Debates de políticas públicas pautados por fake news, medidas governamentais para lidar com uma pandemia orientadas pelo princípio da negação à ciência: nesse cenário, as discussões sobre a formação de estudantes sobre como ‘ler’ e lidar com as diferentes mídias que fazem parte de seu cotidiano ganham força. No entanto, não é de hoje que a mídia é uma preocupação dos educadores e, desde a década de 1930, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) destaca a importância desse debate.
A quantidade de conceitos para dar conta dessa formação também foi crescendo e se complexificando ao longo das décadas: Mídia-Educação, Educação para os media, Literacia mediática, Competência mediática, Alfabetização Midiática, Educação Midiática ou Letramento midiático. Todos guardam especificidades no debate acadêmico, mas, em comum, eles têm a preocupação com a análise das mídias e sobre as mídias, entendendo que um maior conhecimento sobre a produção, consumo e interpretação dos conteúdos são fundamentais para fortalecer a democracia e a participação social.
“É uma questão bastante ampla, mas a gente considera que em uma sociedade com o protagonismo das mídias e tecnologias cada vez mais presentes em nossas vidas, trabalhar com educação necessariamente implica trabalhar com esse aspecto imprescindível na formação de crianças, jovens e professores. [É preciso] entender não só essa diversidade de produções, dos textos e múltiplas linguagens, mas também a possibilidade de refletir e reelaborar criticamente essas formas, esses conteúdos e essas práticas midiáticas”, resume Mônica Fantin, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Educação midiática funciona como síntese para nomear essas práticas”, acrescenta.
De acordo com Ismar Soares, professor da Universidade de São Paulo (USP), quando se fala do início da comunicação midiática nos anos 1930, estamos nos reportando à Inglaterra e ao debate sobre o impacto do cinema nas crianças. Na sequência, a preocupação com a televisão recebe mais atenção, principalmente na América Latina, onde essas discussões ganham força na década de 1960. “O conceito de ‘educação para a televisão’ apontava para impactos de natureza emocional, cognitiva, moral e política. Tivemos uma série de congressos no continente a respeito desse tópico específico”, relembra Soares.
Já na década de 1970, principalmente por parte dos movimentos sociais, surgiu um questionamento a respeito do que era veiculado na televisão. A reflexão não se detinha apenas sobre o conteúdo, mas também sobre os interesses e as relações de poder que envolviam a televisão, uma vez que havia uma disparidade de compreensão entre o que era apresentado por esses veículos e a compreensão dos movimentos populares sobre temas como a questão agrária, meio ambiente, questões de gênero e melhoria da qualidade de vida de forma geral. “Aí entrou em questão como os grupos com algum poder estavam trabalhando os conceitos e interesses para as camadas populares. Então, nós vamos ver diferentes camadas ou diferentes posições e situações da chamada educação midiática”, explica o pesquisador.
Ainda de acordo com Soares, o termo ‘educação midiática’ passa a ser mais utilizado a partir dos anos 1990, quando a perspectiva crítica começa a mirar vários meios, tanto os tradicionais quanto as novas mídias que vieram com o digital. “É importante lembrar que a preocupação com as mídias, em seu conjunto, veio da parte do sistema educacional. No entanto, nós vamos notar que na América Latina e em outros lugares do mundo também o movimento popular, por fora e por dentro da estrutura da educação formal, esteve preocupado com os impactos da mídia”, conta.
O que diz a BNCC
No Brasil de hoje, sem adotar nenhum termo específico, os textos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, lançados respectivamente em 2017 e 2018, incluem orientações para que a educação midiática seja adotada dentro das escolas. O documento é explícito ao propor trabalhos no campo Jornalístico-midiático na disciplina de Língua Portuguesa nos anos finais do Ensino Fundamental e dar ênfase ao uso das redes sociais no Ensino Médio.
Entre as habilidades que a BNCC estabelece que os estudantes do Ensino Fundamental devem desenvolver nessa área está “compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens e mídias, produzir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos autorais e coletivos”.
No Ensino Fundamental, o foco da educação midiática está na análise, produção e crítica de produtos jornalísticos e publicitários, enquanto no Ensino Médio, ainda que esses conteúdos permaneçam e ganhem complexidade de análise, a ênfase está nas redes sociais. “Do ponto de vista das práticas contemporâneas de linguagem, ganham mais destaque, no Ensino Médio, a cultura digital, as culturas juvenis, os novos letramentos e os multiletramentos, os processos colaborativos, as interações e atividades que têm lugar nas mídias e redes sociais, os processos de circulação de informações e a hibridização dos papéis nesse contexto (de leitor/autor e produtor/ consumidor), já explorada no Ensino Fundamental. Fenômenos como a pós-verdade e o efeito bolha, em função do impacto que produzem na fidedignidade do conteúdo disponibilizado nas redes, nas interações sociais e no trato com a diversidade, também são ressaltados”, diz o texto referente às Linguagens. Nos dois segmentos, as atividades relacionadas ao trabalho com mídias estão concentradas na disciplina de Língua Portuguesa.
