodiversos. Os monocultivos, largamente utilizados na produção brasileira, são, por definição, insustentáveis. Além disso, do ponto de vista social, a agroecologia também se propôs a assegurar o acesso à terra – e, aqui, temos uma das maiores concentrações de posse de terra do mundo”, lembra Caporal.
Por isso, de acordo com Denis o conceito de agroecologia foi incorporado por movimentos sociais na luta por direitos: “O modelo do agronegócio artificializa a natureza, degrada o ambiente, explora o trabalhador e não está preocupado com a produção de alimentos e bens para servir à sociedade, mas com a geração de lucro. A agroecologia questiona esse modelo de desenvolvimento e aponta propostas para a construção de outro. Assim, ela propõe a agricultura familiar como aquela que é capaz de responder aos desafios da sociedade hoje: a crise ecológica, a crise social de esvaziamento do campo, de desvalorização dos pequenos produtores”, enfatiza.
É por isso que, de acordo com Paulo Alentejano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a agroecologia não se encerra apenas na dimensão da produção: “Os princípios da agroecologia nos fazem vê-la como uma direção para uma agricultura não capitalista – embora experiências agroecológicas sobrevivam hoje, a duras penas e contraditoriamente, dentro desse modelo econômico. Acredito que o movimento pelas bases da agroecologia faz parte da luta por uma transformação de ordem maior – do modelo de sociedade em que vivemos”, diz.
Agricultura orgânica e agroecologia
A agroecologia se opõe ao modelo do agronegócio. Mas será que isso significa que esse negócio não pode se tornar mais ‘verde’, com práticas menos destrutivas ao meio ambiente e à saúde? Na verdade, ele pode, e isso já está acontecendo: existe um nicho de mercado voltado para a produção de alimentos orgânicos nos moldes do agronegócio – em grandes propriedades, com exploração do trabalho, com monocultivo e tendo o lucro como principal motivação. De acordo com Denis, esses são os chamados ‘negócios verdes’, ou ‘negócios sustentáveis’, que encontraram uma boa oportunidade de mercado. “Há uma classe média alta que aceita pagar um valor maior por um alimento mais saudável, e essa produção consegue espaço na lógica do agronegócio”, explica Paulo. Convencer esse ‘nicho de mercado’ de que há outros elementos importantes além da busca por uma ‘vida saudável’ talvez seja uma estratégia importante para conseguir implementar amplamente os demais princípios da agroecologia. De acordo com o professor, é preciso, para isso, discutir amplamente as relações de produção e de trabalho envolvidas no processo. “Em relação a isso há algumas experiências interessantes, no Brasil, como a Rede Ecológica, que procura fazer uma aproximação entre os consumidores das cidades e os produtores do campo. Isso leva a uma compreensão maior do processo e à discussão de elementos como a exploração do trabalho, que o agronegócio verde pode apresentar”, diz Paulo.
Experiências no Brasil
De acordo com Caporal, não há dados estatísticos oficiais sobre os processos de produção agroecológicos no país, mas ele acredita que o desenvolvimento do estudo e das práticas pode ser observado tanto nos congressos e seminários – já foram realizados nacionalmente dois encontros e seis congressos de agroecologia –, quanto na quantidade de cursos formais na área. “Hoje, há mais de cem cursos, de nível médio e superior, espalhados pelo país, e temos 90 núcleos de agroecologia nas universidades e institutos federais. É uma ciência que vem se consolidando, ganhando espaço no campo científico, e também nas práticas e na vida dos agricultores”, afirma.
E, segundo Denis, há iniciativas importantes por parte do poder público que devem ser valorizadas e ampliadas: “As políticas de habitação rural, de estradas, escolas e postos de saúde – enfim, todas as políticas que valorizem as comunidades rurais – são importantes. Sem ter uma agricultura familiar forte, com pessoas vivendo no campo com qualidade, não é possível avançar. E há também políticas mais diretas de fortalecimento da agroecologia, como as que viabilizam o acesso aos mercados institucionais por parte dos agricultores familiares”, diz, referindo-se ao Programa de Aquisição de Alimentos e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que garantem a compra de parte da produção familiar pelos governos. Denis afirma que esses programas atingem a um conjunto bastante expressivo de agricultores, mas precisam ser ampliados.
No entanto, ele aponta que, apesar dos avanços, a maior parte das políticas ainda é direcionada para o agronegócio. “Isso não é apenas no Brasil, mas em todo o mundo. As estruturas públicas de crédito, assistência técnica, as estradas, os portos, tudo é montado para favorecer a agricultura de exportação no modelo agroquímico”, critica . Para ele, um dos maiores problemas diz respeito ao financiamento da produção, por meio do crédito rural. “Esse crédito foi e ainda é uma das principais ferramentas de inserção da agricultura familiar no modelo convencional, não-agroecológico, já que o crédito em geral financia sementes híbridas, monocultivo, fertilizantes industriais, agrotóxicos”, diz.
Ele explica que isso ocorre por algumas razões: “Existe um manual de crédito rural que define a aplicação dos recursos. Mas, muitas vezes, quem constrói os projetos são equipes técnicas de empresas públicas de assistência técnica, que nem sempre o fazem de acordo com os princípios agroecológicos. Além disso, o crédito precisa ser aprovado pelos bancos, que muitas vezes não aprovam projetos de transição agroecológica – aprovam projetos direcionados a uma única cultura, com a utilização de pacotes tecnológicos”. Para Denis, as exceções a isso – os projetos agroecológicos que conseguem financiamento ou até histórias de agricultores que têm boas experiências com investimentos próprios – devem ganhar visibilidade para mostrar que são bons exemplos: “Assim, consegue-se mudar uma essa cultura de que a agroecologia não é viável economicamente, que os agricultores não vão conseguir recursos se não for para usar os insumos chamados ‘modernos’. É preciso fazer um trabalho amplo nesse sentido”, defende.