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Controle Social

À primeira vista, o significado desse verbete pode parecer óbvio: a palavra controle remete, sem demoras, à ideia de coerção, que, por sua vez, está intimamente ligada a categorias como violência e poder. No entanto, há uma outra possibilidade de interpretação. Ela foi pensada pelo campo da saúde pública no Brasil, que inverteu a ordem dos fatores e criou um tipo de controle que é exercido pela sociedade e não sobre ela.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 25/02/2016 10h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O sociólogo Eduardo Stotz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), explica que, nessa acepção, controle significa participação e vigilância exercidas pelos setores populares organizados, que, mais do que meros espectadores das políticas públicas, nelas devem desempenhar um papel ativo. No entanto, na própria área da saúde o termo surgiu como sinônimo de coerção. “O primeiro a usá-lo foi Paul Singer, no livro ‘Prevenir e curar: o controle social através dos serviços de saúde’, onde falava sobre o controle sanitário das populações pelo Estado”, lembra Stotz. Mas
isso foi antes da Reforma Sanitária.

O controle social no SUS

Foi no bojo do movimento que criou o Sistema Único de Saúde e lutou contra a ditadura militar que o controle social foi gestado como um dos eixos organizadores de um projeto de sociedade que pretendia a saúde como direito de todos e dever do Estado. Surgido em meados da década de 70, esse movimento tinha como um de seus principais focos combater o ideário privatista que vigorava na saúde brasileira. A articulação política em torno desse novo projeto atingiu sua maturidade durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Lá foram lançadas as bases para o que Maria Valéria Correia, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), chama de “um sistema nacional de saúde universal, público, participativo, descentralizado e de qualidade”, no verbete Controle Social’, do Dicionário de Educação Profissional em Saúde. Mas só com a Lei 8.142, de 1990, o controle social foi formalmente inserido no Sistema. A partir daí, foram instituídos dois espaços – os Conselhos e Conferências de Saúde –, em que a participação
popular poderia se dar de maneira mais orgânica. A ideia era que, através de representantes, a população pudesse interferir nas políticas de saúde. Aos Conselhos cabe formular e acompanhar as políticas. Têm caráter permanente e suas decisões estão submetidas ao poder Executivo. Já as Conferências são realizadas a cada quatro anos, com o intuito de avaliar e propor novas diretrizes para a política. Ambos existem nas três esferas governamentais (municipal, estadual e federal) e contam com a representação paritária dos usuários em relação ao conjunto dos demais segmentos representados: trabalhadores da saúde, gestores e prestadores de serviços. Mas, na prática, será que esses Conselhos e Conferências representam mesmo os ideais do controle social instituído pelo SUS?

Para Eliana Labra, pesquisadora da Ensp, a resposta é negativa. No artigo ‘Política de Participação na Saúde. Entre a utopia democrática do controle social e a práxis predatória do clientelismo empresarial’ ela afirma: “Não há prestação de contas nem transparência e a desconfiança está institucionalizada, o que pode tornar o controle social uma ficção”, completando: “O avanço da democracia no país ainda apresenta traços pouco favoráveis à configuração de uma ‘comunidade cívica’, caracterizada por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias e por uma estrutura social assentada na confiança e na colaboração”.

No entanto, é preciso lembrar que o Sistema Único nasceu na década em que o mundo conheceu uma transformação no modelo de acumulação capitalista. Eduardo Stotz explica o que representou a virada neoliberal: “No lugar da busca pelo pleno emprego e do investimento na produção – necessários à reprodução do capital e à construção do consenso à época do Estado de bem-estar social –, entrou em cena a volatilidade da especulação financeira”. E, ainda segundo o sociólogo, o novo modelo teria exercido uma influência direta nas formas de participação: “A luta ideológica fez parte das tentativas de destruir as
conquistas dos trabalhadores ou de limitá-las. Os neoliberais empreenderam o trabalho de eliminar a história para afirmar a democracia representativa como um valor universal”, diz, criticando a ideia de que a participação deva ser exercida apenas através do voto.