“A educação midiática é o conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos – dos impressos aos digitais. A educação midiática é o caminho para o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia no mundo conectado”, explica a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patrícia Blanco.
Em outubro, o Instituto lançou a versão em português do Manual proposto pela Rede Interuniversitária Euro- -americana de Pesquisa em Competências Midiáticas para a Cidadania (Alfamed), que envolveu pesquisadores de 12 países, incluindo brasileiros. No prólogo do documento, assinado por Patrícia Blanco e Ismar Soares, os autores comparam a proposta ao manual de Alfabetização Midiática produzido pela Unesco em 2010 e explicam o objetivo desse componente curricular. “A meta da Educação Midiática vai além de formar para a checagem da informação, ou para a redução do compartilhamento das fake news. Volta-se, sobretudo, a colaborar com os cidadãos, contribuindo para que usem criticamente os meios de informação, integrando-se – de modo responsável e ético – no mundo conectado em que todos nós vivemos”, escrevem.
O mesmo prólogo reconhece que a construção da BNCC está distante do cotidiano da educação básica e que faltaram consultas à sociedade, mas vê com otimismo a redação final, que entende a “educação midiática” dentro de uma perspectiva construtivista, ainda que não cite o termo. “O convite a um letramento midiático aparece no campo Jornalístico- -Midiático da Língua Portuguesa. O foco é formar os alunos para os diversos usos da linguagem, de maneira a preparar a nova geração para uma ativa participação na sociedade de forma reflexiva, ética e criativa”, argumentam.
Mônica Fantin lembra que as discussões sobre a BNCC passaram por várias gestões e diversos governos, reuniram grandes equipes, de diferentes universidades, professores de todos os níveis de ensino e profissionais de diversas áreas de atuação. Ela conta que, em 2016, chegou-se a um documento muito próximo de uma conclusão, mas a partir daí houve determinação do governo de redução das equipes para o fechamento do texto. Aliada à interrupção da construção coletiva, houve a aprovação da reforma do Ensino Médio e o corte de diversas disciplinas da área de humanas do currículo. “E aí foi todo um movimento também de resistência pelo jeito que isso foi modificado, porque era uma construção participativa e depois foi uma coisa imposta. Quem deu continuidade a esse processo foram alguns grupos que foram chamados para finalizar essa proposta sem dialogar com os pesquisadores e professores que trabalham e atuam nessas áreas”, relembra.
Falta infraestrutura
No entender de Kátia Alonso, a falta de estrutura das escolas, principalmente as públicas, é um dos grandes empecilhos para que a educação midiática e a produção de conteúdo, previstas na BNCC, sejam implementadas. “Há toda uma crítica de que o problema maior não é a produção da mídia, inclusive pelas escolas, pelos jovens e adolescentes, mas o problema é a infraestrutura que a rede pública de ensino não tem”, diz Alonso. De acordo com a educadora, muita coisa já é feita, mas acaba sendo reduzida ao whatsapp devido ao pouco consumo de dados, muitas vezes já incluído no pacote básico das empresas de telefonia. Dados da pesquisa TIC Domicílios de 2019, divulgados em 2020, indicam que há uma variação de 65% a 75% de residências com internet nas cinco regiões brasileiras, enquanto a variação da existência de computadores é de 29% a 46%. A região Sudeste concentra os melhores índices, enquanto Norte e Nordeste estão na base. Cerca de 58% da população acessou a internet exclusivamente pelo celular.
A falta de acesso à banda larga foi um dos grandes problemas identificados por Mônica Fantin ao integrar um estudo sobre o programa ‘Um computador por aluno’, iniciado em 2010 e com análises publicadas do livro ‘Projeto UCA: entusiasmos e desencantos de uma política pública’ (Editora UFBA). A obra reúne experiências de 21 escolas da Bahia e Santa Catarina. As dificuldades de acesso começaram com a falta de tomadas em escolas baianas e energia elétrica inconstante. A produção de vídeos ficou prejudicada porque a capacidade de armazenamento dos laptops era pequena e algumas experiências foram abaladas pela falta de tempo dos professores para aprender a usar os equipamentos e formação para aplicá-la.
Dados do último censo escolar realizado em 2020 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep) mostraram que, entre as regiões do país, 83,4% das escolas de ensino fundamental do Centro-Oeste possuem internet banda larga. Em seguida estão Sudeste (81,2%) e Sul (78,7%). Já os estados do Norte (31,4%) e do Nordeste (54,7%) são os que têm a menor conectividade. No entanto, como o censo indica, os índices não esclarecem se a conexão está disponível para os alunos. De acordo com pesquisa Datafolha, realizada por telefone entre setembro e outubro de 2020, apenas 55% das escolas têm conexão adequada. Após perder a briga no Congresso e no Superior Tribunal Federal (STF) para não repassar R$ 3,5 bilhões ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para ampliar o acesso à banda larga nas escolas, o governo federal precisou voltar atrás no veto 34/2021 e promulgou a liberação dos recursos às escolas prevista na Lei 14.180/2021 no último dia 8 de outubro.