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Saúde Coletiva

No dia-a-dia, elas são tidas quase como sinônimos. Mas, dependendo de qual expressão use, você pode estar se posicionando de um lado ou de outro de uma longa discussão que já dura 30 anos. Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Os debates mostram que as diferenças vão além do adjetivo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/04/2007 16h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

No dia-a-dia, elas são tidas quase como sinônimos. Mas, dependendo de qual expressão use, você pode estar se posicionando de um lado ou de outro de uma longa discussão que já dura 30 anos. Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Os debates mostram que as diferenças vão além do adjetivo.

A Saúde Pública nasce “com a dupla missão de combater e prevenir doenças coletivas, ou mesmo individuais, que, por contágio ou transmissão, ameacem a organização social e a ordem pública”. Quem explica é Madel Luz, pesquisadora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva) no verbete ‘Saúde” do Dicionário de Educação Profissional em Saúde.

Jairnilson Paim, pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), completa: “A Saúde Pública articulava-se a um formato de Estado liberal cuja intervenção na saúde justificava-se apenas nas situações em que o indivíduo e a iniciativa privada não fossem capazes de enfrentar, como era o caso das epidemias”, conta. Não é à toa que a Saúde Pública tem uma forte vinculação com a Epidemiologia.

A Saúde Coletiva, ao contrário, nasce buscando expressar “uma ampla proposta de reforma social que relacionava a saúde às condições de vida e às formas de organização da sociedade”, como explica Jairnilson, que completa: “Desse modo, a saúde passa a ser entendida como um direito social, cabendo ao Estado o dever de garanti-lo”. Se, ao ler essa definição, você se lembrou dos ideais da Reforma Sanitária Brasileira, saiba que não se trata mesmo de mera coincidência: segundo o pesquisador, foi a Saúde Coletiva que contribuiu para a mobilização que mais tarde geraria o SUS produzindo e socializando conhecimento para os movimentos sociais.

Mas vamos à História. De acordo com Jairnilson, a ideia de Saúde Pública é marcada, desde a origem, por interesses econômicos e político-ideológicos do capitalismo, no qual se desenvolveu. “Ela emerge, como movimento ideológico e reforma de saúde, em meados do século XIX, especialmente na Inglaterra, a partir do Relatório Chadwick, e nos Estados Unidos, através do Relatório Shattuck. Em seguida, vai se institucionalizando mediante agências governamentais voltadas para o controle de doenças transmissíveis e, na passagem para o século XX, reproduz-se em escolas, como as de Liverpool, Londres e John Hopkins”, explica. Já a Saúde Coletiva, segundo ele, está relacionada à proposta da Medicina Social que, por sua vez, nasce, no século XIX, inspirada nas lutas sociais da França e da Alemanha durante a consolidação do modo de produção capitalista. “Portanto, a Saúde Coletiva, tal como a Medicina Social, nasce dos movimentos e lutas sociais do seu tempo e não a partir do Estado ou do interesse das classes dominantes”, conclui. E contextualiza: “Na América Latina, isso se confunde com as lutas pela redemocratização dos países que viveram sob ditaduras nas décadas de 60 a 80.

A democratização da Saúde, concebida e teorizada pela Saúde Coletiva emergente, implicava a democratização do Estado e dos seus aparelhos, além da sociedade”. Madel destaca ainda o papel das organizações internacionais, como OMS e OPAS, na proposição de novas concepções de saúde, que “ampliariam” o campo da Saúde Pública, aproximando-o da Saúde Coletiva. “É uma definição que se propõe a superar, em termos de concepção, a visão mecânica do homem como conjunto de partes, dominante nas especialidades médicas, buscando reassociar as dimensões em que se insere a vida humana: social, biológica e psicológica”, diz o verbete.

Há ainda, segundo Jairnilson, uma ‘corrente’ chamada Nova Saúde Pública, que nasceu nos Estados Unidos no final da década de 80, recuperando alguns princípios da Declaração de Alma-Ata — como a defesa da saúde como direito humano — e se propõe a atualizar a “clássica definição de Saúde Pública”. “Nova Saúde Pública conforma aquilo que Sergio Arouca denominava novas adjetivações para expressões ou substantivos desgastados. Decorre do reconhecimento da crise da Saúde Pública institucionalizada nos países do norte em tempos de globalização, cortes de gastos públicos e propostas de redução da ação estatal informados pela ideologia do neoliberalismo”, explica o pesquisador. E opina: “Na minha avaliação, os fundamentos dessa proposta estão muito aquém do desenvolvimento teórico-conceitual da Saúde Coletiva latino-americana”.

