Não é possível falar de agroecossistema sem antes passear pelas bases que formam essa estrutura. É assim quando se pensa em qualquer análise do meio ambiente: diversos caminhos podem ser trilhados, cada qual com suas particularidades. Primeiramente, é preciso passar pelos ecossistemas, com suas interações entre organismos vivos como plantas e animais, e componentes abióticos, como o ar, o solo, a água e minerais. Na sequência, toma-se o rumo da agroecologia, uma forma de agricultura sustentável que associa o ecossistema aos meios de vida e produção dos seres humanos, tendo em mente questões políticas, culturais, socioeconômicas e ambientais. Só então chega-se a um ponto de encontro entre ambos, no amplo conceito de agroecossistema: um ecossistema gerido por meio da participação popular, que tem como característica seu manejo por seres humanos a fim de gerar benefícios para a humanidade. “Nos agroecossistemas, além das plantas, animais e microrganismos dos ecossistemas do lugar, observamos também as plantas cultivadas e os animais criados”, explica o agrônomo e integrante da Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), organização da sociedade civil que assessora organizações da agricultura familiar com base nos princípios da agroecologia e que integra redes como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Denis Monteiro. O agrônomo também é autor do verbete “Agroecossistema” no Dicionário de Agroecologia e Educação, organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), e publicado em 2021 pela Editora Expressão Popular e a EPSJV.
Segundo o verbete, agroecossistema é uma unidade fundamental de pesquisa e intervenção; um local de produção agrícola compreendido como um ecossistema. “Por meio de seu processo de trabalho, as pessoas modificam a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas para satisfazer suas necessidades e para atender às necessidades de outras pessoas não diretamente envolvidas na agricultura, com base nas relações de reciprocidade e de trocas mercantis”.
O agrofloresteiro do assentamento Luiz Beltrame, do MST, em Gália, interior de São Paulo, Rafael Virgínio dos Santos, diz que entendendo o agroecossistema como uma unidade de análise, é preciso perceber a interação social, política, econômica e ecológica. “Nesses espaços, as pessoas lidam com o ambiente causando um impacto que pode ser positivo ou negativo. É necessária uma grande conscientização dos agricultores da comunidade. A gente tem uma identificação cultural e sociocultural muito grande da comunidade em relação ao território”, conta.
Para o professor-pesquisador da EPSJV Alexandre Pessoa, há também outras formas de agroecossistemas que devem ser mencionadas, como aquelas desenvolvidas pelos indígenas. “Por meio do seu conhecimento e da sua relação com a natureza, os indígenas desenvolveram sistemas agroflorestais que, na verdade, são agroecossistemas. Eles fazem manejo de solo e manejo florestal. Também falam de ‘mulheres biomas’, ‘homem bioma’. Há muita discussão de não separar a pessoa da natureza porque nós fazemos parte dela”, explica. “Ou seja, anterior a todo esse movimento, o agroecossistema já era feito pelos indígenas. Eles apenas não denominam dessa forma”, diz.
Participação e funcionamento
A participação social e política das pessoas que cuidam desses territórios são fatores fundamentais para os agroecossistemas, por isso, é importante entender a função de cada um nas associações comunitárias, nos espaços de comercialização, nos sindicatos, movimentos sociais, conselhos e redes. Para Santos, a gestão dos agroecossistemas funciona como em qualquer lugar que se cultive agricultura familiar camponesa: com cuidado com o território. “Temos um diálogo na comunidade bastante avançado no sentido de manutenção dos recursos, porque muitas das plantas que a gente encontra por aqui, por exemplo, são medicinais, com esse potencial de fazer remédio, de flora apícola. Atuamos como guardiões do território, o que significa que temos maior seguridade, uma maior preservação do meio ambiente. A gente vê que há uma melhora nessa questão do avanço das matas nativas por meio dos corredores ecológicos [promovem a ligação de diferentes áreas, favorecendo o deslocamento de animais, a dispersão de sementes e o aumento da cobertura vegetal]. Se pegar uma imagem aérea de antes e depois do assentamento, por exemplo, é possível ver que a conservação melhorou bastante em vários pontos”, explica.
Outro ponto importante é sobre as políticas de compras institucionais que levaram a mudanças estratégicas nos agroecossistemas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além das políticas de valorização dos produtos da sociobiodiversidade, como é explicado no Dicionário de Agroecologia. Segundo Denis Monteiro, no agroecossistema há produções que são destinadas ao consumo da família, outras são doadas às comunidades ou para amigos e parentes e outras são destinadas aos mercados. “É olhando os fluxos dessas produções que entendemos a ecologia dos agroecossistemas e temos elementos para pensar quais inovações podem promover maior autonomia em relação aos mercados de insumos e serviços. Diferentemente dessa autonomia dos agroecossistemas, na lógica da modernização agrícola, os insumos devem ser comprados no mercado: sementes, fertilizantes sintéticos, agrotóxicos, ração e medicamentos para os animais”, ressalta.
