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Conselho Tutelar

Verbete explica o funcionamento, a história e os dilemas do Conselho Tutelar, espaço que compõe a rede de proteção à infância e adolescência ligada à administração municipal. Este ano, eleições para o órgão geraram polêmica em todo o país
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/11/2019 14h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

X. já tinha 12 anos quando conseguiu ter uma certidão de nascimento. Tudo começou aos seis, quando a mãe tentou matriculá-lo na escola. Para justificar a recusa do aluno, a instituição acionou a estrutura municipal mais próxima responsável por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes: o Conselho Tutelar. A partir dessa notificação, muita coisa poderia ter acontecido, inclusive a punição da mãe por não ter registrado o menino. Mas, diferente de outras histórias que os conselhos protagonizam Brasil afora, esta teve um final feliz.

Aconteceu na zona norte do Rio de Janeiro. Em resposta à escola, o Conselho Tutelar se responsabilizou por conseguir a certidão e, com isso, garantiu que o menino frequentasse as aulas. Mas o caso era complexo. A mãe de X. também não tinha documentos e, sem isso, não era possível registrar o filho. Como ela era de uma área rural do Espírito Santo, foi preciso fazer uma busca nos cartórios da região para emitir o nada consta. O passo seguinte foi obter uma declaração de próprio punho de todos os irmãos confirmando que ela tinha nascido em casa. Uma dificuldade adicional foi encontrar esses irmãos, que migravam para trabalhar em colheitas distantes. Quando finalmente a certidão da mãe foi emitida, era necessária ainda uma nova busca nos cartórios do Rio, para provar que, de fato, X. nunca tinha sido registrado. Ao todo, o processo levou quase seis anos. E, ao longo desse tempo, o Conselho Tutelar acompanhou a família, fazendo visitas e pedindo relatórios à escola. “A mãe tinha problemas psiquiátricos, fazia acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial, mas a única coisa em que ela conseguia focar era o filho, que era muito bem cuidado”, conta Ana Carolina Noronha, conselheira à época e reeleita este ano. Para se ter uma ideia, durante o tempo em que acompanhou esse caso, o Conselho precisou chamar a empresa pública de limpeza urbana quatro vezes para retirar lixo acumulado dentro da casa onde eles moravam. “Foi a ação do Conselho Tutelar que conseguiu manter a criança na escola e, de alguma forma, também na família porque os surtos psicóticos da mãe e o acúmulo de lixo poderiam ter gerado uma denúncia que levasse a retirar a guarda do menino”, resume Ana Carolina.

Desfecho distinto teve o drama de uma mãe e duas irmãs, descrito na dissertação de mestrado da psicóloga Paloma Jashar, que analisa sua experiência como estagiária de um Conselho Tutelar em Niterói, estado do Rio. Um hospital local notificou o Conselho sobre a internação de uma bebê de um ano com queimaduras nas nádegas, o que levantava a suspeita de maus tratos. “Mas os depoimentos da família extensa, da escola e dos vizinhos afirmavam que ela era uma mãe zelosa”, diz o texto, informando que a neném tinha uma irmã adolescente, que “não escondia seus ciúmes” da caçula. Por solicitação do Conselho Tutelar, o Judiciário determinou que a bebê fosse retirada da mãe e levada para um abrigo até que se ‘desvendasse’ o caso. A criança adoeceu no abrigo e a mãe, desesperada, procurava o Conselho por dias seguidos, tentando reverter a situação. Até que a irmã confessou. Com a verdade ‘descoberta’, para permanecer junta, a família teve que mudar de casa porque o tráfico de drogas da região proibiu que a adolescente voltasse a morar ali.

Um novo olhar sobre a criança e o jovem

Mas que instituição é essa que trata de temas tão diferentes e pode assumir posturas tão distintas diante de problemas os mais variados? Legalmente, a resposta está no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), segundo o qual trata-se de “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”.

Mais do que na letra da lei, os conselhos tutelares e o ECA são fruto da mesma conjuntura e de uma mesma urgência: a mudança radical da política de infância e adolescência brasileira que, até aquele momento, se baseava na judicialização e na criminalização da população mais pobre. Era a época de atuação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), acompanhada por estruturas semelhantes nos estados. “O trabalho mais forte, nessa linha de política nacional, era a internação, seja porque o ‘menor’ não tinha família, seja porque tinha família, mas não tinha recursos”, explica Estela Scheinvar, psicóloga e professora da Universidade Federal Fluminense. Naquele momento, logo após a redemocratização, também os pesquisadores e militantes do campo da infância e adolescência se inspiravam na concepção de que era preciso incentivar a participação da sociedade civil nas políticas públicas. Surgem, daí, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e seus equivalentes nas esferas estadual e municipal, com papel deliberativo, e o Conselho Tutelar, como uma instância mais executiva ligada à administração pública municipal.

Desde então, a lei estabelece que todos os municípios do país devem ter, pelo menos, um conselho tutelar, mas o número varia muito. São compostos por cinco conselheiros, eleitos pela comunidade da região em que vão atuar. As candidaturas são individuais – embora a expectativa, nem sempre atingida, é de que, uma vez eleitos, eles atuem de forma colegiada – e não é preciso representar nenhuma entidade ou movimento social. Para tentar uma vaga de conselheiro, é necessário ter mais de 21 anos, morar na localidade, não ter antecedentes criminais e comprovar que trabalha ou atua na área de infância e adolescência. Embora a existência dessa estrutura em todo o país seja determinada por lei federal, os conselhos são criados por lei municipal, que define também questões como carga horária e salário dos conselheiros.

