“No campo estão milhões de brasileiras e brasileiros, da infância até a terceira idade, que vivem e trabalham como: pequenos agricultores, quilombolas, povos indígenas, pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, caipiras, lavradores, roceiros, sem-terra, agregados, caboclos, meeiros, boia-fria, entre outros”. Segundo a declaração do Seminário Nacional por uma Educação do Campo, realizado em 2002, todas essas pessoas precisam ter acesso e ao mesmo tempo construir coletivamente uma política de educação no campo e do campo. E você vai descobrir, nesse verbete, que as pequenas palavras “no” e “do” fazem todo sentido.
Para entender o que significa Educação do Campo é preciso primeiro desfazer algumas ideias. A primeira é a de que a escola situada na zona rural, destinada aos moradores “da roça”, está fadada a ser pobre e marginalizada. A segunda é a de que a escola do campo nada mais é do que a extensão da escola da cidade. “Quando dizemos Por uma Educação do Campo estamos afirmando a necessidade de duas lutas combinadas: pela ampliação do direito à educação e à escolarização no campo; e pela construção de uma escola que esteja no campo, mas que também seja do campo: uma escola política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura, e às causas sociais e humanas dos sujeitos do campo, e não um mero apêndice da escola pensada na cidade; uma escola enraizada também na práxis da Educação Popular e da Pedagogia do Oprimido”, explica o manifesto do Seminário Nacional por uma Educação do Campo.
Para a professora do Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC) e do coletivo de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Roseli Caldart, a “Educação do Campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas”. Ela destaca como característica fundamental da Educação do Campo o fato de ser uma “luta social pelo acesso dos trabalhadores do campo à educação”. A professora reforça que não é um acesso a qualquer educação. Mas sim uma educação “feita por eles mesmos e não apenas em seu nome”. Ela “não é para nem apenas com, mas sim dos camponeses”, escreve Roseli, no verbete Educação do Campo, publicado no Dicionário da Educação do Campo, lançado recentemente pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em parceria com a Editora Expressão Popular. A educadora acrescenta que as práticas de Educação do Campo “reconhecem e buscam trabalhar com a riqueza social e humana da diversidade de seus sujeitos: formas de trabalho, raízes e produções culturais, formas de luta, de resistência, de organização, de compreensão política, de modo de vida, mas assumem a tensão de constituir, no diverso a unidade no confronto principal, reafirmando a identidade de classe da população camponesa e também o objetivo de superar, no campo e na cidade, as relações sociais capitalistas”.
História
O conceito de Educação do Campo nasce com o protagonismo dos movimentos sociais camponeses na luta pela terra e por condições dignas de vida, o que inclui o direito ao trabalho, à cultura, à soberania alimentar e ao território. O conceito surgiu primeiro como Educação Básica do Campo, no contexto de preparação da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, realizada em 1998, em Goiás. Logo depois, foi ampliado, a partir do entendimento de que o direito das populações camponesas deve r da educação infantil até a universidade, e mais do que isso. “A educação compreende todos os processos sociais de formação das pessoas como sujeitos de seu próprio destino. Nesse sentido, educação tem relação com cultura, com valores, com jeito de produzir, com formação para o trabalho e para a participação social”, diz a declaração do Seminário.
No mesmo contexto histórico, foi instituído pelo governo federal o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), no dia 16 de abril de 1998. O lançamento do Pronera aconteceu exatamente dois anos após o Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 Sem Terra foram assassinados. É no contexto de realização do Seminário Nacional, das Conferências Nacionais, do Pronera, e ainda da discussão das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2001, que o termo “Educação do Campo” vai ganhando força.
Como expressão da situação da população camponesa, o conceito já nasce como um contraponto à denominada Educação Rural. Roseli Caldart detalha que a Educação do Campo foi constituída a partir das lutas pelo direito à educação nas áreas de reforma agrária, protagonizadas pelo MST, até as lutas mais amplas pela educação do conjunto dos trabalhadores do campo. “Para isso, era preciso articular experiências históricas de luta e resistência, como as das escolas família agrícola, do Movimento de Educação de Base (MEB), das organizações indígenas e quilombolas, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), de organizações sindicais, de diferentes comunidades e escolas rurais, fortalecendo-se a compreensão de que a questão da educação não se resolve por si mesma e nem apenas no âmbito local: não é por acaso que são os mesmos trabalhadores que estão lutando por terra, trabalho e território que organizam esta luta por educação. Também não é por acaso que se entra no debate sobre política pública”, observa.