Saúde e Estado

Jairnilson Paim defende que a Saúde Coletiva, principalmente como campo científico, não pode se permitir ser “colonizada” pelo Estado. Mas se um dos possíveis sinônimos para o adjetivo ‘público’ é estatal, como fica a relação com o Estado quando se muda a concepção para a Saúde Coletiva? Antes de tudo, o pesquisador esclarece: “Não se trata de uma posição anarquista de destruir o Estado nem de uma posição liberal visando reduzi-lo, mas sim de uma análise inspirada no marxismo, que tenta examinar o Estado como ele é não a partir de nossas crenças”. Fazendo referência ao caso brasileiro, ele lembra que a Reforma Sanitária não nasceu do Estado e sim da sociedade civil. “Ela conquistou o Estado sobretudo a partir da Assembleia Constituinte, conseguindo inscrever seus princípios e macroposições no texto constitucional e, posteriormente, na legislação ordinária”, explica. E continua: “No processo constituinte, o movimento da Reforma Sanitária apostou, juntamente com outras forças da esquerda, numa reforma democrática do Estado, justamente porque o Estado brasileiro — capitalista, privatizado, autoritário, burocrático e patrimonialista — não seria a melhor via de assegurar o direito à saúde”.

Não ser colonizada, explica o pesquisador, significa, sobretudo, não correr o risco de se distanciar dos seus compromissos históricos com o povo. “E como o Estado expressa uma relação de forças, defendo o fortalecimento dos movimentos e sujeitos sociais comprometidos com a liberdade, a emancipação e a democracia para que possam contribuir, a partir de suas lutas, com uma reforma política do Estado brasileiro”, aposta.

Saúde Coletiva e Formação

Se não encontrou muita coisa a que se opor na concepção de Saúde Coletiva, você, a essa altura, deve estar se perguntando onde essa ‘briga’ com a ideia de Saúde Pública se manifesta. Pois uma das arenas mais atuais são exatamente os campos da formação e da produção de conhecimento. E a luta se dá, principalmente, em torno dos critérios de avaliação dos cursos — especialmente os de pós-graduação — e dos projetos de pesquisa, já que o currículo e a própria área de atuação dos professores pode variar dependendo do foco maior ou menor na Saúde Pública ou na Saúde Coletiva — até porque esta última se propõe a ser necessariamente transdisciplinar.

Outro ponto de polêmica — e que envolve muitas questões além da defesa dos princípios de um ou outro adjetivo — é que alguns pesquisadores, principalmente do ISC/UFBA, defendem a criação de um curso de nível superior em Saúde Coletiva. Isso significa que quem quiser atuar nessa área, em vez de se tornar enfermeiro, por exemplo, e depois se especializar, poderia entrar direto para uma faculdade de Saúde Coletiva. “Temos que responder ao desafio de qualificar sujeitos na Saúde Coletiva na própria graduação, em vez de retardar esse processo de formação para a pós-graduação”, argumenta Jairnilson. Mas há muita gente contra essa proposta...

De qualquer forma, para os defensores da Saúde Coletiva, as mudanças no modelo de atenção dependem diretamente da formação dos trabalhadores, em todos os níveis. E isso, segundo o pesquisador, requer que se acionem os saberes e práticas do campo da Saúde Coletiva para compor os currículos e os espaços de aprendizagem. No que isso deve resultar? Ele responde: “Uma escola vinculada à Saúde Coletiva deveria contribuir com a reprodução ampliada dos seus valores, apoiando a constituição de sujeitos com algumas das seguintes características: capacidade de análise do contexto em relação às práticas que realiza; compreensão da organização e gestão do processo de trabalho em saúde para reduzir a alienação; exercício de um agir comunicativo; ‘advocacy’ ou habilidade para proceder denúncia de situações e convencimento de interlocutores; tolerância e diálogo em situações conflitivas; atenção permanente aos problemas e necessidades de saúde; senso crítico quanto à efetividade e ética das intervenções propostas ou realizadas; e permanente questionamento sobre o significado e o sentido do trabalho e dos projetos de vida das pessoas e das comunidades”.