No momento em que esta matéria é escrita, a corrida mundial pela produção de uma vacina contra a Covid-19 é acirrada: segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), até a última semana de agosto havia 176 vacinas em desenvolvimento contra a doença, sendo que, dessas, 33 estavam em fase de testes clínicos, realizados em seres humanos.
Segundo a OMS, nove vacinas estão atualmente na chamada fase 3 dos testes em seres humanos – a última etapa antes que o medicamento possa ser registrado. E o Brasil vem se movimentando nesse cenário. Por aqui, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu autorização para que fossem realizados testes da fase 3 de quatro vacinas. A primeira veio ainda no início de junho, de uma vacina desenvolvida pela Universidadede Oxford com a biofarmacêutica AstraZeneca. Essa é uma aposta da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que no final de julho firmou acordo para a compra de lotes e transferência de tecnologia com a empresa, que detém os direitos de produção e comercialização da vacina desenvolvida em Oxford. O acordo prevê a produção de 100 milhões, com as primeiras 15 milhões de doses previstas para serem produzidas já em janeiro de 2021, pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz, conhecido como Bio-Manguinhos.
Parcerias importantes
Criado em 1976, o instituto é uma unidade técnico-científica da Fiocruz – instituição que completou 120 anos em 2020 - que tem como um de seus carros-chefes a produção de vacinas que representaram conquistas importantes para a saúde pública e para o SUS. “No ano de nossa fundação assinamos o contrato de transferência de tecnologia para produção da vacina meningocócica AC com o Instituto Mérieux [na França] e, em 1980, assinamos o protocolo das discussões sobre cooperação técnica para o projeto Produção de Biológicos, desenvolvido em Bio-Manguinhos com o apoio técnico de instituições de pesquisa japonesas. Esta parceria possibilitou a transferência de tecnologia de produção da vacina contra o sarampo (Instituto Biken) e da vacina da poliomielite (Instituto de Pesquisa de Poliomielite do Japão)”, resgata o diretor de Bio-Manguinhos, Maurício Zuma. E completa: “Estas parcerias contribuíram para ganhos efetivos de saúde pública, como o controle da epidemia de meningite nos anos 1970, a eliminação da poliomielite no Brasil e o controle do sarampo”, comemora, lembrando que a tradição de parcerias na Fiocruz vem de antes da criação de Bio-Manguinhos, uma vez que já em 1937 a Fundação firmou parceria com a Fundação Rockefeller para produção da vacina de febre amarela.
De acordo com Zuma, a parceria com a AstraZeneca se divide em duas etapas. “A primeira é uma Encomenda Tecnológica (Etec), que garante acesso ao Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para o processamento final de 100,4 milhões de doses da vacina da Covid-19, com o objetivo de viabilizar a disponibilidade de doses o mais rapidamente possível”, explica o diretor de Bio-Manguinhos. A segunda etapa é a transferência de tecnologia para a produção nacional do IFA. “Assim incorporando o conhecimento científico e tecnológico de todo o ciclo de produção da vacina, o que representa a autonomia na produção. Isso é estratégico para o país”, aponta.
A parceria traz um elemento inédito, já que envolve a transferência de tecnologia para produção de uma vacina ainda em fase de testes clínicos. É uma aposta, já que existe a possibilidade de que os testes apontem que a vacina não é eficaz. Ainda assim, como apontou o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz Marco Krieger em reportagem de julho do Portal Fiocruz, o acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca deve trazer benefícios. “Como não estamos apenas comprando os lotes de vacinas e sim internalizando a produção, caso ela não se mostre eficaz após os ensaios clínicos, ainda assim poderemos aproveitar essas novas plataformas tecnológicas adquiridas e aprimoradas para outras linhas de produção”, afirmou Krieger.
