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Direito à moradia

Na madrugada do 1º de maio, dia do trabalhador, um incêndio consumiu o edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo. O prédio de 24 andares desabou. Abrigava 455 pessoas que viviam numa ocupação organizada pelo movimento Luta por Moradia Digna. Nas semanas que se seguiram à tragédia, que deixou ao menos sete mortos, muito se discutiu sobre as ocupações: quantas existem e onde? Quem deveria ser responsabilizado? A prefeitura? O movimento social? Rapidamente, o foco se direcionou para o segundo. Pipocaram reportagens sobre a idoneidade das lideranças e cobrança de taxas na ocupação. Mas pouco se falou sobre o que a tragédia revela da negação do direito à moradia no Brasil
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 13/07/2018 10h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Na madrugada do 1º de maio, dia do trabalhador, um incêndio consumiu o edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo. O prédio de 24 andares desabou. Abrigava 455 pessoas que viviam numa ocupação organizada pelo movimento Luta por Moradia Digna. Nas semanas que se seguiram à tragédia, que deixou ao menos sete mortos, muito se discutiu sobre as ocupações: quantas existem e onde? Quem deveria ser responsabilizado? A prefeitura? O movimento social? Rapidamente, o foco se direcionou para o segundo. Pipocaram reportagens sobre a idoneidade das lideranças e cobrança de taxas na ocupação. Mas pouco se falou sobre o que a tragédia revela da negação do direito à moradia no Brasil.

Segundo os últimos dados oficiais, divulgados pela Fundação João Pinheiro em abril, faltavam no país 6,355 milhões de imóveis em 2015. A principal causa do déficit habitacional é o gasto excessivo com aluguel (57%), verificado quando famílias que ganham entre zero e três salários mínimos (R$ 2.862) direcionam mais de 30% da renda para essa despesa. O Sudeste é a região onde mais falta moradia, e São Paulo o estado onde o problema é mais agudo. Já de acordo com o Censo 2010, do IBGE, 6,9 milhões de famílias não tinham casa. Por outro lado, havia 6,05 milhões de imóveis vazios.   

O problema é antigo. Foi no início da década de 1960 que o movimento da reforma urbana começou a denunciar a conta que não fecha: poucos com muito; muitos com nada. E sofisticou a compreensão de moradia. “Desde então, já entendíamos que ninguém mora apenas dentro da casa ou do apartamento. A pessoa mora na cidade e precisa ser atendida pela rede de água e esgoto; ruas pavimentadas e iluminadas; rede de drenagem. Precisa que o transporte público chegue até lá, que nas proximidades tenha escola, unidade de saúde, comércio e serviços”, enumera Erminia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). “O direito à moradia jamais pode ser entendido como acesso a quatro paredes”, define. E o problema também é complexo pois, a um só tempo, é ligado ao mercado, ao Estado e à sociedade – o que, de saída, implica entender a dinâmica da especulação imobiliária, fazer um diagnóstico do papel das prefeituras (responsáveis por tirar a política urbana do papel) e, num exercício sociológico, olhar para as reações geradas pela tragédia do desabamento em São Paulo.


Raízes do Brasil sem moradia

As raízes profundas da negação do direito à moradia estão na formação do Brasil. “Os proprietários de escravos atrasaram a libertação até terem certeza de que seriam proprietários das terras, que pertenciam à Coroa. Entre 1824 e 1888 há um processo de negociação. José de Souza Martins usa a expressão ‘a libertação dos escravos e a escravização da terra’. E essa população foi colocada na rua sem assistência do poder público e sem se constituir uma força de trabalho que recebesse o suficiente para comprar moradia no mercado”, conta Erminia. Assim, a concentração da propriedade forjou a outra face da moeda: gente sem terra, gente sem casa.

