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Escola Unitária

Pesquisadores explicam o conceito de Escola Unitária e contam a experiência da Escola Única do Trabalho, que influenciam o debate da Educação Profissional no Brasil e no mundo
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 21/08/2020 15h07 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

“A escola profissional não deve se transformar numa incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem ideias gerais, sem alma, mas apenas com olho certeiro e a mão firme. Mesmo . através da cultura profissional é possível fazer com que surja da criança o homem, contanto que se trate de cultura educativa e não só informativa, ou não só prática manual”. Quem acompanhou toda a trajetória da educação profissional no Brasil descrita nas quatro reportagens publicadas nesta revista talvez atribua essa frase a um dos vários pesquisadores que apontaram a “dualidade educacional” como marca desses mais de 100 anos de história. E terá certa razão. Mas a verdade é que, embora suas ideias atravessem todo o debate sobre esse tema no Brasil, o autor não está entre os muitos entrevistados desta edição. Nem poderia: o trecho foi escrito em 1916, como parte de um artigo intitulado ‘Homens ou máquinas?’, de autoria do italiano Antonio Gramsci, que morreu em 1937. E que se tornou a principal referência para o projeto de educação que se dedica a combater – e superar – essa tal dualidade: a chamada Escola Unitária. “Trata-se de um projeto de escola que busca promover uma educação a mais inteira possível. É a ideia de cultura extrema, que visa formar o indivíduo nas suas múltiplas dimensões”, resume Ronaldo Lima, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Publicado no jornal Avanti!, o artigo cujo trecho abre esta matéria era, na verdade, um comentário sobre uma sessão da Câmara de Vereadores de Turim, na Itália, que discutiu um programa para o ensino profissional. Anos mais tarde, entre 1922 e 1923, Gramsci voltou à carga no mesmo tema, também provocado pela realidade concreta: agora, o esforço era contra a reforma educacional defendida por Giovanni Gentile, já no governo fascista de Benito Mussolini. Paolo Nosella, italiano radicado no Brasil e professor da Universidade de São Carlos (UFSCar), contextualiza: “O objetivo de Gentile era salvar a ‘pérola’ do sistema de educação italiano, que era o liceu clássico. E, para isso, ele precisava fazer com que esse ambiente não fosse invadido pelo populacho”, ironiza, explicando que a solução proposta foi criar escolas técnicas como um “escoadouro”, uma espécie de “saída lateral” para os mais pobres. Egresso do liceu clássico, onde experimentou uma verdadeira “catarse cultural”, segundo Nosella, Gramsci questionava: “por que a massa popular também não poderia ter essa formação?”.

Além da diferença de conteúdo propriamente, a reforma mudava também as possibilidades futuras dos estudantes, já que apenas o liceu clássico permitia acesso a qualquer curso de nível superior. “É verdade que Gentile previa, no plano teórico, que a seleção da escola superior devesse ter em conta apenas a capacidade dos estudantes e se deveria oferecer aos não abastados a possibilidade de cumprir seus estudos na escola superior, mas o sentido da reforma era a direção oposta”, explica Marco Vanzulli, professor da Universidade degli Studi di Milano, no artigo ‘Gramsci e a Reforma Gentile – Os aparatos ideológicos do estado – a escola’. Se você acompanhou a série de reportagens históricas que a edição especial da Poli trouxe, vai lembrar que, cerca de 20 anos depois desse episódio do fascismo italiano, a reforma Capanema produziu a mesma interdição de acesso à universidade no sistema educacional brasileiro, o que só viria a ser corrigido com as leis de equivalência promulgadas nos anos 1950 e, em definitivo, na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1961. As semelhanças não são meras coincidências. “O projeto da escola unitária reconhece que numa sociedade dual, dividida em classes, como a nossa, as pessoas, já na sua origem, estão segmentadas”, explica Ronaldo Lima. Por isso a atualidade.

