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Pedagogia do Oprimido

Imagine uma sala de aula repleta de alunos em processo de alfabetização. No início da aula, o professor escreve no quadro negro a frase ‘Eva viu a uva’ e pede que os alunos a repitam. A ideia, explica o professor, é que a repetição do som do ‘ve’ na frase ajude os estudantes a associarem esse som com o símbolo usado no alfabeto latino para representá-lo, no caso, a letra V. Simples não? Mas será que a repetição de frases descontextualizadas é suficiente para, além de alfabetizar, iniciar o processo de formação de indivíduos críticos e pensantes, que, ao fim e ao cabo, é o objetivo último da educação?
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/01/2013 17h47 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Imagine uma sala de aula repleta de alunos em processo de alfabetização. No início da aula, o professor escreve no quadro negro a frase ‘Eva viu a uva’ e pede que os alunos a repitam. A ideia, explica o professor, é que a repetição do som do ‘ve’ na frase ajude os estudantes a associarem esse som com o símbolo usado no alfabeto latino para representá-lo, no caso, a letra V. Simples não? Mas será que a repetição de frases descontextualizadas é suficiente para, além de alfabetizar, iniciar o processo de formação de indivíduos críticos e pensantes, que, ao fim e ao cabo, é o objetivo último da educação? Para o educador Paulo Freire, a resposta é não. Para ele, “não basta saber ler mecanicamente que ‘Eva viu a uva’. É necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”, como explicou em uma fala no Simpósio Internacional para a Alfabetização, no Irã, em 1975, que foi reproduzida no livro ‘Historia das Ideias Pedagógicas’, de Moacir Gadotti, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Instituto Paulo Freire.

Essa é uma das preocupações da concepção de educação defendida por Paulo Freire ao longo de grande parte de sua produção acadêmica e literária, e que também está presente de forma marcada naquele que se tornou seu livro mais famoso: ‘Pedagogia do Oprimido’, lançado em 1968, mas proibido no Brasil até 1974. Nele, o autor defende uma concepção de educação que coloca os alunos como sujeitos de seu próprio aprendizado, contrapondo-se à visão hegemônica de educação – até então pouco problematizada entre os teóricos da pedagogia no Brasil - que coloca professores e alunos em uma relação hierárquica, em que os primeiros detêm autoridade sobre os últimos.

O livro foi escrito a partir da experiência de Paulo Freire na alfabetização de trabalhadores rurais no Nordeste brasileiro, e a pedagogia do oprimido é com frequência vista como um método de alfabetização de adultos. Para Anakeila Stauffer, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da rede municipal de Duque de Caxias (RJ), contudo, é possível traduzi-la também para as crianças em processo de alfabetização. “Eu acho que ela vale para todos os níveis de ensino. Às vezes as pessoas falam que não é possível aplicar isso com as crianças porque se tem ainda mais dificuldade em vê-las como sujeitos. Diz-se que precisamos moldar as crianças, que elas são os cidadãos do futuro. Então elas não são nada agora? A criança também tem possibilidade de reflexão”, opina.

Politização

Freire vê no processo educativo uma forma de as populações oprimidas social, econômica e culturalmente pelo modo de produção vigente – trabalhadores pobres, negros, camponeses, indígenas, por exemplo – tomarem consciência de sua própria condição de oprimidos ao mesmo tempo em que tomam ações concretas para transformar a realidade que os oprime. “A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”, escreve Paulo Freire. Para ele, essa libertação nunca se dará através de uma pedagogia elaborada pelas elites para o povo. “O próprio enunciado de Paulo Freire, pedagogia do oprimido, aponta para essa relação entre experiências de opressão, entre sujeitos que padecem e reagem à opressão e à radicalidade deformadora-formadora desses processos sociais. Não mais uma pedagogia reconceituada, entendida e praticada para educar, politizar e conscientizar os povos oprimidos”, escreve Miguel Arroyo, no verbete ‘Pedagogia do Oprimido’ do Dicionário da Educação do Campo, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e pela Expressão Popular.

Em entrevista à Poli, Arroyo afirma que, em sua opinião, o aspecto mais importante da pedagogia do oprimido é seu caráter politizador. “Ela afirma que o povo não tem que ser visto como inferior, inculto. O povo tem saberes, tem tradições e tem sua própria pedagogia. Ver o povo como oprimido politiza a relação e desnaturaliza a visão de que são pobres por natureza, dando centralidade às relações de poder e de opressão que produziram os oprimidos”, explica. Segundo Arroyo, a pedagogia que Freire aponta tem como foco todos aqueles que se viram desprovidos, de uma forma ou de outra, das condições materiais e simbólicas de viver de maneira digna. “É a pedagogia dos movimentos sociais, não apenas de movimentos de resistência, mas também de libertação: sem-teto, sem-escola, sem-terra... Todos esses reivindicam libertação da opressão. Aprender-se ‘sem’: essa é uma pedagogia muito rica”, diz.

Segundo Dermeval Saviani, professor-emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a grande inovação de Freire foi traduzir movimentos educacionais originalmente criados para as elites — como, por exemplo, a Escola Nova, na França — em uma pedagogia voltada para a libertação da classe trabalhadora. Essa associação, que Saviani mostrou primeiro no livro ‘Escola e democracia’, foi, no entanto, entendida durante muito tempo como uma crítica a Paulo Freire, já que o movimento escolanovista é classificado no mesmo livro como uma pedagogia não-crítica. Mas na obra ‘História das ideias pedagógicas no Brasil’, Saviani não deixa dúvidas: ”É irrecusável o reconhecimento de sua coerência na luta pela educação dos deserdados e oprimidos que no inicio do século 21, no contexto da ‘globalização neoliberal’, compõem a massa crescente dos excluídos. Por isso seu nome permanecerá como referência de uma pedagogia crítica e de esquerda”.

