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Pedagogia de problemas

Habilitar indivíduos para identificar e resolver problemas, propostos a partir de sua vivência cotidiana. Romper com as metodologias de ensino tradicionais, nas quais o conhecimento é transmitido, pronto e em via de mão única, do professor ao aluno. Esses são alguns dos eixos que caracterizam o que tem sido chamado, com mais ênfase nas últimas décadas, de ‘Pedagogia de Problemas’, ou ‘ Pedagogia da Problematização’.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2011 16h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Habilitar indivíduos para identificar e resolver problemas, propostos a partir de sua vivência cotidiana. Romper com as metodologias de ensino tradicionais, nas quais o conhecimento é transmitido, pronto e em via de mão única, do professor ao aluno. Esses são alguns dos eixos que caracterizam o que tem sido chamado, com mais ênfase nas últimas décadas, de ‘Pedagogia de Problemas’, ou ‘ Pedagogia da Problematização’. Mas esses são elementos constitutivos de uma corrente pedagógica? O que a qualifica? Por quem, como e por que é utilizada? Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), nos dá uma pista:

“A partir de uma abordagem histórica das correntes pedagógicas, podemos afirmar que não existe uma pedagogia da problematização. Quando pensamos em uma pedagogia, tratamos de uma concepção unificada acerca da finalidade da educação, que orienta a seleção de conteúdos a serem abordados e métodos de ensino. Identifico a problematização como um passo didático, utilizado no processo de ensino-aprendizagem, ou uma mediação didática, que pode estar presente em diversas correntes pedagógicas. Uma forma importante de diferenciar as utilizações da problematização nas diferentes correntes pedagógicas é identificar o objeto a ser problematizado e a finalidade com que se faz a problematização.”

Para Dermeval Saviani, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e formulador de uma corrente (a histórico-crítica), as correntes pedagógicas não podem ser qualificadas pela utilização de passos didáticos, mas sim por sua concepção de mundo mais ampla: “A ideia de que a educação deve habilitar os indivíduos e capacitar as pessoas a enfrentar os problemas da sociedade, da vida e do mundo envolve as diferentes teorias pedagógicas. Mas cada uma dá a essa questão uma solução adequada à sua base teórica. Na verdade, o processo é inverso: a problematização e o modo de tratar os problemas decorrem da concepção de fundo”, diz. E exemplifica: “Se fosse a problematização que configurasse a concepção pedagógica, todas as correntes que a utilizam convergiriam por terem como ponto comum a busca de solução de problemas. Isso é complicado, porque o que existe são diferentes correntes, algumas conflitantes entre si, que utilizam a problematização. Aliás, qual a concepção pedagógica que iria admitir que não está preocupada com a busca de solução de problemas e em preparar educandos a solucionar problemas que encontram no transcurso de sua vida? Nenhuma. Isso, portanto, não é suficiente para qualificar uma teoria pedagógica”, diz. Saviani considera que a pedagogia de problemas também não é uma metodologia específica: “Essa questão aparece em diferentes teorias pedagógicas, e também em diferentes formulações metodológicas”. Mas quais são, então, as correntes e metodologias que utilizam a problematização? E quais as diferenças entre elas?

História

De acordo com Suzana Burnier, professora da pós-graduação em educação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), a utilização de problemas em processos de ensino-aprendizagem é muito antiga na história da humanidade. No verbete sobre Pedagogia de Problemas do ‘Dicionário da Educação Profissional em Saúde’, ela aponta que há registros dessa prática em manuscritos egípcios de 1650 a.C. e em documentos chineses de 1000 a.C. “No âmbito da escola moderna, na virada do século XIX para o século XX, principalmente a partir das idéias de John Dewey, tal proposta começa a ser sistematizada e implantada.”, diz o texto.

Marise Ramos explica a utilização a partir das idéias de Dewey, filósofo e pedagogo estadunidense do início do século XX. “A ideia de pensamento reflexivo, com Dewey, propõe um conhecimento construído a partir de perguntas, que geram novas perguntas. Isso se diferencia da chamada pedagogia tradicional – voltada para a apresentação de conteúdo já dado, pelo professor, e sua assimilação acrítica, pelo aluno – e se constrói metodologicamente por um processo de perguntas e respostas. A problematização, então, é um dos passos didáticos propostos por Dewey e que substitui a ‘apresentação’ prevista na pedagogia tradicional, que não utilizava problemas”, diz.

Para Dewey,  conhecido válido é aquele que é útil. Os problemas, então, sempre partem da experiência cotidiana do aluno – e se restringem a ela. “A utilização de problemas pelo pragmatismo de Dewey, que orientou o movimento da Escola Nova no Brasil (na década de 1920), associa-se, então, a uma perspectiva que não aponta para a transformação social”, destaca Marise. A problematização, no entanto, também aparece na Pedagogia Libertadora, proposta por Paulo Freire, que tem caráter contra-hegemônico e coloca o lugar da atuação do indivíduo para a transformação da sua realidade. “Nesse caso, a problematização aparece como passo didático e seu objeto são as condições de opressão e o cotidiano do oprimido. A perspectiva é que o oprimido reconheça a sua condição e a transforme a partir daí”, aponta Marise.

