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Emergência Sanitária

Até para quem nunca ouviu esse termo, é difícil questionar que o que assistimos atualmente, no Brasil e no mundo, configura uma emergência sanitária sem precedentes na história recente. Mas para além do senso comum, existe uma série de normas e legislações, tanto nacionais quanto internacionais, que regulamentam o que de fato constitui uma emergência sanitária, e disciplinam as medidas que os governos podem adotar para enfrentá-la
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/04/2020 11h07 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Os números de casos confirmados e de mortes vêm aumentando exponencialmente desde que o país registrou o primeiro caso de Covid-19, no dia 26 de fevereiro. E o final dessa crise ainda parece estar bem longe no radar das autoridades sanitárias do país. Em todo o mundo, já são mais de 1,2 milhão de casos confirmados em mais de 180 países, com quase 70 mil mortes.

Até para quem nunca ouviu esse termo, é difícil questionar que o que assistimos atualmente, no Brasil e no mundo, configura uma emergência sanitária sem precedentes na história recente. Mas para além do senso comum, existe uma série de normas e legislações, tanto nacionais quanto internacionais, que regulamentam o que de fato constitui uma emergência sanitária, e disciplinam as medidas que os governos podem adotar para enfrentá-la. 


Coronavírus: emergência nacional desde fevereiro

Oficialmente, o Brasil atravessa uma emergência sanitária desde antes que o primeiro caso de coronavírus fosse confirmado por aqui. Vinte e dois dias antes, para sermos mais precisos. Foi no dia 4 de fevereiro que o Diário Oficial da União publicou a portaria 188, emitida pelo Ministério da Saúde na véspera. Com ela, a Pasta declarou no país uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus. Esse é o termo jurídico para o que, no senso comum, convencionou-se chamar apenas de emergência sanitária. Essa questão foi disciplinada por meio do decreto 7.616, de 2011, segundo o qual a ESPIN ocorrerá “em situações que demandem o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública”. O texto lista três “situações” nas quais ela pode ser emitida: as epidemiológicas – como é o caso da pandemia de coronavírus – de desastres ou de desassistência a população.

A lei elenca ainda cinco critérios para que um surto ou epidemia seja classificado como uma “situação epidemiológica” passível de ser declarada Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional: caso apresente risco de disseminação nacional; seja produzido por agentes infecciosos inesperados; represente a reintrodução de uma doença erradicada; apresente gravidade elevada; ou extrapole a capacidade de resposta do SUS em âmbito estadual. Para esses casos, o decreto 7.616/2011 criou a chamada Força Nacional do SUS, através da qual o Ministério da Saúde pode mobilizar emergencialmente profissionais de saúde e recursos materiais para auxiliar estados e municípios durante uma situação de emergência.

Até hoje, o governo brasileiro decretou a ESPIN duas vezes, ambas em situações epidemiológicas. A primeira ainda deve estar bem fresca na memória de muita gente, já que foi em 2015, em decorrência da epidemia do vírus da zika e sua relação com casos de microcefalia e outras alterações neurológicas em bebês nascidos de mulheres que contraíram a doença. A segunda se deu este ano, por conta do coronavírus.

Em ambos os casos a declaração brasileira estabeleceu um diálogo com normas da Organização Mundial da Saúde em relação ao enfrentamento de surtos epidêmicos, mais especificamente com a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional, ou ESPII, instrumento previsto pelo Regulamento Sanitário Internacional (RSI), aprovado pela 58ª Assembleia Mundial da Saúde, em 2005, mas que passou a vigorar em 2007 (mais sobre a ESPII adiante nessa matéria).

No caso da Zika, a OMS declarou a ESPII em fevereiro de 2016, três meses depois de o Brasil, epicentro da epidemia, reconhecer emergência em âmbito nacional. Em nível internacional, a emergência em decorrência do Zika vigorou até novembro de 2016; já a nacional foi um pouco mais longa, vigorando até maio de 2017. No caso do Covid-19, aconteceu o contrário. No dia 30 de janeiro, a OMS declarou emergência internacional, em um contexto em que a infecção ainda se mantinha em grande parte restrita à China. A declaração nacional veio cinco dias depois.


