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Golpe

Estamos vivendo um golpe de Estado ou não no Brasil? Na seção Dicionário da revista Poli, pesquisadores discutem o conceito de ‘golpe’, que vem sendo utilizado por muitos segmentos sociais contrários ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e rebatido por aqueles a favor da destituição
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 11/05/2016 09h02 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Muita saliva já foi gasta discutindo se a tentativa em curso de deposição de Dilma Rousseff da presidência da República é ou não um golpe de Estado. As cusparadas disparadas pelo deputado federal Jean Willys (Psol-RJ) contra seu colega Jair Bolsonaro (PSC-RJ) durante a votação do impeachment na Câmara e pelo ator José de Abreu durante uma discussão acalorada com um casal pró-impeachment em um restaurante foram apenas a expressão mais midiática de um debate que domina o cenário político brasileiro na atualidade. Mais recentemente, no dia 29 de abril, durante sessão da Comissão Especial do Impeachment no Senado, o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, defendeu que o processo atenta contra o que diz a Constituição e é, portanto, um golpe. No mesmo dia, em um discurso no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a ex-senadora Marina Silva (Rede) criticou o uso da palavra ‘golpe’ pelo governo e sua base aliada para se referir ao de impeachment, alegando haver uma banalização do termo atualmente. Quem tem razão? A resposta está longe de ser fácil, e não se encerra na polarização simplista entre “coxinhas” e “petralhas”. Para analistas ouvidos pela Poli, a questão é central para o entendimento do cenário político atual e para a construção de uma oposição de esquerda para o projeto que as forças políticas por trás do impeachment (ou será golpe?) pretendem implementar. 

Histórico do conceito

Para tentar contribuir com esse debate, o historiador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Álvaro Bianchi escreveu um artigo publicado no Blog Junho em que procurou conceituar golpe de Estado. Segundo ele, há uma vasta bibliografia sobre o tema, que remonta ao século 17. Para os autores daquele período, governante e Estado eram uma só entidade. Essa distinção só seria feita mais tarde, por autores modernos como John Locke. Por conta disso, o golpe de Estado era retratado como uma conspiração palaciana cujo protagonista era sempre o soberano. Bianchi cita o francês Gabriel Naudé, que em uma obra publicada em 1679 conceituava o golpe de Estado como as ações “arrojadas e extraordinárias”, contrárias à lei comum, que os soberanos são obrigados a tomar em determinadas situações, “em benefício do bem público”. Com o desenvolvimento do Estado moderno ao longo dos séculos posteriores, o conceito vai ganhando novas nuances na literatura dedicada ao tema. A partir de meados do século 19 há mudanças conceituais importantes. A partir daí, tornou-se comum o uso dessa expressão para descrever processos de tomada de poder que não tinham como sujeito exclusivamente o soberano e que extrapolavam os limites dos palácios imperiais. Desse período, a obra mais famosa foi o ‘18 de Brumário de Luis Bonaparte’. Nela, Karl Marx descreveu o processo entre a Revolução de 1848 – que estabeleceu a república presidencialista e o sufrágio universal na França – e o golpe de Estado de 1851, pelo qual o sobrinho de Napoleão, eleito presidente em 1848, dissolveu a Assembleia Legislativa e tornou-se ditador, beneficiado por uma aliança com partidos da burguesia e com frações do exército. Marx considera como “golpe” a traição e a expulsão do governo de lideranças proletárias que emergiram em 1848.

No século 20, os autores que se debruçaram sobre a ideia de golpe passaram a dar cada vez mais centralidade para o papel das forças armadas nesses processos. O conceito passou a ser utilizado para classificar processos de derrubada repentina e violenta de governos, operada por militares ou com sua ajuda. A partir dessa definição, Edward Luttwak, no livro ‘Golpe de Estado: um manual prático’, enumerou 41 países em que ocorreram golpes bem sucedidos apenas no período entre 1945 e 1967, sendo 14 na África, oito na Ásia, 14 na América Latina, dois no Oriente Médio e três na Europa.  Todos liderados ou apoiados por aparatos militares.

No entanto, como argumenta o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Demian Melo, essa definição de golpe de Estado como um processo protagonizado por militares não permite analisar o papel do Legislativo e do Judiciário na legitimação de processos de tomada de poder. Segundo ele, foi o que ocorreu em 1964, no Brasil. “Não se pode esquecer que o Congresso Nacional e o Judiciário chancelaram o golpe de Estado. O Senado declarou vaga a presidência da República quando João Goulart ainda estava em território nacional. E, na madrugada do dia 2 abril, o Supremo realizou uma sessão burlesca para dar posse ao presidente do Congresso, que na época era o Ranieri Mazzili. Isso foi feito na tentativa de aparentar que se tratava de um procedimento legal”, lembra Demian. Álvaro Bianchi, em seu artigo, vai na mesma linha, e traça um paralelo com a derrubada do presidente hondurenho Manuel Zelaya, em 2006, e do presidente paraguaio Fernando Lugo, em 2012, ambos depostos através de processos de impeachment conduzidos pelo Legislativo, sem intervenção militar. “O conceito precisa, portanto, ser alargado”, escreve Bianchi, para em seguida propor uma definição sintética de golpe como “uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político”.

Golpe ou impeachment?