Na corrente histórico-crítica, formulada por Dermeval Saviani, a problematização também aparece como um dos passos didáticos: “O Saviani tem como base o materialismo histórico e dialético, por isso entende que o real não se dá a conhecer de imediato. Para ser conhecido precisa ser analisado, perguntado, inquirido, questionado. No contexto da  proposta de Saviani, a problematização tem como objeto o sujeito das relações sociais de produção atualmente estabelecidas, mediadas pela propriedade privada”, explica Marise, que lembra que uma guinada neoconservadora aparece com a chamada Pedagogia das Competências. Essa proposta utiliza a problematização novamente com um caráter pragmático, assim como proposto por Dewey, mas mais fluido e individualizado. “Pela ideia de competências, os conhecimentos válidos são aqueles que servem a cada um individualmente. O objeto são novamente as experiências, cada vez mais imediatas e individualizadas”, explica.  Suzana Burnier destaca, ainda, que a problematização, quando utilizada nessa lógica, está submetida aos interesses do mercado. “O mercado de trabalho e seus atuais controladores quase que exclusivos, os empresários, querem, sim, profissionais que pensem, resolvam situações imprevistas, associem teoria e prática – desde que isso fique limitado aos problemas e ao aumento dos lucros da empresa. Se o trabalhador utiliza essa capacidade para perceber o quanto a empresa lucra com seu trabalho e o quão pouco ele recebe em troca, aí não interessa mais”, denuncia.

E o leque de correntes e metodologias que utilizam a problematização não para por aí. David Ausubel, pedagogo estadunidense, formulou nos anos 1960 a proposta de ‘aprendizagem significativa’. Preocupado especialmente com o processo de aprendizagem, Ausubel não chegou a propor uma corrente pedagógica – mas utilizou a ideia da problematização como um contraponto ao uso exclusivo da memorização para a apreensão de conteúdos pelos educandos.

Na saúde: teoria e prática

Marise Ramos destaca que a  ideia de uma Pedagogia da Problematização é muito presente na educação profissional em saúde. “Não devemos negar essa perspectiva rica e importante que é a problematização, mas há um equívoco quando se toma aquilo que é um passo didático por toda uma pedagogia. O desafio é perguntar: que tipo de problematização queremos, qual o objeto a ser problematizado, com que finalidade e com que concepção de sujeito e de conhecimento?”.

Uma das críticas que Marise Ramos, que também é autora do livro ‘Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde’, publicado pela EPSJV e pela Editora UFRJ, faz a essa concepção é a compreensão de que o sentido da teoria é justificar a prática. A partir dessa perspectiva, a experiência concreta não é apenas o ponto de partida, mas também de chegada. “Se o projeto da escola é orientado por uma concepção pragmática, isso se manifesta na utilização da problematização e na definição de seu objeto: vamos problematizar situações de trabalho que precisam ser alteradas e ponto final. Não há problematização da relação dessa situação de trabalho com a divisão do trabalho em saúde, disso com o modelo de assistência em saúde e assim por diante. Isso porque o objeto é a situação, e a teoria que serve, nessa lógica, é a teoria para aquela situação”, pondera, exemplificando com a formação em saúde. Apresentando um outro uso da problematização, a partir da perspectiva histórico-crítica, ela defende: “Se há problematização da situação de trabalho a partir das questões técnicas e também no âmbito da divisão social do trabalho, entende-se que a sociedade atual está vinculada ao modelo biomédico de atenção à saúde, o que está vinculado ao poderio das grandes corporações de medicamentos, que, por sua vez, está incorporado ao poder da classe dominante a ao fato de a classe dominante ocupar o Estado e produzir o convencimento da sociedade civil, da qual os trabalhadores são parte. Nessa perspectiva, o objeto a ser problematizado é a prática social, que não fica na sua generalidade, e tem lugar a finalidade de transformação social”.

Problemas e necessidades

Saviani lembra que os problemas são definidos por necessidades. Essas necessidades, por sua vez, têm uma dimensão concreta, experimentada pelos indivíduos, e outra mais subjetiva, que corresponde à tomada de consciência dos indivíduos a respeito de suas necessidades coletivas. “O problema envolve uma necessidade vital. Ele não é apenas aquilo que  não se sabe, mas sim o que não se sabe e se precisa saber. O problema é, então, uma questão que precisa ser resolvida e esse ‘precisar ser’ envolve a necessidade humana. Essa necessidade humana só se percebe nas relações com os outros humanos, no processo histórico e social.”. Ele concluiu exemplificando: “Só posso perceber essa sociedade como problemática em função da estrutura de classes que ela tem, na medida em que o que define o homem é a forma como produz sua existência. Essa sociedade é problemática porque se baseia na exploração do homem pelo homem. Para quem vê a sociedade a partir da perspectiva de quem é explorado por essa ordem social, o problema fundamental é o próprio tipo de sociedade, portanto a solução está na superação dessa forma social, na organização de outro tipo de sociedade, na abolição das classes e da exploração do homem pelo homem”.