Construir cisternas para captação da água da chuva no semiárido, garantir estoque de sementes produzidas pelos próprios agricultores em espaços seguros, conseguir recursos para a produção de alimentos de forma agroecológica. Esses são exemplos reais de experiências desenvolvidas em territórios e ideias debatidas por entidades da sociedade civil que foram incorporados à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) e ao Plano de execução dessa política, o Planapo. Foi para garantir que esse êxito da participação social se mantivesse e se expandisse que foi criada a Cnapo, uma comissão com representantes do governo e da sociedade civil, que leva o mesmo nome da política. “A Cnapo colabora não só com a construção do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, mas também com o processo de monitoramento das suas proposições, a partir do diálogo com a sociedade civil, inclusive para pensar outras ações que envolvam o campo da agroecologia”, explica a secretária-executiva da comissão, Patrícia Tavares.
Criada em 2012, a Comissão teve suas atividades interrompidas em 2019 pelo decreto n° 9.759, de 11 de abril, do então presidente Jair Bolsonaro, responsável por suspender as atividades de uma série de conselhos de participação social. As atividades foram retomadas com a publicação do decreto nº 11.397, em 21 de janeiro de 2023, no primeiro mês do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
Como tudo começou
Um marco na incorporação da agroecologia na agenda prioritária do governo federal no Brasil se deu em 2011, com a entrega de uma carta com demandas sobre o tema à então presidente Dilma Rousseff, durante a Marcha das Margaridas. Após esse episódio, em 2012 o governo criou um grupo de trabalho para a elaboração da Pnapo e em agosto a política foi publicada, tendo como primeira diretriz a “promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada e saudável, por meio da oferta de produtos orgânicos e de base agroecológica isentos de contaminantes que ponham em risco a saúde”. E o texto já sinalizava que deveria ser construído um plano (o Planapo) para efetivar esse objetivo.
A política prevê duas instâncias de gestão: a Cnapo e a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo). Apesar de nomes muito parecidos, a Comissão e a Câmara têm características distintas. Enquanto a Cnapo é uma instância de participação da sociedade civil, a Ciapo é um espaço exclusivo do Poder Executivo, composta por representantes de ministérios e órgãos federais, como Fiocruz e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Em outras palavras, enquanto a Ciapo é a responsável por implantar as políticas, cabe à Cnapo elaborar propostas para essas políticas e
programas, bem como revisar e monitorar os já existentes. O órgão tem também sob seu escopo de atuação a promoção de diálogos sobre os temas relacionados à agroecologia em âmbito municipal e estadual, indo além das entidades que a integram.
Atuação
O primeiro trabalho da comissão após a sua recomposição, em 2023, foi elaborar uma proposta para a terceira edição do Planapo, em que se previam incentivos para a transição agroecológica, ampliação dos programas de assistência técnica e aumento das compras públicas, propostas incluídas no plano lançado pelo governo. “Acompanhar e garantir a implementação desse plano é uma prioridade para a Cnapo”, diz Tavares. Além disso, esse colegiado também tem debatido propostas para o Pronara, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, que, embora esteja previsto na Política, ainda não foi implementado. Também é papel da comissão monitorar os programas relacionados à Pnapo, como aqueles que concedem recursos financeiros aos produtores rurais, em especial o Pronaf, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (leia mais na pág. 10).
Para ampliar esse monitoramento, a secretária-executiva da Comissão afirma que neste momento está em fase de elaboração um projeto para investigar o efeito das ações ligadas à Pnapo e os planos e programas derivados dela nos territórios. Paulo Petersen, que representa a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) na Comissão, explica que a proposta é analisar a efetividade das políticas em visitas a áreas de produção agroecológicas beneficiadas por elas, mas ainda não estão definidos quais e quantos locais serão incluídos. “Queremos investigar o efeito combinado das políticas. Um exemplo típico: o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] é uma política extremamente positiva, mas se está desvinculada de assistência técnica, de acesso a crédito, o programa fica vulnerável. É um pouco essa a expectativa”, ilustra Petersen.
