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Anvisa

Alvo de atenção e polêmica em função da expectativa de ampliação da imunização contra Covid-19, agência é parte de um sistema de regulação que vai muito além da autorização de vacinas
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/05/2021 10h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Foi uma “arrumagem de melancias na carroça”. Com essa metáfora o médico sanitarista Gonzalo Vecina define o processo que, lá em 1999, concentrou num mesmo órgão um conjunto de tarefas de controle e regulação de produtos e serviços que pudessem trazer riscos à saúde da população. Nascia, ali, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, responsável por estabelecer normas e padrões, autorizar, registrar e acompanhar a produção, comercialização e uso de uma infinidade de itens que estão presentes no dia-a-dia de todos nós: entre eles, alimentos, cosméticos, medicamentos, derivados do tabaco e, como a essa altura da pandemia de Covid-19 você já deve saber, vacinas. “No geral, a vigilância sanitária é a responsável pela regulação de produtos e serviços que podem implicar algum risco à saúde, dependendo da forma como serão realizados”, define Luiz Claudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e ex-gerente da área de toxicologia da Anvisa. “É um braço importantíssimo do SUS”, completa.

Neste exato momento, é por conta da atuação em relação às vacinas que os olhos do país inteiro têm se voltado para a Anvisa. Mas o trabalho da agência vai muito além. E, embora a pandemia seja uma tragédia sem precedentes, o país e o mundo já viveram outras situações mais ou menos dramáticas que exemplificam exatamente o que a existência de um órgão como a Anvisa pretende evitar.

Aprender com as tragédias

Um grande escândalo que se tornou um marco no papel da regulação sanitária global aconteceu entre as décadas de 1950 e 1960: foi quando a talidomida, medicamento anti-inflamatório e sedativo, passou a ser indicado também contra enjôos em mulheres grávidas e o resultado foi o nascimento de mais de 10 mil bebês com deformidades físicas em todo o mundo. Embora essa tragédia tenha acontecido numa época em que a vigilância era muito menos estruturada, para Meirelles esse é um entre vários outros exemplos que mostram a importância de uma concepção de regulação mais ampla, que vá além do que ele chama de um simples “ato cartorial” de autorizar ou não um determinado produto. “A regulação começa desde a geração de uma determinada substância até sua destinação final pelo desuso ou proibição”, diz, explicando que isso envolve procedimentos combinados de prevenção e controle. “A ação preventiva está relacionada à avaliação da especificação do produto antes da liberação e o controle ou pós-registro está relacionado a programas que me permitem conhecer mais o impacto daquelas substâncias então liberadas, através de um acompanhamento junto com a população”, detalha, explicando que isso vale para medicamentos, mas também para vacinas, agrotóxicos e muitas outras substâncias. E conclui: “No Estado brasileiro, quem tem esse papel de coordenação nacional do sistema de  vigilância é a Anvisa”.

Também por aqui, a vigilância sanitária foi “impulsionada” por “acontecimentos trágicos”, como conta o próprio site da Anvisa. Entre os exemplos citados, o mais geral foi o papel das transfusões de sangue na difusão da Aids nos anos 1980, que evidenciou a falta de controle sanitário nos serviços de hemoterapia. Situações localizadas, mas igualmente graves, como o acidente radioativo em Goiânia, em 1987, completam o cenário da época.

É bem verdade que quando esses problemas aconteceram o Brasil já tinha tentado organizar um pouco suas ações nessa área. O principal marco legal – válido ainda hoje, apesar de todas as atualizações – data de 1976: a lei 6.360, que trata da vigilância de medicamentos, insumos farmacêuticos, saneantes (herbicidas, detergentes e inseticidas, principalmente) e cosméticos, entre outros produtos. No mesmo ano, um decreto (nº 79.056) criou a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária como parte da estrutura do Ministério da Saúde. Gonzalo Vecina, que foi o primeiro diretor-presidente da agência, conta que, aos poucos, foram sendo incorporadas nessa estrutura comissões relativas ao controle sanitário de alimentos e das construções dos serviços de saúde – neste último caso, a fiscalização e a regulação visam prevenir riscos relacionados à infecção hospitalar, radiação e hemodiálise, por exemplo. Portanto, tudo isso já estava reunido sob um único guarda-chuva mesmo antes da criação da agência.