O boom imobiliário, que atingiu o país entre 2009 e 2015, fez o quadro ficar mais dramático. Em São Paulo, o aumento no valor dos imóveis no período foi de 250%. No Rio, os preços começaram a inflar antes, em 2002. Dez anos depois, exibiam a maior alta do mundo: 700%. Em comparação, o salário mínimo, que teve ganhos acima da inflação durante os governos Lula e Dilma, cresceu 140%. Não foi suficiente. Como efeito de comparação, em 2007, início da série histórica do déficit habitacional, o aluguel era o responsável por 32% do problema. Hoje, o número subiu para 53%. Uma escolha de Sofia se impõe para muitos brasileiros: ou se mora no centro, onde os aluguéis são altos, e não se paga tanto pelo transporte; ou se mora na periferia, onde o aluguel é mais barato, mas o valor e tempo gastos com deslocamentos aumentam.

“Os aluguéis não param de subir, o desemprego não para de crescer, os salários não param de diminuir. E aí chega uma hora que as pessoas só têm uma opção, que é ocupar”, avalia Vitor Guimarães, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST.  Ele conta que cresce na maior parte das cidades em que o movimento atua a demanda por novas ocupações. “Muita gente vai de mala e cuia para a ocupação, algo que demorava para acontecer. As nossas ocupações têm cozinhas comunitárias e, em alguns casos, isso é a diferença entre passar fome ou não. Famílias conseguem trabalhar, procurar emprego, garantir a ida das crianças para a escola pagando passagens de ônibus porque param de pagar gás, alimento, aluguel. Então, tem mais gente indo para a ocupação, mas tem mais gente em uma situação extrema no país”, denuncia. Exemplo disso foi a megaocupação em São Bernardo do Campo (SP), que chegou a reunir 32 mil pessoas ano passado. Ao longo de sete meses, elas estenderam lonas num terreno de 78 mil m2 abandonado há 40 anos. A atual dona do imóvel, a construtora MZM, adquiriu a área em 2008. Mas não tinha dado uso a ele até a ocupação.

A identidade dos proprietários desses imóveis vazios quase nunca é revelada pelas prefeituras. O único exemplo conhecido é da cidade de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad, quando a base de dados do cadastro fiscal do IPTU foi aberta em 2016. Veio à tona que 1% dos proprietários concentrava 45% do valor dos imóveis, algo em torno de R$ 749 bilhões em casas, apartamentos e terrenos. O cadastro tem 3,3 milhões de registros, dos quais 820 mil estão no nome de 22,4 mil pessoas. Dividindo, dá 37 imóveis para cada um. Mas, é claro, a realidade é ainda ‘melhor’. Na lista dos dez maiores proprietários da cidade, está o desembargador José Antônio de Paula Santos Neto, com 60 imóveis registrados. Ele recebia até o início de 2018 auxílio-moradia, benefício de R$ 4.378 mensais pago a todos os membros do Judiciário (independente de terem imóveis próprios ou não). Em comparação, o “aluguel social” oferecido por estado e prefeitura para as vítimas da tragédia em São Paulo é de R$ 400 mensais. Indignadas com essa “solução”, centenas de pessoas continuam acampadas perto do lugar do desabamento.


A letra da lei

Há um debate que se desenrola entre o direito à moradia e o direito à propriedade. O argumento mais comum é que para assegurar o primeiro não se pode violar o segundo. Mas há, no próprio texto constitucional, a descrição de situações em que o direito à propriedade pode ser perdido (e, importante notar, ele está inscrito como “direito e dever” individual e coletivo). Por isso, sem-teto e militantes dos direitos humanos falam (embora não costumem ser ouvidos) que esse direito não é absoluto, mas relativo. A Constituição de 1988 prevê que qualquer propriedade urbana ou rural precisa cumprir uma função social. O conceito está presente tanto no capítulo da política urbana, quanto no dedicado à reforma agrária e é o principal instrumento legal para a desapropriação de imóveis. Mas o que é essa função social?

Diferente de uma peça de roupa, a propriedade é um bem de interesse público. Sua falta ou distribuição desigual tem impactos. “Alguns bens interessam a toda a coletividade embora tenham um dono particular. A terra, tanto urbana quanto rural, é o melhor exemplo. O proprietário não pode fazer dela o que bem entender. No uso desse bem, tem que atender também ao interesse público. E é por isso que a propriedade é regulada de várias maneiras”, explica advogado Alex Magalhães, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Isso abarca desde situações mais óbvias (você não pode abrir um restaurante no seu apartamento) a outras menos – que estão descritas na Constituição e reafirmadas em leis posteriores. 

