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Precariado

Salários mais baixos, ausência de direitos trabalhistas, instabilidade de vínculo e de renda, jornadas laborais mais longas e dificuldade de representação sindical, dentre outros problemas. Para nomear e ajudar a compreender essa realidade, autores propõem o conceito de “precariado”.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 18/03/2024 09h39 - Atualizado em 21/03/2024 15h21

No momento em que esta matéria estava sendo produzida, os dados mais recentes sobre o mercado de trabalho no Brasil referiam-se ao último trimestre de 2023. E as notícias pareciam promissoras: de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país teve, naquele período, a menor taxa de desemprego desde fevereiro de 2015. Mas um olhar mais detalhado mostra que o que as manchetes dos jornais anunciavam como ‘emprego’ envolve um conjunto muito variado de vínculos e condições de trabalho. Para ficar apenas em um exemplo, ainda segundo o IBGE, das 853 mil pessoas em idade de trabalhar que encontraram uma ocupação naqueles três meses finais do ano passado, provocando essa melhora nos indicadores do país, 338 mil não tinham carteira assinada, ou seja, retomaram uma atividade remunerada, mas na informalidade ou trabalhando por conta própria.

Essa diferença – que estabelece uma linha divisória entre quem tem ou não acesso a direitos como férias e 13º salário – é uma das muitas que marcam o mercado de trabalho brasileiro. Mas não é a única. A mesma edição da Pnad Contínua mostra, por exemplo, que até quando têm carteira assinada, as trabalhadoras domésticas ganham uma renda mensal quase R$ 500 menor do que os trabalhadores ‘sem carteira’ que atuam em outras áreas na iniciativa privada. Já os quase 75% de empregados domésticos sem vínculo empregatício tinham rendimento médio de R$ 992 no último trimestre de 2023, o que equivale a quase um terço do que ganham os empregados formais do setor privado. De um modo geral, também têm salários bem menores – e instáveis – os trabalhadores que têm vínculo formal, mas com contrato intermitente – modalidade aprovada pela Reforma Trabalhista de 2017, que vem crescendo no país.  Tudo isso sem contar o exemplo ainda mais extremo, dos trabalhadores em condições análogas à escravidão – só em 2023, mais de 3 mil pessoas nessa situação foram resgatadas no país.

O que esses e muitos outros dados permitem perceber é que no interior da classe trabalhadora existe uma espécie de ‘subclasse’, que vive com salários mais baixos, sem direitos trabalhistas, com instabilidade de vínculo e renda, jornadas laborais mais longas e dificuldade de ser representada por sindicatos, entre outros problemas. É para nomear e ajudar a compreender essa realidade que alguns autores têm proposto o conceito de “precariado”. “São aqueles trabalhadores que não conseguem se inserir de forma permanente no mercado de trabalho, que têm trajetórias intermitentes na formalidade e na informalidade. Aqueles que, no caso brasileiro, ganham até 1,5 salário mínimo individual ou cinco salários mínimos como renda média familiar mensal”, ilustra o sociólogo Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de uma trilogia de livros sobre o tema.

Mas ele ressalta que a precariedade que marca essa condição não diz respeito apenas ao espaço de trabalho. “Em qualquer comunidade onde vivem famílias trabalhadoras que não recebem investimento do Estado, não têm acesso, por exemplo, a saneamento básico, saúde, qualquer tipo de serviço público, isso tudo compõe um quadro de reprodução subnormal dessas famílias trabalhadoras que reforça e acrescenta uma camada à definição desse precariado”, explica, ressaltando que aqueles que sofrem uma maior “exploração econômica nos locais de trabalho”, em geral estão submetidos também a uma “espoliação de direitos” sociais e de cidadania. “A segregação espacial, o deslocamento territorial nas cidades e o assédio policial também são consequência e causa disso, ou seja, estão entrelaçados com essas dinâmicas e fazem parte da expropriação política [do precariado]”, argumenta.

Proletariado + precário

É quase intuitivo perceber que o termo ‘precariado’ é formado pela junção das palavras ‘proletariado’ e ‘precário’. A questão é entender o resultado desse somatório. Apesar de haver algum debate acadêmico sobre se o conceito de proletariado vale para qualquer atividade e atribuição remunerada ou apenas aquelas ligadas diretamente à produção, em geral o termo é tido como sinônimo de classe trabalhadora ou, mais precisamente, “aqueles que são obrigados a vender sua força de trabalho”, como lembra Braga. Nessa abordagem mais ampla, o leque envolve desde os assalariados da economia formal até os informais, dos setores público e privado, com ou sem qualificação, e mesmo os trabalhadores por conta própria que mantêm “pequenos negócios”. “São todos aqueles indivíduos que vivem do seu trabalho, quer seja alienando no mercado de trabalho, quer seja trabalhando para si”, resume o professor da USP. Para o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Giovanni Alves, ‘proletariado’ pode, inclusive, ser entendido como uma “condição existencial”. “Você não precisa estar empregado, ter um emprego, estar explorado para pertencer ao proletariado. Você pode ser, inclusive, um estudante ou um trabalhador por conta própria”, diz. Já o adjetivo ‘precário’ caracteriza, nesse caso, as ocupações sem direitos, instáveis, mal remuneradas e com todos esses outros problemas que você já leu nas linhas anteriores. E a soma dos dois? “O precariado, para simplificar, seria a franja mais precária desse proletariado, que pendula de maneira mais ou menos permanente entre o aprofundamento da exploração econômica e a ampliação da expropriação política”, explica Braga.

