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Democracia

De quatro em quatro anos você participa de um ritual: sai de casa para escolher, pelo voto, aqueles que vão representar as suas ideias no Executivo ou no Legislativo, tomando decisões políticas no seu lugar. É a ‘festa da democracia’. Mas há quem ache que, na origem, essa festa era mais animada e recebia muito mais convidados do que hoje
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/02/2016 10h57 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

De quatro em quatro anos você participa de um ritual: sai de casa para escolher, pelo voto, aqueles que vão representar as suas ideias no Executivo ou no Legislativo, tomando decisões políticas no seu lugar. É a ‘festa da democracia’. Mas há quem ache que, na origem, essa festa era mais animada e recebia muito mais convidados do que hoje. Nascida na Grécia, por volta do século 5 antes de Cristo, a ideia de democracia se concretizava na presença de uma multidão de pessoas em praça pública, reunidas em assembleia, tomando diretamente as decisões de interesse coletivo. Calcula-se que, em Atenas, as assembleias gerais (chamadas de Ekllésia) reuniam em média entre 4 mil e 6 mil pessoas. “Democracia quer dizer poder do povo: o povo manda, os muitos mandam. Isso na Grécia era claríssimo”, explica João Quartim de Moraes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ressaltando, no entanto, que esse sentido foi modificado na modernidade. “Houve uma espécie de operação em que foi cortada a ideia de poder do povo”.

Democracia moderna

Um dos principais resultados dessa transformação foi a ‘subdivisão’ da democracia em participativa, ou direta, e representativa, que é uma invenção da modernidade. Essa separação foi justificada como uma conquista do homem moderno, que, ao abrir mão da administração direta dos negócios públicos, delegando essa função a representantes, ganha mais tempo e oportunidade para se dedicar aos interesses privados. Segundo Quartim de Moraes, quem primeiro argumentou em favor dessa concepção liberal de democracia foi Benjamin Constant, que ele define como “um grande oportunista”. Num famoso discurso proferido em 1819, em que compara a liberdade dos antigos com a dos modernos, o pensador francês afirma, sem meias palavras: “O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade às garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”. Quartim de Moraes resume: “Enfatizam-se na democracia moderna o individualismo, as liberdades pessoais, tudo aquilo que vemos associado às ideias dominantes correntes”.

O historiador André Dantas, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), explica o contexto dessa transformação. Segundo ele, o conceito de democracia foi retomado pela burguesia moderna e desenvolvido ao longo de todo o século 19 até chegar ao formato que se universalizou no século 20. Num momento em que se defendia a igualdade como princípio, especialmente na Revolução Francesa, a ideia de que todos poderiam governar servia para combater a aristocracia – que, ao contrário, significa “governo dos melhores”. Mas, uma vez atingido esse objetivo, essa mesma burguesia, já não mais revolucionária, percebeu que ‘todos’ era gente demais. Como se poderia, então, conter o acesso das massas populares, principalmente o operariado, ao poder? “Quem retomou idealmente os valores democráticos foi a burguesia, mas os trabalhadores tensionaram os limites dessa democracia e promoveram uma guinada – com conquistas como o sufrágio universal e o direito de associação –, contra a qual a burguesia precisou reagir”, explica. Quartim de Moraes exemplifica: “Uma das falsas antinomias do pensamento liberal é dizer que a soberania popular só pode ser expressa na hora do voto. E tenta-se votar o mínimo possível”.

Segundo André Dantas, esse impasse resultou não apenas na defesa de uma concepção de democracia que delega as decisões a um grupo de representantes, mas também em estratégias que retiram as questões econômicas da esfera de decisão política. “Em Atenas os cidadãos reunidos decidiam também sobre a base material da riqueza. Isso a democracia moderna delegou a um conjunto muito restrito de representantes, e com poder infinitamente mais limitado”, diz. Um exemplo? Temas como a criação e extinção de impostos – que hoje aparecem como fundamentais para uma maior justiça social, nos discursos que defendem uma reforma tributária – e a definição de guerras, incluindo os seus custos, eram deliberados nas assembleias gerais de Atenas. No verbete ‘democracia’ do Dicionário de Educação do Campo, editado pela EPSJV/Fiocruz e pela Expressão Popular, Virginia Fontes resume: “A igualdade formal perante a lei legitima e protege a desigualdade real”.

André Dantas explica que esse dilema permanece ainda hoje, mas sempre com novidades: se no momento de retomada da ideia de democracia o caminho foi “arrefecer a sua radicalidade”, a estratégia mais atual é, de acordo com o historiador, uma certa “vulgarização da democracia”. “Essa é a resposta contemporânea para o desafio que está posto desde sempre. A democracia traz a potência da igualdade, mas as classes dominantes deslocaram a questão da igualdade do campo das relações econômicas, primeiro para a igualdade política e agora para o âmbito de uma reduzida compreensão de ‘cultura’, que se manifesta num elogio frouxo da diferença e da diversidade”, analisa.