Efeitos práticos

“A declaração, primeiro, tem um efeito imediato que é o de mobilizar o sistema de saúde, o SUS, para que se prepare para detectar e responder à epidemia no território nacional, tanto do ponto de vista da organização, do atendimento ambulatorial e hospitalar, quanto do ponto de vista laboratorial e de vigilância em saúde”, explica Eduardo Hage, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília. E completa: “Ela permite legalmente a alocação, a mobilização de recursos e também procedimentos administrativos como aquisição de insumos e equipamentos e contratação de profissionais de uma forma mais rápida do que em situações normais. Claro, sempre voltado para a resposta à pandemia”.

São vários os exemplos. Foi com base nessa declaração que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou uma resolução no dia 23 de março dispensando, por seis meses, os fabricantes e importadores de equipamentos considerados prioritários para as medidas de controle do coronavírus (como máscaras cirúrgicas, óculos de proteção, vestimentas hospitalares descartáveis e ventiladores pulmonares, entre outros) de possuírem um Certificado de Autorização de Funcionamento emitido pela agência. Também com base na declaração, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) divulgou, no dia 1º de abril, um edital para contratação temporária de profissionais para complementar a força de trabalho dos hospitais universitários federais geridos pela empresa pública.

Mas a medida mais significativa aprovada após a declaração de emergência sanitária por conta do coronavírus foi a lei 13.979/2020. Apresentada no início de fevereiro ao Congresso Nacional pelo governo federal, o projeto de lei tramitou por apenas dois dias no Parlamento, sendo aprovado em regime de urgência pela Câmara e pelo Senado e sancionado pelo presidente da República no dia 6 de fevereiro. A justificativa para o rito acelerado foi a urgência em aprovar uma lei para regulamentar medidas vistas como necessárias para o enfrentamento da pandemia de coronavírus no país, como o isolamento, a quarentena e a determinação de realização compulsória de exames médicos e testes laboratoriais, entre outros, além da restrição temporária à entrada e saída do país por rodovias, portos e aeroportos e também a locomoção intermunicipal e interestadual.

A lei foi apresentada pelo governo como condição para realizar a repatriação de um grupo de brasileiros que estavam na província chinesa de Wuhan, epicentro mundial do Covid-19. Foi somente após a sanção da lei que foi deflagrada uma operação que utilizou dois aviões da Força Aérea Brasileira para trazer de volta ao país os 34 cidadãos brasileiros, que foram então submetidos a um período de quarentena de 14 dias na Base Aérea de Anápolis, em Goiás.

“Essa lei visa estabelecer um arcabouço legal que, do meu ponto de vista, ou não existia ou estava pulverizado em outras normas legais ou infralegais. Ela visou dar uma forma mais objetiva para adoção de medidas que, caso necessárias, sempre visando à proteção da saúde coletiva, possam restringir, como de fato restringem, a liberdade individual, como por exemplo o direito de ir e vir”, afirma o pesquisador da Fiocruz Brasília Eduardo Hage. Para ele, a velocidade de disseminação do Covid-19 pelo mundo é um dos fatores que justificam a adoção de medidas mais restritivas em comparação com eventos similares, como a pandemia da gripe H1N1, em 2009. “Embora tenhamos vírus que atacam o sistema respiratório causando epidemias todos os anos, como já houve inclusive outros tipos de coronavírus, esse agente causador traz muitas questões novas, e a velocidade de disseminação é diferente. Por isso também os parâmetros de como lidar com ele precisam ser diferentes, e por isso foi necessário, para o seu controle, a adoção de medidas para evitar que essa disseminação se dê de uma forma muito intensa e muito rápida”, argumenta.


E em âmbito internacional?