Embora tenha se disseminado no Brasil nos últimos 20 anos, o conceito de precariado não é novo – e o fenômeno que ele nomeia, menos ainda. Não há propriamente um consenso sobre a origem do termo, mas as explicações mais correntes associam seus primeiros usos a movimentos sociais italianos e franceses nos anos 1980. No debate teórico, internacionalmente, são duas as referências principais desse conceito. Uma delas é o sociólogo Robert Castel que, na década de 1990, começou a descrever as mudanças nas condições de trabalho que ele observava na França, com foco nas consequências da crise do “emprego clássico” – aquele que garantia renda, direitos e proteção social – que tinha prevalecido durante a “sociedade salarial”, especialmente na Europa. Na verdade, o que o sociólogo francês alertava era para uma tendência de generalização das condições precárias de trabalho.

O outro nome diretamente associado a esse debate é o do economista britânico Guy Standing, que, nos anos 2010, lançou um livro intitulado ‘O precariado: a nova classe perigosa’. A caracterização que o pesquisador faz das condições de trabalho dessa parcela da sociedade não difere muito de tudo que você já leu nesta matéria, mas ele acrescenta alguns aspectos novos – e polêmicos – na discussão. O principal deles, que difere da percepção dos dois entrevistados desta reportagem, é a compreensão de que o precariado constitui uma nova classe social, portanto diferente do antigo proletariado. Essa pode parecer uma diferença menor ou puramente teórica, mas quem entra na polêmica garante que ela tem implicações práticas, sobretudo porque separa, como se tivessem lados e interesses distintos, segmentos sociais que deveriam lutar juntos pela melhoria das condições de vida. Uma evidência, lembrada por Braga, é o fato de as mobilizações de precarizados que eclodiram no mundo todo desde os anos 2010 reivindicarem os mesmos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários pelos quais a maior parte da classe trabalhadora luta há muito tempo. “É uma diferença analítica, mas é, sobretudo, uma diferença política”, defende. E resume: “Aquilo que beneficia a classe trabalhadora no sentido mais geral também beneficia esses setores mais precarizados”.

Tudo isso tem diretamente a ver com outra ‘polêmica’ que a concepção de precariado de Guy Standing promoveu, ao caracterizar esses segmentos como uma “classe perigosa”. “Ele considera que, por conta da política do ressentimento em relação aos setores protegidos, o precariado é uma classe potencialmente próxima do discurso neopopulista de extrema direita”, explica Ruy Braga, que contesta essa tese no seu novo livro ‘A angústia do precariado’, baseado numa pesquisa desenvolvida em cidades pequenas dos Estados Unidos. “A família tradicional está sendo esgarçada pela precariedade laboral, as pessoas estão tendo que se deslocar para poder trabalhar, encontrar emprego etc. As comunidades onde esses trabalhadores vivem estão se esfacelando, numa profunda crise sociorreprodutiva. Isso produz um medo e uma angústia muito grande nessas famílias”, analisa, referindo-se à realidade norte-americana. E na ausência da proteção do Estado, diz, quem acolhe essas famílias, em geral, são as igrejas, “com seus valores conservadores”. “Isso [o voto conservador] tem a ver com a política, não com uma espécie de guinada radical racista, xenofóbica, ressentida e irracional”, argumenta.

Um ‘outro’ precariado

Essas variadas percepções sobre esses segmentos mais desprotegidos da população apontam divergências também quanto à origem do precariado como um fenômeno social. Embora a obra de Robert Castel que consagrou esse neologismo tenha alertado para uma mudança na forma e no papel do emprego que remetia à década de 1970, outros autores, inclusive Braga, alegam que essa parte mais pauperizada, vulnerável e sem direitos da classe trabalhadora existe desde as origens do capitalismo. “Proletariado precarizado existe pelo menos desde o século 19”, concorda Giovanni Alves.

Mas foi exatamente por entender que essa realidade não era novidade que o professor da Unesp deslocou seu interesse de estudos para um outro recorte das mudanças relativas ao mundo do trabalho, segundo ele mais contemporâneo. O que ele tenta compreender é um processo mais específico de precarização, próprio do “capitalismo global” e coerente com um momento de “crise estrutural” do sistema: a ampliação de uma camada de jovens adultos que, apesar do alto nível de escolaridade, tem  uma inserção precária no mundo do trabalho. Esses sim são, na concepção de Alves, os integrantes do ‘precariado’, um fenômeno que, diferente daquele descrito até agora, remeteria aos anos 1980, com expansão na década seguinte no caso do Brasil. “A educação se tornou um valor fundamental para a classe trabalhadora, principalmente para o subproletariado. Os pobres entram na universidade, o próprio governo incentiva que você tenha um título, tenha uma carreira profissional”, contextualiza, realçando o quanto a juventude passou a acreditar “nessa ilusão da educação”. O resultado, segundo Alves, são gerações de “jovens precários com alto nível de escolaridade, com título de doutor, falando três idiomas, mas que não conseguem se inserir no mundo do consumo e do trabalho com os direitos que os pais tinham”. 

Trata-se, portanto, de um conceito distinto, mais restrito e delimitado, em que a precariedade se define a partir de duas determinações principais: idade e escolaridade. As consequências são várias e visíveis, segundo o professor, e vão desde questões mais pontuais, como a dificuldade dessa geração de sair da casa dos pais, até uma mudança na “subjetividade” desses jovens. “O precariado é uma verdadeira usina de frustração”, lamenta.

 

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