Projetado por Oscar Niemeyer, o Palácio do Congresso Nacional é um ícone da arquitetura brasileira. Seu design é facilmente reconhecível: no centro do complexo, um edifício semelhante a duas peças de dominó dispostas de pé uma do lado da outra; à esquerda deste, um prédio em forma de cuia, com a boca virada para baixo, espelhando o formato do edifício à direita, que tem a boca virada para cima.
Não é por acaso: Niemeyer quis retratar os papéis distintos das casas legislativas que compõem o Congresso: voltado para cima, o prédio que abriga o Plenário da Câmara simboliza a “abertura” e o caráter popular da Casa onde deliberam os deputados federais; já o prédio que abriga o Plenário do Senado, voltado para baixo, indica que ali é um lugar de amadurecimento e deliberação mais aprofundada dos projetos legislativos. Não à toa, a legislação brasileira diz que para se candidatar a deputado, é preciso ter no mínimo 21 anos, enquanto que para concorrer a senador a idade mínima é de 35 anos.
Instituição quase bicentenária
Chamado de bicameral, esse modelo precede por muito a construção de Brasília, e é anterior até mesmo à República no Brasil. Entre o grito de “Independência ou Morte” de Dom Pedro I às margens do Ipiranga em 1822 e o grito de “Viva a República” do Marechal Deodoro da Fonseca em 1889, o Brasil foi um império, cuja Constituição, promulgada em 1824, já dividia o Legislativo em dois: a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Senadores. Os deputados eram eleitos pelo voto, que na época era direito apenas dos homens acima de 25 anos que comprovassem uma renda mínima anual. Além disso, era indireto: os eleitores das paróquias (com renda mínima anual de 100 mil réis) escolhiam os eleitores das províncias (com renda mínima anual de 200 mil réis), que por sua vez escolhiam os deputados. Os senadores eleitos pelas províncias integravam uma lista tríplice encaminhada ao imperador, que escolhia um nome. O mandato de senador era vitalício.
Era uma descentralização de poderes pero no mucho. “No Império havia o chamado Poder Moderador, uma reminiscência do absolutismo no país. Era uma ferramenta para o imperador concentrar poder”, explica Arlindo Fernandes, consultor legislativo do Senado.
Dias atuais
Atualmente, a Constituição de 1988 determina que as vagas no Congresso sejam preenchidas pelo voto universal e direto. Na Câmara, cada estado tem direito a um número de cadeiras proporcional a sua população, definido a partir de uma lei complementar de 1993. A Constituição estabeleceu que nenhum estado pode ter menos de oito ou mais de 70 representantes. Assim, enquanto São Paulo e Minas Gerais são representados, respectivamente, por 70 e 53 deputados, vários estados têm apenas oito, caso de Acre, Sergipe e Mato Grosso, entre outros. No total, são 513 deputados representando os 26 estados mais o Distrito Federal.
Do ponto de vista do trabalho legislativo propriamente dito, tanto a Câmara quanto o Senado têm autonomia para apresentar projetos de lei sobre qualquer temática
Já no Senado, o peso é o mesmo: são 81 senadores no total, três para cada estado. Cada senador tem um mandato de oito anos, o dobro do dos deputados. Arlindo Fernandes afirma que o Senado garante que haja um maior equilíbrio nas disputas federativas, impedindo que os estados mais populosos se aliem para aprovar projetos de lei à revelia dos menores. “Essa é a principal razão de ser do bicameralismo”, diz o consultor legislativo. Na teoria, o modelo bicameral garante mais tempo de debates e de consulta pública à população durante a tramitação dos projetos. “É uma oportunidade de amadurecimento do processo legislativo”, afirma.