O sentido do unitário

Mas o que significa uma escola unitária? Paolo Nosella explica que são vários os aspectos a que esse adjetivo se refere. Pressupõe, por exemplo, que no sistema escolar deve haver uma “certa unitariedade” entre o ensino básico e o ensino superior que virá depois. Espera-se, ainda, que esse sistema educacional mantenha unidade com a “vida cultural da sociedade como um todo”, conferindo coerência entre a vida do aluno na escola, na família e “na rua”. Do ponto de vista político, o objetivo é formar para que todos possam, igualmente, ser dirigentes e dirigidos. E tudo isso tendo como base também a “unitariedade” entre teoria e prática. “O corpo humano e a alma humana formam um todo unitário, embora desequilibrado”, explica, referindo-se ao trabalho manual e intelectual. Ele exemplifica: “Ninguém lava pratos sem ter uma teoria de como lavar pratos. Assim como em todo trabalho teórico – de um jornalista, de um professor, de um estudioso – tem esforço muscular nervoso”. Por isso, a ideia da escola unitária é resgatar – e potencializar – essa unidade que, embora seja própria do modo de ação humano, acaba sendo ocultada pela divisão do trabalho na sociedade. “Por condições históricas, essa unitariedade incipiente se desequilibra, mas ela nunca se rompe”, diz Nosella.

O professor lembra que na obra de Gramsci, aparecem referências também à “escola única”, embora em menor quantidade. Ele, no entanto, acha que não é indiferente usar um ou outro termo. “Unitária”, diz, “conota processo, dinâmica e, ao mesmo tempo, extensão e ampliação”. Já escola “única” se referiria a “algo estático e idêntico”. Mais do que preferências linguísticas, trata-se aqui de associar, mais ou menos, o conceito a uma experiência concreta que influenciou o pensamento de Gramsci e que muitas vezes é tida como sinônimo de escola unitária: a escola única do trabalho, implementada na Rússia pós-Revolução, e que durou, formalmente, até 1931. De acordo com Luiz Carlos Freitas, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), embora a ideia estivesse sendo desenvolvida desde antes, esse modelo torna-se política em 1917. No ano seguinte, são publicados seus princípios e uma espécie de regulamento.

Referindo-se ao projeto e à experiência russa, Freitas nega que a ideia de “única” tivesse qualquer relação com uma formação uniforme ou de “pensamento único”. Segundo ele, o documento produzido pelo comissariado da educação naquele momento deixava claro que o sentido era garantir uma progressão contínua em todo o sistema de escolas regulares, desde o jardim de infância até a conclusão dos estudos. “Isso significa que todas as crianças devem poder estar em um mesmo tipo de escola e começar a sua educação igualmente, que todas têm direito de prosseguir até os níveis mais altos”, explica. E completa: “É por isso que ela é única, porque quer quebrar a dualidade da escola capitalista, que trabalha com duas vertentes, uma que vai afastando os alunos mais pobres ao longo da formação e outra que reserva para alguns aquela linha direta para a universidade”. Isso não quer dizer que todos tenham que ir para o ensino superior, ressalta. “Mas que a ida seja possível”, diz, de modo que, quem não prosseguir o faça por “opção própria” e não “porque não tem condições econômicas para chegar até lá”.

Mas o nome não é por acaso: além de “única”, pretendia-se construir uma escola que fosse também “do trabalho”. E aqui também são necessárias ressalvas. “A conexão com o trabalho não significa colocar as criancinhas na fábrica e nem esperar o ensino médio para que elas possam ter algum contato com o trabalho”, alerta Freitas. Segundo ele, na experiência concreta russa, havia dois níveis de ensino: o primário, para crianças dos oito aos 13 anos, e o secundário, que envolvia jovens de 13 a 17 anos. No primeiro segmento, o ‘trabalho’ que caracterizava a escola era definido, oficialmente, como um princípio que deveria “dirigir para o conhecimento do mundo criativo, vivo e ativo”. “Nesse bloco, a proximidade com o trabalho tem essa significação de tornar o ensino ativo, de modo que não seja livresco, um ensino que não seja só de ouvir o professor falar em sala de aula”, resume Freitas, que completa: “Trabalho tem aqui o sentido de que a vida em geral é um palco de aprendizagem e ela pode ser assim tomada pela escola”. Já no segundo nível, a ideia era colocar os estudantes em contato com os variados trabalhos, com base no estudo da “cultura politécnica”. “Aí o trabalho está mais formalmente presente, mas ainda na forma de oficinas escolares de metal, madeira e também com o que será desenvolvido como trabalho socialmente necessário, ou seja, um conjunto de atividades de conexão da escola com a vida, com o bairro. [É a ideia de] que os estudantes se conectem com essa vida para resolver problemas concretos que estão acontecendo na comunidade”, explica Freitas, ressaltando que a especialização em alguma profissão só poderia acontecer a partir dos 17 anos.