A proposta é que os conselhos atuem quando provocados, seja pela escola, vizinhos, parentes, responsáveis ou pela própria criança ou adolescente, entre outras possibilidades. No ‘guarda-chuva’ da sua missão cabem situações as mais variadas, como abandono, maus tratos, violência doméstica, comportamento atípico na escola ou no local onde mora e exploração sexual, entre outras, com perfis diferentes em cada região. A pesquisadora Laura Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que acompanha as redes e microrredes de proteção à infância e adolescência de uma área de Porto Alegre, cita, por exemplo, que, além do trabalho infanto-juvenil, um problema recorrente na região, por lá têm crescido os casos de automutilação e até suicídio nessa faixa etária, um grande desafio também para os conselhos tutelares. Recentemente, o país se deparou com uma novidade: foram noticiadas em diferentes cidades do país situações em que o conselho tutelar atuou junto ao Ministério Público para obrigar a vacinação de crianças por responsáveis que, por convicções pessoais, recusam a imunização.

E funciona?

Estela explica que o papel do conselho tutelar é “buscar os meios para ressarcir a violação de direitos”. Mas isso não significa que seja ele a oferecer o serviço que garante o direito. “O Conselho Tutelar tem autonomia e atribuições de encaminhar ao conselho municipal, às Secretarias e ao poder Executivo em geral as questões [que envolvem] política [pública], de acionar o Ministério Público e de encaminhar [a família ou a criança ou adolescente] aos estabelecimentos. Mas não cabe a ele executar. Quem tem que construir uma vaga no setor saúde é o setor de saúde, não o Conselho”, exemplifica a pesquisadora.

Essa é a teoria. Na prática, os conselhos convivem com carência de estrutura e, sobretudo, falta de resposta do poder público. “O movimento dos conselheiros se caracteriza por ações extremamente individualizadas, sem respaldo do poder público na maior parte das ocasiões”, diz Estela. Ela explica que os conselhos recebem e encaminham demandas que muitas vezes não são atendidas. “Ao mesmo tempo, o conselheiro tem na sua frente vidas em sofrimento, situações absolutamente inaceitáveis, de enorme tensão e dificuldade”, diz. Isso significa que, embora sejam definidos como “autônomos”, eles não contam com mecanismos para obrigar o Estado a corrigir as violações que chegam até eles. A saída, muitas vezes, segundo a pesquisadora, acaba sendo a busca de “alianças” por fora do poder público, seja com instituições filantrópicas e religiosas ou vizinhos, seja com a própria família envolvida no problema, através de ‘ameaças’ de judicialização dos casos. “A única saída que teríamos é a mobilização coletiva”, opina, defendendo que esse deveria ser um “horizonte de ação de quem está ali para garantir o ressarcimento de direitos”.

O resultado desse desenho institucional associado a pouca resposta do poder público gera o que Laura Fonseca identifica como uma “leitura de mundo muito restrita à individualidade”. “Como se fosse possível resolver violações de direitos em uma perspectiva do sujeito e não do coletivo”, lamenta. Na atribuição dos conselhos tutelares, os direitos a serem garantidos estão diretamente atrelados ao que é defendido no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas Estela Sheinvar ressalta que, na prática, a postura e as decisões são muito influenciadas pelos valores e crenças individuais dos conselheiros. “Quando chega, por exemplo, uma mãe que tem três filhos de dois ou três companheiros e já não mora com eles, se quem está atendendo tem um olhar preconceituoso em relação à sexualidade, vai olhar para ela com preconceito e isso pode definir uma guarda ou a retirada dos filhos de uma mãe”, exemplifica. Dificuldades semelhantes, conta Laura, são enfrentadas em situações que envolvem famílias homoafetivas ou questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, comumente compreendidas como problema a ser solucionado pela religiosidade.

E nesses casos, além dos valores individuais, está presente também o que Laura chama de “coletivo escondido”, ou seja, conselheiros que na prática representam interesses de grupos particulares, como igrejas, partidos políticos e até o crime organizado – nas eleições deste ano, o Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, investigou denúncias de que grupos religiosos e milicianos estavam por trás de alguns candidatos. Estela explica que, historicamente, era comum que a composição dos conselhos tutelares tivesse “a cara dos movimentos locais”, que envolviam, por exemplo, associações de moradores e entidades religiosas, já que o tema da infância e adolescência sempre esteve muito vinculado a “movimentos caritativos e filantrópicos”. Mas ela reconhece uma diferença importante em relação ao que aconteceu este ano quando, em alguns locais, foi montada uma verdadeira campanha, com apoio de parlamentares e correntes em redes sociais, para defender o voto em “evangélicos”. “Antes eram eleições efetivamente locais. Já o que hoje nós vivemos no Brasil é um aquartelamento da política, não para ganhar um espaço, mas para ‘satanizar’ qualquer outra leitura de mundo”, analisa Estela. Como ‘plataforma’ de campanha, um destaque dessa propaganda de mobilização era a promessa de acabar com a “ideologia de gênero” nas escolas. “O Conselho Tutelar não tem nenhuma ingerência sobre isso, essa é uma discussão interna aos colegiados das escolas”, alerta Estela, explicando que, por estar muito próxima da população que demanda ajuda, essa instância se tornou também um “espaço político”.