O modelo, no entanto, não é consenso. Há quem defenda a necessidade da extinção do Senado no país, como é o caso do jurista Dalmo Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz em 2010, ele contou que o sistema bicameral se originou nos Estados Unidos e, apesar de expressar a influência de filósofos como Rousseau e Montesquieu, serviu, na prática, para postergar a abolição da escravatura. “No tocante ao legislativo, se verificou que o sistema seria mais democrático se os estados com mais eleitores tivessem o maior número de representantes [...]. Entretanto, logo em seguida, os representantes dos estados do sul perceberam que, como o sul era escravocrata, a maioria da população era escrava e as mulheres não votavam, o número de representantes dos estados do sul seria muito menor e a consequência disso seria a abolição da escravatura por uma lei aprovada pela Câmara dos Deputados”, explicou Dallari, que considera esse sistema como uma “herança negativa”: “A existência das duas casas impede decisões, deforma os projetos. O argumento do debate tem sido uma possibilidade para promover delongas, para impedir decisões. Seria mais democrático uma única Casa aberta ao debate”.
A nossa Constituição diz ainda que deputados e senadores desfrutam do chamado foro privilegiado, que significa que somente o Supremo Tribunal Federal (STF) tem poder de julgar eventuais crimes cometidos por parlamentares durante seus mandatos. “Ele é importante para proteger o mandato do parlamentar de ações arbitrárias, seja do Executivo, seja dos militares ou do Judiciário”, ressalta Fabiano Santos, cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E faz uma ressalva: “Isso é regulado pelo Supremo. O que se pede é que a interpretação que vale para determinados parlamentares valha também para outros”.
Do ponto de vista do trabalho legislativo propriamente dito, tanto a Câmara quanto o Senado têm autonomia para apresentar projetos de lei sobre qualquer temática. No Brasil, a Casa que via de regra dá início ao processo de tramitação é a Câmara. “O grande proponente dos projetos de lei no país é o Executivo. Sua tramitação invariavelmente começa pela Câmara e, se aprovado, vai para o Senado. Caso os senadores alterem o texto, ele volta para a Câmara”, explica Fernandes.
Um projeto de lei precisa ainda da sanção do presidente, que pode fazer vetos. Estes, por sua vez, são analisados novamente pelo Congresso, em sessão conjunta reunindo deputados e senadores. Para derrubar um veto, é preciso que a maioria absoluta de deputados e senadores vote pela sua rejeição.
Já no caso das Propostas de Emenda à Constituição, as PECs, não é necessária sanção presidencial. Mas para aprová-las é preciso o voto de mais de dois terços dos parlamentares, na Câmara e no Senado. Ambos têm orçamentos próprios, que cada Casa gerencia de maneira independente. Em 2018, o orçamento do Congresso ultrapassou R$ 10 bilhões: R$ 6,1 bi para a Câmara e R$ 3,7 bi para o Senado. Deputados e senadores têm ainda o direito de apresentar, durante a votação da proposta de lei orçamentária anual – apresentada ao Congresso pelo Executivo –, as emendas parlamentares, alterações no orçamento feitas diretamente pelos congressistas. Com isso, podem acrescentar recursos para uma rubrica específica, remanejar ou suprimir despesas. “Com elas os parlamentares influenciam o processo orçamentário, contemplando determinados segmentos e localidades”, aponta Santos.
Na prática, no entanto, o instrumento é polêmico. Até 2015, o governo federal definia se e quando os recursos para as emendas seriam liberados, o que frequentemente era feito nos momentos em que o Executivo precisava de apoio do Legislativo para aprovar algum projeto. Aprovada em março de 2015, a Emenda Constitucional 86, conhecida como PEC do orçamento impositivo, alterou isso, dando mais poder ao Legislativo: ela estabeleceu um valor mínimo de emendas parlamentares que devem obrigatoriamente ser executadas no ano seguinte. No entanto, o governo federal manteve o poder de ditar o ritmo da liberação das emendas. Em 2017, por exemplo, o governo de Michel Temer bateu recorde na liberação desses recursos:
R$ 10,7 bilhões, quase 50% a mais do que no ano anterior.
