Os primeiros meses de 2025 foram marcados pela mudança na gestão do Ministério da Saúde. E, entre especulações e análises políticas sobre a saída de Nísia Trindade da Pasta, na imprensa informações creditadas a fontes do Palácio do Planalto apontavam, como um dos problemas da área, o fato de o Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE), lançado em abril do ano passado, ainda não ter gerado os resultados esperados. Quando a edição da Revista Poli em que esta reportagem saiu foi finalizada, o debate sobre a necessidade de ampliar e acelerar o acesso da população a exames e especialidades médicas ainda estava na pauta: o atual ministro, Alexandre Padilha, anunciou uma provável parceria com hospitais e serviços privados para a realização de exames e cirurgias encaminhadas pelo Sistema único de Saúde (SUS). Já depois da publicação da Revista, no dia 30 de maio, o governo relançou o programa, com novas medidas e um novo nome: 'Agora tem especialistas'. Por trás de todas essas iniciativas e propostas, o objetivo principal é reduzir a fila de espera dos procedimentos que compõem o que, na organização do SUS, se convencionou chamar de Atenção Secundária à Saúde. O problema, no entanto, é muito mais antigo do que o período de uma gestão ministerial e, pelo próprio desenho do SUS, não é responsabilidade apenas da União. “Nós temos ainda uma grande dívida com a população neste campo. Tudo que se avançou na Atenção Primária a partir do início dos anos 1990, com a municipalização e a Estratégia Saúde da Família, nós não conseguimos obter na Atenção Especializada. Não é à toa que todas as pesquisas mostram que essa temática das filas, ou listas, de espera por consultas com especialistas, exames e procedimentos, são fontes de críticas junto à população”, avalia Helvécio Miranda Magalhães Júnior, pesquisador da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que ocupou a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES) do Ministério da Saúde entre 2023 e 2024.
A organização dentro do SUS
A Atenção Secundária à Saúde é o nível intermediário de cuidado, que se diferencia da Atenção Primária (APS) – aquela que você acessa quando vai ao ‘posto de saúde’ mais perto da sua casa – e da Atenção Terciária, que envolve tratamentos de mais alta complexidade, como cirurgias cardíacas, tratamentos oncológicos, transplantes de órgãos e terapia intensiva. Juntas, atenção secundária e terciária dão conta do amplo leque da atenção especializada. Toda essa hierarquização está definida na Portaria 4.279/2010, do Ministério da Saúde, que estabelece as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde.
A Atenção Secundária responde a necessidades que não podem ser resolvidas na Atenção Primária, atuando como referência para casos que requerem maior densidade tecnológica e profissionais especializados. Os serviços que oferece são os de média complexidade (ambulatorial), que englobam as consultas com médicos especialistas de áreas como pediatria, ortopedia, cardiologia, oncologia, neurologia, psiquiatria, ginecologia e oftalmologia, dentre outras especialidades médicas, e que podem ser exercidos tanto em unidades ambulatoriais quanto em hospitais. As necessidades de saúde não solucionadas neste nível devem ter continuidade na Atenção Terciária, ou de alta complexidade, para onde são transferidas por meio das centrais de regulação de municípios e estados. Fora das regiões metropolitanas, a oferta de serviços pela Atenção Secundária é concentrada em polos regionais e consórcios de municípios, já que os procedimentos exigem maior escala e recursos tecnológicos.
Entre os serviços mais conhecidos pela população, são exemplos de Atenção Secundária as Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24h) e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192), além dos atendimentos em policlínicas, centros de diagnóstico laboratorial e por imagem, locais onde são feitos exames como ultrassonografias, ecocardiogramas e endoscopias. Constam dessa lista também serviços terapêuticos especializados, como fisioterapia e procedimentos ambulatoriais de média complexidade, como pequenas cirurgias, anestesias e alguns procedimentos ortopédicos. Mas a resposta às necessidades de Atenção Secundária no Brasil se dá também por meio de redes temáticas, como a Cegonha, a de Atenção Psicossocial, a de Urgência e Emergência, a de Cuidado à Pessoa com Deficiência e a de Atenção às Doenças e Condições Crônicas. E, embora menos visíveis e noticiados do que as filas que os brasileiros enfrentam para acessar essas especialidades, entre essas iniciativas há vários exemplos de sucesso. “Nós temos redução de mortalidade por acidentes. Apesar do aumento do número [de acidentes], principalmente por causa de motocicletas, o SAMU hoje está caminhando para 100% de cobertura no Brasil todo. Isso é uma façanha!”, analisa Magalhães Junior, que completa: “Por sua vez, o cuidado obstétrico e neonatal, antigamente chamado de Rede Cegonha e hoje de Rede Alyne, conecta o pré-natal nas Unidades Básicas [de Saúde] aos ambulatórios especializados, maternidade, maternidade de risco e casas de parto que foram construídas. Inúmeras teses e pesquisas mostram o impacto disso na redução da mortalidade materna e infantil”.
Onde está o gargalo?