É essa definição proposta por Álvaro Bianchi que Demian Melo utiliza para classificar o processo de impeachment de Dilma como um golpe. “É um escândalo que esse processo seja tocado pelo Eduardo Cunha, contra quem pesam várias denúncias de crimes, inclusive com provas contundentes. Tem um sentido de vingança evidente. No dia da votação do impeachment na Câmara, a imensa maioria dos parlamentares que votaram ‘sim’ não fizeram nenhuma menção aos elementos que pesam na acusação contra a Dilma”, argumenta o professor da UFF. E completa: “O julgamento político de uma presidente da República que não cometeu crime de responsabilidade é um recurso excepcional, não tem sustentação jurídica. Mas o Judiciário, notoriamente conservador, endossa esse procedimento, exatamente como fez há 50 anos”, argumenta.As semelhanças com o que aconteceu em 1964, no entanto, param por aí. “Mesmo com todas as limitações de um governo presidido pelo João Goulart, que era o homem mais rico do Rio Grande do Sul, o governo derrubado em 1964 apresentava uma plataforma reformista. Tinha um projeto político que prometia reforma agrária, indexação da remessa de lucro para o exterior, uma política externa independente que implicava solidariedade aos povos que lutavam contra o colonialismo”, enumera Demian. Desse ponto de vista, o cenário hoje é antagônico, diz ele. “É bem diferente de um governo que cai prometendo mais ajuste fiscal. Se em 1964 a derrubada do governo significou para a esquerda uma desmoralização, pelo fato de que o governo Jango caiu e não teve resistência, hoje a desmoralização é muito maior, porque o governo cai e não há o que ser defendido”, argumenta. Para ele, isso explica a relutância de parcelas da oposição de esquerda ao governo em classificar o processo de impeachment como golpe. “Parte da esquerda sempre desconfiou da ameaça do golpe como um discurso usado pelo governo para chantagear os movimentos sociais no sentido de se solidarizar com ele. Entretanto, na minha opinião, o que a gente está vendo é de fato um golpe de Estado que abre um precedente perigoso para o funcionamento da democracia brasileira, que vai incorporar isso como o seu procedimento”, defende.

Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renato Lemos é um dos que discorda da aplicação do termo ‘golpe’ para descrever a tentativa de deposição de Dilma Rousseff. “Se um procedimento baseado na lei, ainda que com um fundamento questionável, é reduzido a um golpe, passa-se a ideia de que a lei é boa, apenas está sendo mal usada. E com isso se deixa de perceber que as leis foram feitas para isso mesmo, para serem interpretadas impositivamente pelos vencedores numa determinada correlação de forças políticas que estejam em confronto”, argumenta. Para ele, exemplo emblemático disso é o caso do ex-presidente Fernando Collor, que em 2014 foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) dos crimes de desvio de dinheiro público, falsidade ideológica e corrupção passiva, acusações que resultaram em seu impeachment em 1992. “E ninguém caracteriza o impeachment do Collor como golpe, a não ser ele mesmo”, compara. Para Renato, a violência militar é uma característica sine qua non do golpe de Estado. “Se não tiver a violência militar, é uma outra forma de luta política, não é golpe. Se não tudo vira golpe. E eu acho que é pedagogicamente ruim sair classificando qualquer tentativa oposicionista de golpe, pois corre-se o risco de esvaziar o conceito e não ajudar a entender a realidade política e para onde se deve ir. É preciso saber contra o que se está brigando, se é contra leis ou se é contra a interpretação das leis”, opina. Para Renato, não está em jogo a possibilidade de uma ruptura com a estabilidade democrática obtida após o fim da ditadura. Segundo ele, vive-se hoje a consolidação de um regime político que se formou a partir da transição conservadora iniciada em 1974. “Esse é um regime que vem trabalhando no sentido de militarizar o Estado brasileiro. Temos a Lei de Segurança Nacional, o Código Penal, entre outras leis, que com algumas adaptações estão em vigor desde a ditadura até hoje. O Estado está totalmente aparelhado, tem todas as condições de entrar em cena se houver uma percepção de que a ordem está ameaçada”, opina.  Segundo ele, o fato de as Forças Armadas não entrarem em cena atualmente sinaliza uma consolidação, sob bases conservadoras, desse regime político, que se concretizou na Constituição de 1988. “Nossa Constituição é conservadora. É ela que no seu artigo 142 autoriza a intervenção das Forças Armadas em operações de polícia nas cidades para a garantia da lei e da ordem. É ela que permite que as divergências no interior das classes dominantes, ainda que divididas em blocos de poder distintos, se resolvam por cima, sem precisar recorrer a grandes mobilizações, sem precisar colocar os tanques na rua”, pondera Renato. Não significa que a repressão está descartada enquanto arma do Estado no processo de enfrentamento político que deve se estender pelos próximos anos, caso o impeachment se efetive. “Se o Temer assumir ele deve implementar um programa de governo que é péssimo para o conjunto dos trabalhadores do Brasil, que não estão suficientemente organizados para evitar ou reagir, mas vão estar mobilizados para ir às ruas. E o Estado tem mecanismos legais, constitucionais de reprimir isso usando as suas forças armadas, tanto policiais quanto militares. Vamos ter um agravamento da repressão social”, avalia Lemos.