Atribuições exclusivas
A Constituição de 1988 lista atribuições exclusivas do Congresso Nacional e de cada uma das casas que o compõem. Compete a ambas, por exemplo, julgar as contas prestadas anualmente pela Presidência da República e também autorizar referendos e convocar plebiscitos.
O Senado tem como atribuições exclusivas sabatinar e aprovar (ou não) a indicação de nomeações ao STF, ao cargo de procurador-geral da República e para presidente e diretores do Banco Central, entre outras, feitas pelo Executivo. Já a Câmara tem a prerrogativa, por exemplo, de tomar providências legais caso as contas do Presidente da República não sejam apresentadas ao Congresso Nacional dentro de 60 dias após a abertura da sessão legislativa.
O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, serve como exemplo para ilustrar as atribuições de cada Casa: à Câmara, coube a abertura do processo, que, depois de aceito pelo então presidente da Casa, Eduardo Cunha, foi aprovado por mais de dois terços dos parlamentares; ao Senado, coube julgar a ação, já com a presidente afastada de suas funções. Por 61 votos contra 20, os senadores decidiram pela cassação do mandato da ex-presidente.
Foi a segunda vez que o Congresso destituiu um presidente desde a redemocratização. O que, para Fabiano Santos, sinaliza a força que o Legislativo tem no nosso sistema político. “A Constituição transferiu poder substantivo ao Congresso, tanto para atuar no processo decisório, quanto para intervir no processo político, e ele tem feito isso”, pontua.
Renovação a partir de 2019
Embora o presidencialismo conceda relativa margem de manobra para o Executivo, é na relação deste com o Congresso que reside a capacidade de um governo de implementar seu programa. Não será diferente para o governo que se inicia em 2019, que terá pela frente um parlamento bastante diferente: no Senado, das 54 vagas em disputa nas eleições de 2018, apenas oito foram para senadores reeleitos, a maior renovação desde a redemocratização; já na Câmara, 251 dos 513 deputados que tomaram posse no dia 1º de fevereiro foram reeleitos, menor número desde as eleições de 1998. O PSL, partido de Jair Bolsonaro, foi o que mais elegeu novos nomes para o Congresso, estendendo sua bancada para 52 deputados. Por outro lado, partidos da oposição também ampliaram suas bancadas: o PT, por exemplo, foi o que mais reelegeu deputados, chegando a 56 parlamentares, a maior bancada da Câmara (pelo menos até o fechamento desta revista, já que, entre março e abril, ocorre a chamada janela partidária, quando os parlamentares podem mudar de partido sem perder o mandato). “O Congresso teve uma renovação, mas uma parte importante permanece. E a parte que foi renovada, a meu ver, é desprovida da expertise necessária para gerir os conflitos inerentes a um processo decisório complexo. Isso fará com que os parlamentares mais experientes tenham um peso considerável”, opina Fabiano Santos. Aliado a um crescimento de bancadas que devem fazer oposição ao governo, o cenário é tumultuado, especialmente na Câmara. “Contando os partidos de esquerda mais parte do centro que não adere ao governo, a oposição pode ter um número bem significativo, e o esforço do Executivo para conseguir aprovar coisas vai ser custoso”, avalia.
Ainda em 2018, durante sua campanha, Bolsonaro sinalizou que não negociaria com as bancadas dos partidos, e sim diretamente com as bancadas temáticas – que articulam parlamentares para defender interesses específicos dentro do Congresso. As mais conhecidas são a bancada ruralista, da segurança pública e evangélica, popularmente conhecidas como BBB, ou “boi, bala e Bíblia”. Santos explica que elas são importantes hoje no Congresso, mas seu poder é limitado. “Elas não são reconhecidas regimentalmente como capacitadas a tomar decisões vitais no processo decisório, encaminhar voto, fazer discursos... Isso conta muito na decisão que vai ser tomada no Plenário”, argumenta.