"É uma assistência fragmentada, por procedimento e por consulta, que gera idas e vindas intermináveis dos usuários"
Mario Dal Poz
O diretor do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mario dal Poz destaca os diferenciais da Atenção Secundária no Brasil em comparação a outros sistemas nacionais de saúde. “Enquanto alguns países centralizam a gestão e o financiamento da saúde, o SUS se caracteriza por um modelo descentralizado e tripartite, com responsabilidades compartilhadas entre a União, os estados e os municípios. Esses diferenciais impactam a organização, o acesso e a qualidade dos serviços de atenção secundária”, analisa. Magalhães Junior avalia, no entanto, que em relação à atenção secundária o Brasil vem repetindo formatos herdados do período histórico “pré-SUS”. “Nosso modelo hegemônico é exatamente o de 40 anos atrás. É uma assistência fragmentada, por procedimento e por consulta, que gera idas e vindas intermináveis dos usuários. Você marca o médico, ele pede um exame, você volta para autorizar. Depois volta para fazer o exame, aí demora, pega o resultado, já é encaminhado para outro médico, que pede outro exame... Isso é um périplo gerador de filas”, critica. E completa ressaltando que esse é um nível de atenção quase exclusivamente médico, “com pouca equipe multiprofissional, diferentemente da APS [Atenção Primária à Saúde] na qual vários profissionais interagem para uma assistência de qualidade”.
Pelo pacto federativo na saúde, os municípios são responsáveis pela gestão da APS e parte da Atenção Secundária, os estados gerenciam hospitais de média e alta complexidade e coordenam a regionalização da rede, cabendo à União financiar e regular o sistema como um todo. Dal Poz crê que, embora clara, essa divisão de responsabilidades frequentemente gera tensões e dificuldades na coordenação, “especialmente em municípios com menor capacidade técnica e financeira”. Outras dificuldades para a pactuação entre os entes federativos, segundo ele, são a descontinuidade política, os interesses locais conflitantes e a insuficiência técnica em determinadas regiões.
Instrumentos como o Plano de Desenvolvimento Regional (PDR), o Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) e o Decreto Presidencial 7.508/2011, que criou a Rede Nacional de Serviços de Saúde (RENASS), surgiram para integrar serviços, evitando que ficassem dispostos de maneira isolada e sem comunicação. Segundo os entrevistados desta reportagem, o uso dos recursos provenientes da União, estados e municípios, entretanto, ainda segue padrões antigos, herdados do Inamps, baseados em pagamento por procedimento — modelo que reforça a fragmentação e a lógica de produção em série, em vez da integralidade do cuidado.
“Enquanto na Atenção Primária você paga per capita, por equipe, por indicadores mais modernos, do ponto de vista da gestão, na Atenção Especializada o pagamento é feito por procedimento. Muito parecido, nesse caso, com o que ocorre no setor privado, a saúde suplementar. Toda essa engrenagem é anti-usuário e antiqualidade do cuidado, gerador de filas de insatisfação e muito dispendiosa"
Helvecio Miranda
Magalhães Júnior defende que o modelo de financiamento deve ser alterado para o atendimento integral. “Enquanto na Atenção Primária você paga per capita, por equipe, por indicadores mais modernos, do ponto de vista da gestão, na Atenção Especializada o pagamento é feito por procedimento. Muito parecido, nesse caso, com o que ocorre no setor privado, a saúde suplementar. Toda essa engrenagem é anti-usuário e antiqualidade do cuidado, gerador de filas de insatisfação e muito dispendiosa. Esse circuito não tem nenhuma lógica, sinergia ou diálogo entre os pontos de assistência. Há desperdício de procedimentos e exames”, critica. Para a solução de seus desafios, Camila Reis, pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sugere a elevação do financiamento público e da regulação do Estado, o que possibilitaria um sistema organizado. “O grau de intervenção estatal na regulação da oferta e na demanda, além da definição dos recursos públicos e privados envolvidos com a rede de cuidados e serviços de saúde, são determinantes para que se tenha um sistema universal de saúde, e a atenção secundária poderá ser usada de acordo com a necessidade da população”, defende.
Gestão da informação e melhorias de sistemas
O acesso à Atenção Secundária se dá a partir da Atenção Primária à Saúde ou da rede de urgências. Os profissionais da APS solicitam o encaminhamento do usuário para o serviço especializado via centrais municipais, regionais ou estaduais. Entretanto, passados 35 anos de criação do SUS, os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que para a maior parte do país falta integração entre as bases de dados, o que dificulta a organização da oferta e o conhecimento da demanda. Prontuários eletrônicos, filas de regulação, sistemas municipais, estaduais e federal não conversam entre si, gerando uma desorganização que colabora para a longevidade nas filas de espera por consultas, exames e procedimentos. “A maioria dos municípios não possui essa demanda organizada. Não existe, sequer, uma fila ou central de regulação que unifique essas solicitações. Além disso, não observamos um desenho de rede estruturada, o que permitiria um fluxo mais eficiente e evitaria o vai e vem dos pacientes”, avalia Dal Poz.
Para Reis, essa incipiência fragiliza o sistema de regulação assistencial, “levando à concentração de serviços especializados em grandes centros e o predomínio do modelo assistencial hospitalocêntrico”. “[Isso] traz fragmentação e superposição de ofertas, aumento dos custos com a atenção prestada e nos diferenciais de acesso, perpetuação de vazios assistenciais, e queda na qualidade e resolutividade da rede, determinando a ineficiência do sistema”, conclui.