Representação e participação

Como vimos, a democracia era entendida, na Grécia, como uma forma de alargamento da cidadania. Mas essa expansão tinha limites muito claros: cidadãos, nesse mundo Antigo, eram apenas pessoas do sexo masculino, adultos, não-estrangeiros e livres. Cerca de metade da população era escrava e estava excluída desse direito. Como, então, se pode dizer que a festa da democracia antiga era mais ampla? É aí que entra de forma mais clara a discussão entre participar e ser representado. André Dantas propõe uma conta: “Estima-se que Atenas tinha, nessa época, entre 40 mil e 60 mil habitantes. As referências sobre o número de pessoas presentes nas assembleias gerais também varia, em geral, entre 4 mil e 6 mil. Mesmo considerando a maior população e o menor número de participantes nas assembleias, concluímos que cerca de 6,6% da população decidia diretamente sobre a vida pública. Se aplicássemos esse percentual ao número de eleitores brasileiros, que são algo em torno de 140 milhões, deveríamos ter mais de 8 milhões de pessoas deliberando diretamente sobre os rumos do país”. Em relação às questões nacionais, hoje, no Brasil, essa decisão está restrita a 513 deputados e 81 senadores que, no entanto, são eleitos por um número muito maior de cidadãos.

Ele explica que esse cálculo é apenas ilustrativo porque não é possível apenas transportar um modelo da Antiguidade para os dias de hoje, sem questionamentos e mediações. De fato, no livro ‘A cidade Antiga’, o historiador francês do século 19, Fustel de Coulanges, mostra o quanto a democracia grega era trabalhosa ao narrar o cotidiano de um cidadão ateniense: “Um dia o ateniense é chamado à assembleia do seu demo onde deve deliberar sobre os interesses religiosos ou financeiros dessa pequena associação. Outro dia esse mesmo ateniense é convocado para a assembleia da sua tribo; trata-se de regulamentar uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de promulgar decretos, ou ainda de nomear chefes e juízes. Três vezes por mês, regularmente, deve assistir à assembleia geral do povo, e não tem o direito de faltar. Ora, a sessão é longa, e ele não vai à assembleia somente para votar. Chegando pela manhã, exige-se que o ateniense ali permaneça até hora avançada do dia para ouvir os oradores. Não pode votar se não esteve presente desde o início da assembleia, tendo ouvido todos os discursos. Para o ateniense o voto é assunto dos mais sérios; ora se trata de nomear os seus chefes políticos e militares, isto é, aqueles a quem o seu interesse e a sua vida vão ser confiados por um ano; ora será um imposto que deve ser criado ou uma lei que deve ser modificada; ou é sobre a guerra que deve votar, sabendo como terá de dar o seu próprio sangue, ou de algum filho seu. Os interesses individuais estão inseparavelmente ligados aos interesses do Estado. O homem não pode mostrar-se nem indiferente, nem leviano. Se se engana, sabe que logo sofrerá as consequências, e que em cada voto pode comprometer sua fortuna e sua vida”. Cansou?

Quartim de Moraes ajuda a recuperar o ânimo da discussão. Para ele, o eixo da crítica precisa ser mais a defesa da soberania popular do que propriamente a oposição entre participação e representação. “Nem tudo pode ser direto. Também na Grécia antiga havia transferência de autoridade, delegação de poder, por exemplo, para o comando de um exército. Toda a questão é saber qual é o grau de delegação de poder que está estabelecido em uma determinada sociedade”, explica, e compara: “Nem tudo o povo enquanto titular do poder político pode fazer ele próprio. Você não tem tempo para tudo, as sociedades se tornaram mais complexas. Tudo isso é verdade. Mas a questão é: qual o peso que se dá à soberania popular expressa, mesmo que pelo sufrágio universal, e qual o peso que se dá a instituições burocráticas formadas fora e à margem da coletividade do cidadão?”. Ele cita como um exemplo muito atual desse dilema o protagonismo que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assumido nas questões políticas brasileiras. “O STF está brigando com a Câmara porque acha que pode cassar mandato. Se é para valer o princípio da soberania do povo, essa corte não pode ter esse poder Supremo. Como uma corte de notáveis, que não foi eleita, pode ter mais poder do que uma Câmara eleita?”, questiona. E conclui, citando uma frase inscrita na Constituição brasileira de 1934, repetida na de 1967 e recortada parcialmente para a de 1988. “‘Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido’. Eu não quero saber de onde emana o poder, quero saber onde ele está. E não quero saber em nome de quem vai ser exercido o poder, a questão é quem o exerce”.

Mas em contextos como o do Brasil, em que, atualmente, se acumulam tantos escândalos envolvendo deputados e senadores eleitos, a escolha popular ainda pode ser o fiel da balança? Quartim de Moraes não tem dúvida que sim. “Esse é um problema interno da democracia, que serve para nos lembrar que não podemos idealizar o povo”, diz, explicando que a democracia é um método, uma forma de organização do poder político, e não uma solução. E, recuperando a relação entre economia e política, exemplifica: “Ela é sempre contrabalançada por outros fatores como a questão do emprego. Na França, por exemplo, com medo de perder o emprego para a concorrência, a classe operária, os setores menos esclarecidos e empobrecidos, votam numa direita assumidamente fascista, representada por figuras como o Le Pen”.