Outra consequência do discurso neoliberal que tem relação com as mudanças na efetivação do controle social é um certo ‘isolamento’ do Estado. Isso porque, junto com a crença de que o mercado deve se autorregular, vem a defesa de que a sociedade civil precisa agir de forma independente do Estado. Para a historiadora Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse é um dos perigos que rondam o entendimento do controle social segundo o que prega a saúde: “O que as classes dominantes chamam de desburocratização do Estado na verdade não ocorre. O que existe é a privatização do setor público: as empresas definem e se beneficiam das políticas públicas, enquanto aos usuários resta o ônus”, diz. Por isso, Virgínia alerta para o risco da ilusão de participação que o cenário atual promove. “É importante lembrar que se trata de um terreno de lutas – sociais e de classes –, porque o Estado capitalista tem como função reproduzir o conjunto das relações sociais e, ao fazer isso, reproduz a posição predominante de uma dada fração da sociedade e a subalternização do resto”, explica.

Mas o problema maior pode estar em se perceber a participação através das lentes do consenso. Virgínia explica que aqueles que acreditam que a sociedade civil seja harmoniosa e, no debate, possa chegar a decisões que beneficiem a todos, abdicam da tentativa de transformar as condições de produção das desigualdades. “Há um rebaixamento da luta popular para o âmbito das questões imediatas. Qual é a grande dificuldade dessa perspectiva consensual? É que ela esquece que a formação do consenso depende de relações de força. O fato de a fala ser livre não expressa ou não pode ocultar o fato de que as condições gerais da vida social estão definidas pela forma capitalista. Em suma, e para ficar no registro mais emblemático: combate-se a indigência, mas conserva-se, intocado,
o modelo de sociedade que a produz”, entende.

Embora todos esses problemas tenham resvalado na saúde, Stotz aponta casos em que a participação de movimentos sociais propiciou alguma melhora, mesmo que pontual, na ampliação de programas, a exemplo da atenção integral à saúde da mulher, da atenção aos atingidos pela hanseníase e do controle do HIV/AIDS, no âmbito dos sistemas municipais de saúde. Mas, segundo ele, esse foi um processo com ganhos e perdas. “Quando políticas específicas vinculam beneficiários favorecese a organização destes. Os conselhos de saúde foram um lócus desta organização no Brasil”, pondera, acrescentando: “O problema é que os chamados ‘interesses gerais’ ficaram de fora, a exemplo da reivindicação por saneamento básico para melhorar a saúde da população”.

Apesar dos avanços, Stotz concorda que haja prejuízos na materialização do ideário dos sanitaristas: “Em um contexto político dominado pelo neoliberalismo, falar em controle social significou principalmente legitimar a gestão dos sistemas municipais de saúde. Onde a participação popular era fraca, onde não havia tradição de luta e de organização, a legitimação assumiu a forma de aprovação dos atos dos secretários de saúde, via de regra para liberação de recursos financeiros”, analisa.

Horizontes para o controle social

Embora haja muitos problemas, tanto Virgínia quanto Eduardo creem que o controle social possa ser reabilitado. Segundo a historiadora, não há possibilidade de haver uma política igualitária a não ser pela participação ativa dos setores populares contra as formas de subalternização. Stotz, por sua vez, atenta para os males de uma defesa incondicional do SUS e de seus princípios, incapaz de entender as diversas contradições em jogo. “As conquistas não podem impedir que se façam críticas. A ignorância da polissemia é a marca do pensamento ingênuo. Talvez uma armadilha decorrente desta ignorância seja uma defesa acrítica do controle social, por ser entendido como um princípio do SUS, defesa vigente sob a forma de um ‘susismo’ incapaz de analisar o sistema de saúde em uma sociedade de classes com tradição autoritária tão arraigada como a do Brasil”, diz.

No entanto, segundo ele, nem tudo está perdido. “Trata-se de um processo cuja retomada é possível. Os limites estão relacionados aos sentidos conferidos ao conceito na história da luta pelo direito à saúde. Dar mais ênfase à gestão do que à formulação da política significa estar preso à correlação de forças vigente no SUS nos diferentes níveis de autoridade política. Passar à luta pela formulação implica dar maior importância para a preparação e organização das conferências de saúde, o que abre caminho para se tentar modificar essa correlação de forças com a entrada de novos atores e uma participação realmente popular ”, propõe.

*Texto publicado na Revista poli - saúde, educação e trabalho nº 3 , de janeiro/fevereiro de 2009