Como a Educação do Campo só existe com os sujeitos do campo, a intensificação do chamado agronegócio colocou para a Educação do Campo novos desafios. De acordo com Roseli, essa nova configuração promoveu uma marginalização ainda maior da agricultura camponesa e da reforma agrária. A professora explica como a defesa do agronegócio é incompatível com a proposta de Educação do Campo: “Como defender a educação dos camponeses sem confrontar a lógica da agricultura capitalista que prevê sua eliminação social e mesmo física? Como pensar em políticas de educação no campo ao mesmo tempo em que se projeta um campo com cada vez menos gente? E ainda, como admitir como sujeitos propositores de políticas públicas movimentos sociais criminalizados pelo mesmo Estado que deve instituir essas políticas?”, problematiza.
Experiências
Uma das experiências de Educação do Campo é a das escolas itinerantes criadas pelo MST para garantir educação aos estudantes que vivem nos acampamentos. O pedagogo e também membro do coletivo nacional de educação do MST, Alessandro Mariano, é coordenador do projeto que reúne as nove escolas itinerantes existentes no estado do Paraná. Ele conta que as escolas surgiram como resposta à negação dos direitos dos Sem Terra à educação. “Essa é uma das questões principais da Educação do Campo: o direito do povo de ser educado onde vive. E a escola é itinerante porque acompanha as famílias Sem Terra no período que elas estão na luta pela terra. Então se o acampamento é despejado ou muda de lugar, a escola vai junto, ensinando e acompanhando”, relata.
Segundo Alessandro, os professores das escolas itinerantes também são acampados, e a comunidade participa do processo educativo, desde a construção física do espaço da escola até as decisões pedagógicas. O professor explica que, além dos conhecimentos contidos nas diretrizes curriculares, a proposta da Educação do Campo faz com que se ensine mais. “O próprio contexto de estar na vida do acampamento faz necessário entender sobre leis e direitos, e esses conteúdos acabam perpassando o currículo com muita força pelo fato de os estudantes estarem nessa dimensão da luta pela terra”, diz. Alessandro acrescenta que a relação com o contexto é um princípio básico da Educação do Campo, embora este seja o ponto de partida. “Nosso planejamento de ensino nas escolas itinerantes e também nas escolas de assentamentos sempre busca como princípio a relação com o contexto, mas não ficamos só no contexto. A escola precisa ajudar as pessoas a abrirem a visão de mundo”, comenta.
A própria história de vida de Alessandro diz muito sobre o conceito de Educação do Campo. O professor é assentado, cursou pedagogia para educadores do campo na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e também uma especialização em Educação do Campo, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ambos em regime de alternância, ou seja, com a carga horária de aulas concentrada em um período chamado “tempo-escola” e um período em casa para continuar os estudos chamado de “tempo-comunidade”. Os cursos foram desenvolvidos em parceria com o MST. Mas na infância, Alessandro teve uma história parecida com a de muitas crianças camponesas: a escola onde estudava foi fechada e ele foi obrigado a estudar na cidade. Embora a proposta de Educação do Campo seja de superação do projeto de escola rural onde o professor estudou, ele narra como a escola de sua infância tinha uma importante relação com o lugar onde ele vivia. “Eu estudava em uma escola pertinho de casa, era bonita. De 15 em 15 dias nós mesmos lavávamos a escola, então tinha uma relação com a própria vida, nós ajudávamos a mantê-la. Todo mundo tirava o calçado quando chegava porque estava cheio de barro, e aí calçava o chinelo que levava. A escola foi fechada por uma promessa do município de que seria melhor ir para a cidade. Mas lá era totalmente diferente, eu ia apenas para sentar e ouvir o professor, ia de transporte escolar, e quando chovia, não ia ou ia a pé”, lembra. Só quando se tornou assentado foi que Alessandro conquistou novamente o direito a uma escola na comunidade onde vivia. De lá, foi cursar magistério para depois ensinar no campo.
O educador reforça que a Educação do Campo quer garantir que os camponeses possam viver no campo e transformá-lo. “A Educação do Campo demarca um projeto próprio de sociedade. Por que o próprio campo não pode ter médicos, técnicos, professores? Dessa forma, as comunidades aliam aquilo que culturalmente têm com novos conhecimentos para poderem se desenvolver”, afirma.