As melancias da carroça

No processo de construção da agência, quando aconteceu a tal arrumação das ‘melancias’ citadas por Vecina na metáfora que abre esta reportagem, algumas delas voltaram a se espalhar. Ele conta que quando assumiu a tarefa de implementar o que viria a ser a Anvisa, tentou ampliar o foco original da regulação de medicamentos para incluir outros produtos, como alimentos e agrotóxicos, além do acompanhamento da construção de serviços de saúde e questões relacionadas ao meio ambiente e saúde do trabalhador. “Aí houve uma crítica muito grande por parte do pessoal que estava fora da discussão, dizendo que a agência estava ficando poderosa demais”, diz, lembrando que foi preciso negociar as “bolas divididas”. Parte da responsabilidade pela regulação e controle de alimentos, por exemplo, ficou com o Ministério da Agricultura, que também já detinha o registro dos agrotóxicos no Brasil, embora a Anvisa realize o trabalho técnico mais detalhado, como avaliação toxicológica dessas substâncias. Mesmo assim, Vecina considera que a agência fortaleceu a regulação nessa área, atuando inclusive sobre produtos de biotecnologia, já que naquele momento começava-se a discutir a produção de transgênicos.

Por lá também ficaram as ações de regulação e controle da saúde do trabalhador da área da saúde, mas a vigilância de saúde do trabalhador seguiu como atribuição dos ministérios do Trabalho e Saúde. “Uma lacuna que existe e sempre foi questionada, desde a criação da Anvisa, é que as questões relacionadas à vigilância ambiental, saúde do trabalhador e vigilância epidemiológica nem sempre andam juntas”, diz Meirelles, e exemplifica: “Quando entra em uma fábrica, você não deve estar preocupado somente com a composição e a forma de um comprimido ou dos escritos nos rótulos. Tem que estar preocupado também com o processo de trabalho, com a condição do trabalhador naquele ambiente e com os possíveis agravos decorrentes da atividade laboral”. Da mesma forma, o controle de fronteiras, que é parte das atribuições da vigilância sanitária, tem uma histórica relação com a vigilância epidemiológica, que acompanha a entrada e saída de pessoas contaminadas – por exemplo, com a Covid-19.

É também parte das funções da Anvisa a produção de notas técnicas e das chamadas Resoluções de Diretoria Colegiada (RDCs), que são normas necessariamente aprovadas em reuniões com os cinco diretores da agência. A variedade de assuntos é grande. Se pegarmos apenas o contexto da pandemia, coube à Anvisa ‘legislar’ sobre medidas que vão desde a autorização de importação de medicamentos e vacinas até o tipo de máscaras que são permitidas em aeroportos e aeronaves, entre muitas outras medidas. E, mesmo que a pandemia esteja tomando todas as atenções neste momento, a produção e comercialização de outros produtos que precisam de regulação não param: em março deste ano, a Covid-19 atingia recordes de mortes no Brasil quando uma RDC da agência precisou regular, por exemplo, a composição, qualidade e informações de rótulo de óleos e gorduras vegetais.

Autonomia

Apesar de ter sido criada observando-se um modelo internacional, Vecina destaca uma diferença da Anvisa em relação a todas as outras agências que ele conhece: sua independência, garantida pela combinação de autonomia orçamentária, servidores concursados e estabilidade do corpo de diretores – o que, na opinião do pesquisador, a protege de intervenções dos governos. De fato, isso é o que prevê a lei de criação da Anvisa, nº 9.782. E a atual pandemia de Covid-19 é provavelmente um dos momentos em que esse desenho institucional mais foi posto à prova. “A temperatura deve ter subido por lá”, aposta Vecina, argumentando que, apesar da pressão, o papel desempenhado pela Anvisa e seus dirigentes durante a pandemia foi “irretocável”. “Eu tenho certeza de que a principal razão pela qual não houve desvios na Anvisa foi a qualidade e a determinação dos seus servidores concursados e capacitados”, afirma, lembrando que a associação sindical que representa os funcionários da agência chegou a publicar uma carta aberta sobre sua atuação na pandemia.