Outro exemplo de atividade de monitoramento feito pela comissão está ligado especificamente ao principal programa de financiamento da agricultura familiar, o Pronaf, para que ele possa atender melhor às especificidades da produção agroecológica. Para isso, a comissão acordou com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) a apresentação de um balanço do Pronaf 2023-2024 em relação à quantidade de recursos, número de contemplados e detalhamento de seu funcionamento. “A partir dessa compreensão, a gente vai propor ações, negociações para que ele tenha mais aderência às demandas do campo da agroecologia”, diz Tavares. E ela acrescenta que esse diálogo não está sendo feito de forma isolada pela Comissão, mas em conjunto com outros conselhos de participação social relacionados com a soberania alimentar, comunidades e povos tradicionais que tenham como objetivo o desenvolvimento sustentável e a economia solidária. Fazem parte desse esforço outros quatro conselhos: o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CNPCT, que é o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, o Cnes, Conselho Nacional de Economia Solidária e o Condraf, Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável.
Estrutura
A Cnapo é um órgão consultivo vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República. Conforme prevê seu regimento de 2023, é formada por 21 entidades da sociedade civil e 21 do governo federal. Por serem órgãos financiadores das políticas, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Fundação Banco do Brasil (FBB) também estão presentes como convidados e têm direito à fala, mas não podem votar. Enquanto os representantes governamentais são indicados pelos respectivos órgãos, os representantes da sociedade civil são escolhidos a partir de seleção pública, têm mandato de quatro anos e não podem ser reconduzidos.
Esses integrantes estão divididos em nove subcomissões: são exemplos a responsável pelo Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, outra que acompanha processos de reforma agrária, e outra que acompanha e incentiva a construção de ‘bancos de sementes’, estoques que visam garantir o plantio de safras futuras e a preservação da diversidade entre uma mesma cultura. Os membros da comissão também podem se organizar em grupos de trabalho (GT) que, ao contrário das subcomissões, têm caráter temporário. O modelo de GT foi acionado, por exemplo, para a formulação da terceira edição do plano, publicada em outubro de 2024.
A organização e supervisão dos trabalhos da comissão ficam a cargo da Mesa Coordenadora, composta por seis membros da sociedade civil e seis representantes governamentais. A coordenação geral dos trabalhos é feita pela secretária-executiva da Cnapo, integrante da Secretaria-Geral da Presidência da República. Entre as responsabilidades da Mesa está a de sugerir a pauta e organizar as reuniões plenárias, que ocorrem de forma ordinária quatro vezes por ano, preferencialmente em Brasília. Cabe também a essa instância coordenadora solicitar estudos às subcomissões e grupos de trabalho para subsidiar as propostas que serão entregues ao governo e ao poder legislativo, além de submeter os documentos produzidos para a análise da Ciapo.
Como funciona a elaboração das propostas?
As reuniões ordinárias da Comissão servem para definir ações e prioridades de atuação relacionadas a propostas de políticas públicas e chamadas de financiamento para projetos. Uma vez tomada essa decisão, cabe à Mesa Coordenadora articular e demandar das subcomissões correspondentes a elaboração de propostas, bem como incentivar que as organizações integrantes da comissão promovam discussões e documentos para os temas em discussão. De posse desses documentos, cabe à Mesa fazer uma síntese e, a partir daí, o texto segue para a aprovação das instâncias com poder deliberativo. Nesse momento, os ministérios relacionados aos programas precisam produzir pareceres técnicos sobre a proposta. Em seguida, as decisões são publicadas pela Ciapo.
Mas todo esse esforço de participação nem sempre garante que as propostas da Comissão serão acatadas. Paulo Petersen recorda, por exemplo, que nem todas as ideias apresentadas por essa instância de participação para o Planapo foram incorporadas. “Assim como recebe propostas da sociedade civil, a Ciapo recebe de outros setores da sociedade”, explica Petersen, lamentando o que ele considera uma grande diferença entre a proposta da sociedade civil e o que acabou constando do plano.
Segundo ele, a principal ausência foi a definição de uma maior liberação de recursos para a execução de projetos. Outra medida que ficou de fora foi o lançamento do Pronara, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, previsto desde a primeira edição do Planapo, em 2013. A proposta foi apresentada pela primeira vez
em 2014 e desde então tem esbarrado nos vetos do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
A última previsão era de que o Pronara seria lançado em dezembro de 2024, após a promessa de que ele seria criado em outubro ser novamente descumprida. A prioridade que a sociedade civil organizada tem dado à criação desse programa não é por acaso: o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo e a liberação desses produtos tem batido sucessivos recordes. Em 2024, de acordo com dados do Mapa, foram liberados 663 produtos, o maior número desde que o monitoramento foi iniciado, em 2000, e uma alta de 20% em relação a 2023. O recorde anterior é de 2022, com 652 liberações.