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Liberdade

Conheça as origens e as questões envolvidas no conceito de liberdade, que tem sido apropriado por movimentos e entidades de direita
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 11/11/2016 10h10 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Estilhaços de uma bomba jogada pela Polícia Militar de São Paulo num protesto contra o impeachment atingiram um olho da estudante Deborah Fabri, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que perdeu a visão. Dias depois, a universidade ofereceu assistência psicológica à aluna e enviou um carro institucional para transportar o pai dela, que vinha de São Paulo a Santo André para visitar a filha. Em reação, um grupo organizado de estudantes da UFABC fez uma representação junto ao Ministério Público Federal denunciando a ajuda como um mau uso de recursos da universidade. O nome do grupo: UFABC Livre. No seu blog, o ‘movimento’ se insurge contra os “partidos de esquerda corruptos”, garante que “nossa bandeira nunca será vermelha” e afirma que vai começar por aquela universidade “a libertação do Brasil”. Na página no Facebook, não esconde a proximidade com um outro ‘libertário’, o Movimento Brasil Livre (MBL), que protagonizou as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff.

O fato é que a palavra – ou a ideia – de liberdade está presente em boa parte dos movimentos e entidades mais conservadoras que ganharam espaço no contexto de crise política que atravessou o Brasil nos últimos anos. Garantir a liberdade de pensamento dos estudantes, por exemplo, é o principal objetivo anunciado pelo movimento Escola sem Partido, que criou um projeto de lei contra uma suposta doutrinação de esquerda nas escolas. No texto, no entanto, o projeto defende que não se deve considerar a liberdade de expressão do professor em sala de aula, alegando que esta (a liberdade do docente) impediria aquela (do aluno). Para combater os projetos de lei desse movimento, que tramitam em várias casas legislativas, um deputado federal criou um outro PL, que defende uma concepção e uma prática de educação diametralmente oposta. O nome? Escola livre.  Para complicar ainda mais, esse foi também o nome do projeto do Escola sem Partido que foi aprovado no estado de Alagoas. “Isso revela uma coisa muito interessante, que é a vocação do conceito de liberdade de ser um conceito negativo desde a origem do liberalismo. O que significa que eu só afirmo a liberdade pela negação de outra liberdade. Esse atrito entre liberdades, que nunca foi resolvido pela História moderna, atualmente grita altíssimo”, analisa Claudio Gomes, filósofo e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

No espectro de partidos políticos, esse conceito também está em disputa. No Brasil, hoje, o partido eleitoral que colocou liberdade no nome, o PSOL, se apresenta como de esquerda e socialista. Mas basta atravessar um oceano para encontrar, na Áustria, por exemplo, uma sigla da extrema-direita nacionalista chamada Partido Liberdade. “As pessoas raramente realizam uma análise para ver o que está por trás desse conceito de liberdade. Quando isso é cruzado pela luta de classes, os trabalhadores vão invocar o valor da liberdade para realizar as suas demandas como, por exemplo, a liberdade de organização e de pensamento. E isso em alguns momentos se choca com a ordem burguesa”, exemplifica Mauro Iasi, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde ministra a disciplina de teoria política. Ele resume: “Nós sabemos que as palavras não têm significado em si mesmas, mas apenas na relação com o conjunto do pensamento ao qual elas se associam. No limite, a liberdade não é nada a não ser aquilo que os atores sociais a significam. Para a burguesia tem um significado, para os trabalhadores tem outro”.

Liberdade, indivíduo e sociedade

O “pensamento” ao qual a concepção prevalente de liberdade ainda hoje “se associa” remete ao liberalismo, uma doutrina surgida no final do século 17 e que deu suporte ao desenvolvimento das revoluções burguesas que viriam em seguida. “O liberalismo tem uma contribuição extraordinária na história do pensamento político e da sociabilidade de modo geral justamente porque é uma enorme força teórica contra o Absolutismo. O liberalismo consegue produzir uma ideia de homem protegido do poder absoluto”, explica Claudio, identificando nesse movimento a ‘origem’ do “homem moderno”. “É por isso que o que vai se caracterizar como liberdade se vincula a essa esfera inalienável de decisão a que chamam de consciência. Fundamentalmente, a palavra de ordem é: na consciência eu tenho liberdade, na minha consciência ninguém entra, ninguém arbitra”, diz, explicando que, nesse movimento, o liberalismo “inventou o indivíduo político”.

Ao promover a liberdade como um valor para o indivíduo, o liberalismo afirmou uma separação rigorosa em relação ao Estado. Isso é perfeitamente compreensível pelo contexto: afinal, era contra um poder centralizador e concentrado na figura do monarca que esse pensamento se insurgia. O importante, no entanto, é perceber que nem sempre foi assim. Vinte séculos antes, na Grécia Antiga, já se falava em liberdade, mas com um significado muito diferente. “Para Aristóteles, Platão, Sócrates, o ser humano está condicionado pelo seu pertencimento a um coletivo, ele faz parte de algo que é a sociedade. A noção de liberdade era a capacidade de o ser humano criar uma associação que lhe permitisse superar o estágio animal e entrar no estágio propriamente humano, que é o da arte, da política, da guerra, da filosofia. Então, esse era um atributo do ser enquanto ser social, não de um indivíduo”, explica Mauro.