O fato é que tanto o isolamento de pessoas afetadas quanto a quarentena daqueles suspeitos de estarem contaminados por determinada doença que ofereça risco de propagação internacional são medidas previstas pela OMS no Regulamento Sanitário Internacional de 2005, ano em que o passou por uma revisão que introduziu no texto – que desde sua aprovação em 1951 vem passando por processos de revisão periódicos – o conceito de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. O regulamento vigora atualmente em 196 países, e passou a vigorar no Brasil em 2009, quando o Senado aprovou um Projeto de Decreto Legislativo aprovando o texto revisado do RSI. O documento remete à legislação de cada país a definição dos parâmetros para adoção dessas medidas no contexto de uma emergência sanitária internacional. Segundo Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da USP, o conceito foi introduzido no regulamento muito por conta do contexto do início da primeira década do século 21, marcado por acontecimentos que, segundo ela, contribuíram para “desbloquear” as negociações no âmbito da OMS, particularmente entre os países mais influentes, como os Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Ela cita os atentados de 11 de setembro de 2001, seguidos pelo pânico causado pelo envio de cartas contaminadas com a bactéria causadora do antraz, a partir do dia 18 de setembro do mesmo ano, bem como o alerta causado pela transmissão do vírus da SARS, ou Síndrome Respiratória Aguda Grave na Ásia, principalmente na China, Singapura e Hong Kong.  “Esses foram fatores que contribuíram para convencer os países mais influentes na OMS de que era preciso criar um mecanismo de resposta internacional que fosse além das doenças que eram objeto dos regulamentos sanitários anteriores”, explica Deisy. E completa: “Então há uma grande mudança a partir de 2005, em que o RSI passa do combate a uma lista de doenças específicas até um conceito amplo, no qual entram diversas doenças até então desconhecidas, novos vírus, mas também outros tipos de ameaça”.

O regulamento definiu as Emergências de Saúde Pública de Importância Internacional como sendo “eventos extraordinários” que constituem “um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional da doença”, e que exigem uma “resposta internacional coordenada”. “Há um anexo do RSI que a gente chama de algoritmo de decisão, que sugere o que podem ser esses eventos extraordinários”, explica a professora da USP. “Nele há uma lista de doenças, que vão desde a varíola até a febre do Nilo, o ebola e a dengue, passando pelas síndromes respiratórias que surgem de forma inesperada. Esses eventos são cotejados com algumas perguntas: a repercussão do evento para a saúde pública é grave? O evento é inesperado? Existe um risco importante de propagação internacional? Existe risco significativo de restrição às viagens internacionais e ao comércio?”, enumera Deisy. Ela explica que o RSI ainda procura trazer algumas ponderações para avaliar, por exemplo, a intensidade da repercussão do evento sobre a saúde pública, com questões como se existe ou não uma vacina ou tratamento, se a taxa de letalidade é elevada, se ela ocorre em uma área com densidade populacional significativa, etc. “Existe uma série de parâmetros dentro do RSI para a declaração de emergência. Dito isso, se nós fossemos ler ao pé da letra teríamos muitas emergências de importância internacional acontecendo no mundo hoje. Então, claro que tem uma margem de discricionariedade, e a partir das declarações anteriores podemos dizer tranquilamente que o que prepondera é a preocupação em evitar o risco de propagação internacional muito mais do que qualquer outro critério em relação à gravidade da doença”, diz a professora da USP. Até hoje, além da emergência atualmente vigente em decorrência do coronavírus e daquela motivada pela epidemia de zika no Brasil, em 2016, a OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional outras quatro vezes: em 2009, por conta da transmissão da gripe H1N1, com origem no México, extinta em agosto de 2010; em maio de 2014 (e vigente até hoje), devido ao risco de propagação da poliomielite em países como Afeganistão, Paquistão, Nigéria e Síria, entre outros, potencializado por conflitos armados e crises políticas que afetaram programas de imunização nesses locais; em agosto de 2014, por conta da transmissão do ebola a partir de países da África Ocidental, extinta em março de 2016; e, por fim, em outubro de 2019, novamente em decorrência do ebola na República Democrática do Congo, e que também ainda se encontra vigente.