Pelo menos esse era o princípio. E que foi posto em prática bem no começo da experiência. Mas Freitas conta que, bem cedo, em meio à guerra civil que tomou conta da Rússia, houve pressão para se antecipar essa especialização para os 13 anos, de modo que os jovens pudessem contribuir o quanto antes com a urgência da industrialização. “Aí há uma grande confusão, um debate muito acirrado, o [Vladimir] Lenin tem que intervir. E ele então negocia, provisoriamente, em caráter emergencial, que se possa antecipar para 15 anos”, conta Freitas. A guerra civil duraria ainda vários anos, Lenin morreria em 1921 e o provisório se tornaria permanente. “Foi algo ditado pelas circunstâncias”, lamenta o professor, que enfatiza: “Mas não era essa a proposta da escola única do trabalho”. Segundo Freitas, outras características, no entanto, reforçavam um sentido diferente do trabalho associado à escola na experiência russa. O foco era preparar crianças e jovens para a atuação no coletivo, o que se expressava, entre outras coisas, no incentivo à auto-organização e na garantia de participação dos estudantes nos coletivos de administração das escolas com representação igual a de trabalhadores e membros da comunidade.

No Brasil: unidade e profissionalização

Parte dessa história Gramsci viu pessoalmente, no período de cerca de um ano e meio que passou na Rússia. Mas Paolo Nosella defende que, quando a ideia de escola única do trabalho aparece nos escritos do autor italiano, ela não se refere à formação para uma “atividade profissional”. “O estudo é o trabalho”, defende, argumentando que, também nessa atividade entram em funcionamento, ao mesmo tempo, “a cabeça e os músculos”. Com isso, o o autor do livro ‘Ensino Médio à luz do pensamento de Gramsci’ quer destacar sua crítica ao que considera uma “profissionalização precoce”: seja a que se deu na Rússia, como parte das contingências históricas, seja aquela que é defendida hoje no Brasil por meio da bandeira do ensino médio integrado à educação profissional. “Um dos defeitos profundos [desse modelo] é que a pessoa deve, a priori, dizer qual é a sua tendência [profissional]”, critica. Para Nosella, a “unitariedade” da escola unitária está no ensino básico e é só a partir da universidade que deve se dar a profissionalização. “Uma boa escola é quando realmente ensina uma cultura ‘desinteressada’. Isso significa que ela não ensina como se trata a laranja, porque se tem o interesse imediato de plantar aquele pé de laranja. ‘Desinteressado’ significa ensinar como surgiu a terra e como surgiu a relação terra e cidade”, exemplifica.

Do outro lado desse debate polêmico, Ronaldo Lima defende que o ensino médio integrado, que caracteriza principalmente a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) – além da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) – é o “projeto mais extenso possível considerando a realidade brasileira”. “O ensino médio integrado se inspira na ideia de escola unitária, mas não se confunde com ela porque não deixa de reconhecer que a gente vive em uma sociedade dual, não em uma sociedade unitária”, diz. Segundo ele, a questão é que, no Brasil, uma grande quantidade de jovens, por necessidade econômica, é obrigada a entrar no mercado de trabalho “de forma precoce e desqualificada”. “Quando você assegura uma formação profissional que articule ciência e cultura, você está assegurando melhores condições para esses jovens que vão entrar no mercado de trabalho, queiramos ou não. Você dá um pouco mais de segurança e qualidade para a inserção desses jovens no mercado de trabalho e, mais ainda, você está dando a ele a possibilidade de continuidade dos estudos”, argumenta.

Nosella reconhece a qualidade do ensino médio desenvolvido na rede de institutos federais, mas o considera um projeto “especial”, que não lida com os mesmos desafios da escola pública em geral. Para Ronaldo Lima, de fato, o que ele considera “o ensino médio público que deu certo do Brasil”, ainda é ofertado a poucos jovens, mas deve e pode ser ampliado. “Essa é uma experiência universalizável e essa deve ser a nossa luta”, defende.