 
Num programa da rádio Jovem Pan (23/05), o comentarista Marco Antonio Villa afirmou que tem o direito de ter um apartamento e não usar porque, sendo dono, pode decidir que o imóvel fique vazio, e ninguém tem nada a ver com isso. “Desde 1988 não é verdade”, contesta Magalhães. O artigo 182 da Constituição diz que as prefeituras podem exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento. “Não edificado é o famoso terreno baldio. Subutilizado, é quando se usou muito menos do que poderia: você tem um terreno grande e botou lá só uma casa. E o não utilizado é quando você construiu uma casa, tem um apartamento ou, como no caso do incêndio, é dono de um prédio e deixa o imóvel fechado”, explica o advogado. Nesses casos, a Carta prevê punições: o município pode aplicar parcelamento ou edificação compulsórios. Também pode cobrar IPTU progressivo, que faz a alíquota saltar de 1% ou 2% (percentual normalmente cobrado pelas prefeituras) para 15% do valor total do imóvel. Caso nada dê certo, pode simplesmente desapropriar o imóvel, pagando com títulos da dívida pública.

“A Constituição previu. O problema é que as prefeituras não aplicam, e só elas podem fazer isso”, resume Magalhães. Pesquisa do Ministério da Justiça, de 2015, concluiu que dos 5.570 municípios brasileiros, nem dez lançam mão dos mecanismos legais, regulamentados em outras legislações, como o Estatuto da Cidade (2000). “No Brasil você tem um vácuo de ação em que se reproduz essa visão ideológica conservadora da propriedade como a do Marco Villa. A luta pela moradia é para tornar efetiva a função social da propriedade, tirá-la da abstração. As ocupações vão explicitando conflitos – e são os conflitos que vão dizer até que ponto a função social da propriedade está valendo concretamente ou não”, explica.

E quem arbitra os conflitos é o Judiciário. Erminia e Magalhães garantem que, na maior parte dos casos, os magistrados decidem a favor dos proprietários. “O problema é que no Brasil o Judiciário desconhece a legislação urbanística. Nós temos um arcabouço legal avançado. Mas não temos quem o aplique”, lamenta a arquiteta. “O Judiciário age contra a Constituição: é um péssimo intérprete e um péssimo aplicador da Carta, não está cumprindo o seu papel e age mais de acordo com o senso comum do que com a lei”, critica o advogado.

E no âmbito Legislativo? Se as leis aprovadas são boas, será que os parlamentares estão fazendo um bom trabalho para garantir o direito à moradia? “O Legislativo não atua somente quando faz leis, mas fiscalizando o Executivo. Quando se apresentoiu uma emenda parlamentar garantindo recursos para reforma desses prédios, por exemplo?”, questiona Magalhães, que ressalta que no Brasil, o problema da moradia vai além da construção. “O incêndio gerou imagens impactantes em um lugar visível da cidade. Mas só no município de São Paulo, 29 mil domicílios corriam risco de deslizamento em 2010, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas. A cada chuva há desmoronamentos, desabrigados e mortes – mas como tudo isso faz parte do cotidiano, não chama atenção. A periferia da região metropolitana, que é o espaço de moradia da classe trabalhadora, é invisível”, aponta Erminia.

Ao contrário, o que ficou visível depois da tragédia do edifício Wilton Paes foram os movimentos sociais. Pelo menos dois projetos de lei em tramitação no Congresso podem prejudicar as ocupações. O PL 8.262/17 permite que a PM retire “invasores e ocupações de propriedade privada” sem ordem judicial. Já o PL 9.604/18 quer classificar o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST) e o MTST como organizações terroristas. “Já existe um contexto de criminalização das ocupações. Como em qualquer crise, abre-se uma disputa de narrativa. Enquanto alguns acreditam que o problema é a ocupação, para nós o problema são os imóveis abandonados, que seguem se deteriorando e precisam de requalificação e destinação”, resume Vitor. E conclui: “Quem ocupa não tem culpa”.

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