O documento reconhece que “pressões externas são inerentes ao trabalho desenvolvido” mas defende o “caráter técnico” das decisões tomadas. Além disso, garante que “a agência não serve ao interesse de governos, de pessoas, organizações ou de partidos políticos”. “A Anvisa é um órgão do Estado brasileiro e está a serviço do povo brasileiro”, diz o texto. Segundo sua assessoria de imprensa, a agência tem hoje 1.674 trabalhadores, dos quais apenas 63 não são concursados próprios – são cedidos, comissionados ou outras categorias.

Luiz Claudio Meirelles concorda que a realização de concursos públicos, que resultou num corpo de servidores estáveis, e o investimento da agência na qualificação desses trabalhadores são medidas que ainda hoje fortalecem muito a atuação do órgão. Ele conta que quando deixou a agência, mais de 90% dos técnicos que atuavam na área de toxicologia, que ele gerenciava, tinham concluído mestrado a partir de um convênio da Anvisa com uma universidade pública. “A ideia era exatamente qualificar a equipe para acompanhar o estado da arte da toxicologia no cenário internacional e permitir uma discussão qualificada com os toxicologistas ‘experientes’ que representavam as empresas na defesa de seus interesses junto à agência”, diz, destacando o quanto é preciso proteger a agência de pressões que eventualmente podem vir não apenas dos governos mas também do setor econômico, impedindo que se desvie da sua finalidade.

Meirelles, no entanto, não considera que apenas a “qualidade técnico-científica” das equipes da Anvisa seja suficiente para garantir a liberdade e o acerto na tomada de decisão. Ele defende que “somente com mecanismos efetivos de participação da comunidade científica independente e da sociedade civil organizada, representada por trabalhadores, consumidores e população geral, serão alcançados os melhores resultados de uma regulação voltada à proteção e a promoção da saúde”.

De todo modo, o desenho institucional tenta minimizar os riscos de interferência. A Anvisa se organiza a partir de cinco diretorias que são responsáveis por um conjunto de temas, além do diretor-presidente. Todos são indicados pela Presidência da República e passam por uma sabatina no Senado. Como forma de protegê-los, depois de aprovados eles não podem ser demitidos enquanto durarem seus mandatos, que não coincidem no tempo. Perguntado sobre se a estrutura da agência de fato protege a Anvisa de interferências políticas e econômicas, o atual diretor-presidente, Antônio Barra Torres, afirmou, via assessoria de imprensa, que “o desenho e o modo de funcionamento são bem construídos”. E completou: “Economia não interfere, determina. Política vem no matiz do caráter de quem a exerce: se bom, há nível de discussão e ideal, ambos elevados. Se mau, torna-se a ciência do indevido, do indesejável, do inútil, canastra de rasteiras ambições”.

Os desafios da Covid-19

Ampliar o número de doses de vacina contra a Covid-19 é a expectativa da maior parte da população brasileira hoje. Até agora, quatro vacinas contra a Covid-19 passaram pela análise da agência e podem ser aplicadas no país. A CoronaVac e o imunobiológico da Janssen receberam autorização de uso emergencial, que é temporário e restrito a um público específico, previamente definido. A AstraZeneca, assim como a vacina da Pfizer, já conseguiu o registro final, que lhe permite ser disponibilizada para toda a população.

Mas, também nesse caso, o trabalho da Anvisa não se encerra quando ela concede o registro. “Tudo começa com a validação dos três primeiros lotes. Se tudo for validado, você recebe o certificado de boas práticas de fabricação, que é válido por dois anos. Aí a Anvisa tem que acompanhar esse contínuo processo de fabricação. Se tiver algum evento adverso mais grave registrado, alguma falha revelada por evento adverso inesperado, o produto poder ser inclusive recolhido, suspenso. Durante a vida do produto no mercado, isso é uma ação contínua da vigilância sanitária em todos os países do mundo”, explica Gonzalo Vecina.