Estado e capitalismo

Já na concepção liberal – e neoliberal, atualizada para nossos dias –, a ideia de liberdade não só está diretamente relacionada ao indivíduo como é indissociável da defesa da propriedade privada. “Assim como o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza um fundamento natural para o poder e o prestígio, a burguesia precisava de uma teoria que desse ao seu poder econômico também um fundamento natural, capaz de rivalizar com o poder político da realeza e o prestígio social da nobreza, e até mesmo suplantá-los. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural”, explica Marilena Chauí, no livro ‘Convite à filosofia’, referência para o ensino dessa disciplina nas escolas. Mas o que isso tem a ver com liberdade?

A explicação mais completa vem diretamente de John Locke, filósofo inglês que viveu entre o final do século 17 e o início do 18 e é considerado o pai do liberalismo político. Empenhado em desenvolver uma nova ‘teoria’ que desse conta das novas relações – crescentemente capitalistas – que começavam a surgir, ele defendeu que os homens, originalmente, viviam num “estado de natureza”, caracterizado pela completa liberdade e igualdade. Mas, segundo ele, já nesse estado de natureza estava presente o “direito natural” à propriedade privada. A terra – primeira expressão dessa propriedade – foi um presente de Deus, dado igualmente a todos os homens e aquele que se apropriasse e trabalhasse nela passaria a ser seu dono.

E é exatamente para proteger essa propriedade, adquirida como direito natural, que, segundo Locke, esse mesmo homem decide sacrificar a total liberdade de que dispunha no estado de natureza, se organizando em sociedade e criando a figura do Estado. “A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem em segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela”, diz Locke.

De acordo com Claudio Gomes, todo esse pensamento forma a “mitologia” que o liberalismo precisa para garantir a sociabilidade capitalista. Assim, defender a propriedade privada e as liberdades individuais a ela associadas passa a ser naturalizado como um processo em que a humanidade apenas preserva os direitos que, na verdade, ela já tinha antes. “O liberalismo cria a mitologia de que o homem é burguês, individualista e capitalista por natureza. E, portanto, cria a sociabilidade como a gente experimenta modernamente para preservar o que ele já era. É como se o capitalismo fosse pré-adâmico, da natureza do homem”, explica.

Por isso Locke pode afirmar, com tranquilidade, que a única finalidade do governo é a “conservação da propriedade”. Também por isso, mais de três séculos depois, movimentos e entidades como as que foram citadas na abertura desta matéria continuam defendendo posturas muito parecidas: “Estado e governo significam funcionalmente restrição à liberdade individual, pois constituem necessariamente concentração de poder. Devem, portanto, ser minimizados, isto é, ser contidos no âmbito de atribuições que não possam ser confiadas, a custo social razoável, aos particulares”, diz o texto de princípios do Instituto Liberal, do Rio de Janeiro, uma entidade de direita que se dedica a promover um “processo de conscientização” sobre os valores da liberdade individual e de mercado. Tudo igual ao que se propõe o outro Instituto Liberal, de São Paulo (Ilisp): “Nossa meta é apenas uma: tornar o Brasil um país onde as pessoas tenham plenos direitos à vida, liberdade e propriedade”.

Duas liberdades?

Mauro Iasi chama atenção para o fato de que, para o liberalismo, inspirado em Locke, a verdadeira liberdade é a liberdade civil. “O indivíduo pode fazer tudo aquilo que deseja desde que não seja proibido pela lei, desde que não fira os limites do pacto político e jurídico estabelecido”, diz, resumindo: “Isso é importante porque gera uma cisão entre duas esferas: o indivíduo é livre na esfera privada mas tem deveres na esfera pública”. E, para o professor, esse é o pulo do gato, o elemento fundamental para entender por que, neste momento, a liberdade está sendo apropriada como a palavra-chave do pensamento conservador. “Quem comanda os movimentos conservadores tenta capturar esse valor até na sua identidade nominativa – por exemplo, estão aí o MBL, o Instituto Liberal. É uma estratégia muito perversa. Porque eles afirmam um conteúdo particular da liberdade, mas dialogam com o conteúdo universal que está na consciência das pessoas, do senso comum. Defendem a liberdade para garantir os seus privilégios enquanto proprietários, mas dialogam com a liberdade como se significasse o meu direito de ir e vir, o direito de que os outros não se intrometam na minha vida”, explica, exemplificando com o caso do movimento Escola sem Partido que, na sua avaliação, alega defender as liberdades dos estudantes e pais para, na verdade, fazer com que apenas um partido prevaleça: “A noção de liberdade para o ideário burguês sempre oscila entre esses dois sentidos. Propagandisticamente eu divulgo o primeiro: o indivíduo é livre para ir aonde quiser, para fazer o que quiser, a liberdade é a coisa mais essencial do ser humano. Quando interessa, eu uso o segundo: mas a liberdade é limitada pelo direito, pela relação com os outros, com a sociedade, portanto, pelo Estado. Quando se quer garantir os interesses privados, usa-se essa segunda acepção negativa”.