Xadrez geopolítico
Além da vacina da AstraZeneca, há outras três na última fase de testes clínicos sendo realizados no Brasil com autorização da Anvisa. A última chancela foi dada no dia 18 de agosto, para uma vacina produzida pela Johnson&Johnson; no dia 21 de julho, foram autorizados testes das empresas BioNTech e Pfizer; e no dia 3 do mesmo mês, foi a vez de uma vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac, em uma parceria com o Instituto Butantã, instituição pública ligada ao governo do estado de São Paulo. “O Brasil é um país com uma população grande, etnicamente diversa, e é um lugar onde o vírus está circulando intensamente. Para testar uma vacina, você precisa ter gente que se infecte com vírus entre os vacinados e os que não foram vacinados, para saber a diferença. Nos lugares onde há circulação intensa do vírus o tempo de observação acaba sendo encurtado”, explica Reinaldo Guimarães, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “Além disso o Brasil tem um parque de pesquisa científica e tecnológica que, em termos de países em desenvolvimento, é importante”, completa.
A parceria firmada por Bio-Manguinhos é uma das principais jogadas do país no xadrez geopolítico que é hoje a corrida por um imunizante eficaz contra a Covid-19, que envolve interesses de potências como Estados Unidos, Rússia e China e de grandes multinacionais do ramo farmacêutico. “Sempre houve desigualdade na distribuição de medicamentos e de vacinas, e evidentemente as populações dos países mais ricos têm um acesso maior”, pontua Guimarães. Para tentar contornar esse problema, explica o vice-presidente da Abrasco, a OMS criou uma iniciativa chamada Covax, coalizão que visa garantir o acesso igualitário a uma vacina quando ela for desenvolvida. “Para os países pobres e países de renda média baixa, o objetivo é que ela seja oferecida gratuitamente por meio de um fundo criado pela OMS. Para os países de renda média alta, onde o Brasil está incluído, e para países de renda alta, a OMS pensou o mecanismo dos compromissos de compra antecipada de vacinas ainda em desenvolvimento, como o que foi firmado pela Fiocruz e a AstraZeneca. Isso foi criado em função da urgência devido à pandemia”, explica Guimarães, lembrando que os Estados Unidos, que domina o mercado mundial de medicamentos e vacinas, não faz parte do Covax.
Vacina própria e outras frentes de atuação
Bio-Manguinhos tem atualmente outros dois projetos próprios de vacinas em desenvolvimento, em estágio pré-clínico. Uma delas é de uma vacina sintética, que utiliza pequenas partes do novo coronavírus para induzir a produção de anticorpos no organismo. Outro projeto utiliza uma técnica conhecida como “plataforma de subunidade”, em que são utilizados fragmentos de antígenos - moléculas capazes de deflagrar a produção de um anticorpo específico no organismo – para estimular a resposta do sistema imunológico.
Outra frente importante de atuação da unidade em meio à pandemia foi o desenvolvimento – em parceria com o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), outras duas unidades técnico-científicas da Fiocruz - de kits para diagnóstico laboratorial da Covid-19 destinados a atender a rede de laboratórios públicos de todo o país. Conhecidos como RT-PCR, esses testes servem para identificar os casos de Covid-19 em sua fase inicial. Além disso, a unidade firmou parceria com a empresa norteamericana Chembio Diagnostic Systems para produzir no país os chamados testes sorológicos para a Covid-19, capazes de identificar a presença de anticorpos contra o vírus da Covid-19, indicando que a pessoa testada foi exposta à doença em algum momento.
Segundo Maurício Zuma, a unidade entregou ao Programa Nacional de Imunizações do SUS, em 2019, 108 milhões de doses de vacinas, e a estimativa é que esse número aumente para 118 milhões em 2020. Constam do portfólio da instituição atualmente vacinas para doenças como febre amarela, poliomielite, meningite, sarampo, caxumba, rubéola e catapora. Além disso, foram entregues 1,8 milhão de frascos de biofármacos em 2019, número que em 2020 deve saltar para 5 milhões. “O fornecimento de novos biofármacos tem sido um aporte importante de Bio-Manguinhos para o SUS. Em 2019 nós iniciamos o abastecimento do etanercepte (indicado para artrite reumatoide, espondilite ancilosante, artrite psoríaca e, mais recentemente, psoríase). Agora em 2020, já introduzimos três novos medicamentos: somatropina (hormônio do crescimento), rituximabe (linfoma não Hodgkin – de grandes células B e folicular, e artrite reumatoide) e trastuzumabe (câncer de mama), sendo que estes dois últimos marcam ainda a entrada de Bio-Manguinhos no segmento de oncologia”, destaca Zuma.