Tecnologias Sociais
O agrônomo Denis Monteiro argumenta sobre a necessidade de se valorizar e incentivar a produção de matérias-primas, sementes e alimentos de qualidade no próprio agroecossistema, nas comunidades e territórios. Segundo ele, é preciso avaliar como se dá a produção interna e entender o que vem das comunidades ou é comprado no mercado. “Pode ser que haja insumos que vêm do Estado, por exemplo, se houver uma política de distribuição de sementes e de composto feito com resíduos orgânicos das áreas urbanas. Quanto maior a produção de fluxos internos ao território e com a comunidade, mais autônomo é o agroecossistema e maiores são os níveis de sustentabilidade desse agroecossistema”, afirma. Ela também explica que para sistematizar esses fluxos, as Tecnologias Sociais (TS) são muito importantes. “Por exemplo, os bancos familiares e comunitários de sementes crioulas, minhocários e composteiras, silos para armazenar e conservar forragem para fornecer aos animais nos períodos mais secos do ano, e todas as tecnologias relacionadas ao estoque e distribuição de água, como as cisternas, tanques e sistemas de irrigação”.
No Dicionário de Agroecologia, as TS são definidas como métodos ou instrumentos capazes de solucionar algum tipo de problema social e que atendam aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e geração de impacto social. Ou seja, elas utilizam conhecimentos acessíveis para a população e estratégias para promover uma melhora na qualidade de vida de uma determinada parcela da sociedade. Alguns exemplos são a captação da água da chuva, os aquecedores solares, coleta seletiva e bioconstruções.
O agrofloresteiro do MST comenta sobre o conhecimento tradicional como uma ferramenta de tecnologia social em seu assentamento. “Embora existam outras tecnologias mecânicas sociais que também são importantes para gerir o nosso território, acreditamos que hoje a maior tecnologia social que a gente tem é a união no entorno das cestas agroecológicas”, explica Santos, que complementa: “O cuidado que temos com a terra, com a rotação de cultura, com adubação orgânica, com compostagem, com poda, é fundamental. Respeitar o conhecimento tradicional, a valorização da biodiversidade, tudo isso é importante, haja vista que o agroecossistema não é somente uma dimensão produtiva”, diz. Para ele, o agroecossistema perpassa pela sociologia e pela antropologia cultural. “Temos um papel fundamental no manejo da biodiversidade dos recursos naturais, da questão sociológica, filosófica, combater o machismo, promoção da igualdade de gênero, a inclusão social para que nossos jovens não tenham evasão do campo. Procurar ter emprego no meio rural por meio da inserção da juventude, por meio da discussão da nossa cultura nas escolas, isso é fundamental para que os alunos se sintam orgulhosos do espaço que eles vivem e habitam”, afirma.
O agro é pop?
Quando se busca entender as estruturas de um agroecossistema, o professor-pesquisador da EPSJV explica que qualquer definição é fechada nos próprios princípios agroecológicos. Para Alexandre Pessoa, esses princípios se relacionam com a justiça social, as ciências sociais, o respeito às leis da natureza, a emancipação humana e com o fim da exploração da natureza e do homem pelo homem. “Porque se eu cultivo um sistema agroflorestal de monocultura com só um tipo de raça de animal e um tipo de floresta, eu não respeito a biodiversidade, que é um princípio agroecológico. Os sistemas artificiais que usam a terra para o negócio, não para o trabalho, eles confrontam as leis ecológicas, reduzem a biodiversidade e fragilizam os ecossistemas a ponto de permitirem, por exemplo, doenças emergentes. Porque você tem um processo de perda de variedade genética. Tanto de plantas, quanto de animais”, argumenta.
Hoje, muito se questiona se determinadas ações e práticas se inserem no contexto de agroecossistema. Sobre o tema, Alexandre é enfático. “O problema é que o capitalismo verde, a economia verde e o próprio agronegócio, cada vez mais estão se utilizando de termos da agroecologia para fazer o greenwashing [apropriação de qualidades ambientalistas por organizações, omitindo informações sobre seu real impacto ao meio ambiente]. E esses elementos de cooptação política só se resolvem, inclusive, se tiverem à luz de princípios, não somente baseados em uma discussão filosófica. O processo de políticas públicas estabelece quais são os princípios, que, por sua vez, definem diretrizes e estratégias. O mesmo cabe em uma concepção da agroecologia”, explica o professor-pesquisador.
Educação
O processo de trabalho na agricultura é complexo e se relaciona com diversos conhecimentos, articulando trabalhos intelectuais e habilidades manuais refinadas, de acordo com o verbete do Dicionário de Agroecologia. “As escolas do campo, por estarem imersas nessa realidade das comunidades da agricultura familiar, dos assentamentos da reforma agrária e das comunidades tradicionais, estão numa posição privilegiada para construir projetos pedagógicos que contribuam com esse objetivo”, argumenta Monteiro. Ele continua: “Acho que o conceito de agroecossistema pode ser muito útil para construir projetos pedagógicos interdisciplinares nas escolas do campo, exatamente por sua complexidade, por mobilizar tantos conhecimentos diferentes e por ser o dia a dia das famílias camponesas. É, portanto, um conceito potente para a educação contextualizada e transformadora”, observa o agrônomo.
Santos concorda. “Construir, discutir ou abordar o agroecossistema na perspectiva pedagógica e interdisciplinar é detalhar todo esse processo histórico de inclusão, e o manejo que a gente vem fazendo”, diz. “Não só no manejo do ambiente, na verdade, mas no manejo do ambiente no sentido de se abordar a epistemologia do lugar, o saber local. Tudo isso faz parte de uma interdisciplinaridade no conceito de agroecossistema, que merece uma abordagem que passe pela inclusão social, pela igualdade de gênero, a promoção da geração de renda para a juventude, a manutenção dessa juventude no campo e a criação de cooperativas para que possam representar os agricultores em suas debilidades e fragilidades. Fortalecendo o território e a comunidade”, conclui o agrofloresteiro do MST.