Educação bancária

O oposto da pedagogia que ele defende é chamado por Freire de educação “bancária”, para a qual a educação consiste na transferência de conhecimentos, que são “depositados” pelos professores e “arquivados” pelos alunos. Para Anakeila, essa ainda é a educação hegemônica no Brasil. “Em todos os programas de educação sendo implementados pelo governo, tem-se uma série de conteúdos a serem dados, o material já vem pronto e o professor não precisa pensar porque já vem dito para ele o que deve ensinar para a sua turma, independentemente da realidade da comunidade em que a escola está inserida. Os provões, sistemas de avaliações cada vez mais padronizados, beneficiam isso. A lógica da educação hoje é a da massificação”.

No caso específico da educação profissional em saúde, diz Anakeila, a concepção bancária se expressa na ênfase dada ao ensino da técnica. “É claro que há conteúdos que precisam ser dados. Ensinar a aplicar uma injeção, por exemplo. Mas o que acontece na educação técnica, e não só na saúde, é que isso vem desprovido de outras análises. É muito comum você ter na saúde um monte de técnicas que têm que ser ensinadas, mas totalmente descoladas de uma reflexão sobre os determinantes sociais da saúde, sobre o SUS, sobre o fato de a universalização dos serviços de saúde não ser para todos, por exemplo. Ter uma educação mais próxima de Paulo Freire não é esvaziar os conteúdos, mas dar outra tonalidade ao que se discute”, aponta.

Conhecimento formal X Conhecimento popular

No entanto, uma das críticas que recai sobre Paulo Freire é exatamente ter negligenciado o papel da escola e do conhecimento formal em prol do conhecimento tácito dos educandos. Pensando especificamente no caso dos oprimidos, uma questão levantada por críticos da concepção de educação defendida por Freire é: supervalorizar o conhecimento dos alunos e, consequentemente, desvalorizar o conhecimento formal, não seria um fator limitante do potencial de aprendizado daqueles que ele chama de oprimidos? Essa limitação não traria entraves para a superação de sua condição subalterna, frente às elites, que ao terem mais contato com o conhecimento formal e cientifico têm com isso as ferramentas que tornam possível a manutenção de seus privilégios? “Sem dúvida”, responde Dermeval Saviani, complementando: “O fato de ele tomar a cultura popular como ponto de partida é positivo, mas devemos frisar o que é específico da educação escolar. A escola tem a ver com o domínio da cultura letrada e não com o domínio da cultura popular, com o saber sistematizado e não com os conhecimentos espontâneos. Se a escola começa a privilegiar aspectos do aprendizado que não dependem dela, sua razão de ser desaparece”, aponta. Contudo, continua Saviani, isso não quer dizer que a cultura letrada tenha primazia sobre a cultura popular. “Na verdade a cultura popular é que é originária, e é a partir dela que foram sistematizados os conhecimentos. Mas na medida em que a população não tem acesso a essas novas formas, ela fica em posição subordinada. Daí a importância da escola e das formas elaboradas de conhecimento para a população”, ressalta.

Já Miguel Arroyo acredita que essa é uma crítica infundada. “Freire parte do pressuposto de que os processos mais brutais de produção de oprimidos não passaram pela escola, e consequentemente, ela não vai ter centralidade para libertá-los da opressão. Como o seu foco não era a ignorância, e sim os processos históricos, políticos, econômicos e pedagógicos de opressão, ele não colocava centralidade na escola. A ideia de Freire é dizer que a escola estava reproduzindo os mesmos processos, ele não ignora a escola, mas diz que é preciso ter cuidado ao pensar nela como salvadora de um povo ignorante”, frisa. Anakeila acha que essa crítica não leva em conta o contexto em que Freire escreveu. “Critica-se Paulo Freire com os olhos de hoje, mas ele escreveu em um contexto específico, pensando naqueles adultos que não conseguiram se alfabetizar na escola, em uma época em que a escola pública não era universalizada, em que era a classe média quem a frequentava”, diz ela, que lamenta que Freire seja pouco lido atualmente, principalmente a partir de mudanças como o esvaziamento dos sindicatos como espaços de luta política, o êxodo rural e a mecanização do campo, por exemplo. “A atualidade da pedagogia do oprimido é total, e seu estudo vai ficando mais urgente à medida em que os trabalhadores vão perdendo sua consciência de classe”, afirma Anakeila, completando: “Então, desqualifica-se Paulo Freire por vários motivos: primeiro porque ele escreveu durante a ditadura e hoje não temos mais ditadura. Mas temos a ditadura do mercado, matamos pobres a torto e à direito, criminalizamos os movimentos sociais. Ou então não se lê Paulo Freire porque ele era cristão, ou então porque ele era marxista. E o que é lido hoje? O que fala de competências, de mercado, de ranqueamento de escolas. Porque se formos ler Paulo Freire, vamos ver que tudo o que ele falava na década de 1960 acontece em 2012”, critica. No livro ‘Pensamento Pedagógico Brasileiro’, Moacir Gadotti aponta caminhos para o uso atual da obra de Freire: “Ser fiel a Paulo Freire significa, antes de mais nada, reinventá-lo e reinventar-se como ele. Nisto, aliás, consiste a superação na dialética: não é nem a cópia nem a negação do passado, do caminho já percorrido pelos outros. É a sua transformação e, ao mesmo tempo, a conservação do que há de fundamental e original nele, e a elaboração de uma nova síntese qualitativa”.