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Entrevista: 
Luiz Augusto Facchini

'A Declaração de Alma-Ata se revestiu de uma grande relevância em vários contextos'

Em setembro de 1978, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, expressava a “necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo”. A Declaração de Alma Ata – documento síntese desse encontro – afirmava a partir de dez pontos que os cuidados primários de saúde precisavam ser desenvolvidos e aplicados em todo o mundo com urgência, particularmente nos países em desenvolvimento. Naquele momento, conforme defesa feita pela própria OMS, a saúde era entendida como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”. Por conta dos 40 anos de Alma Ata, completados neste mês de setembro de 2018, o Portal EPSJV/Fiocruz ouviu o professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador da Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde (Rede APS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Luiz Augusto Facchini, que fez um balanço das quatro décadas do documento que foi um marco para o mundo. Nesta entrevista, Facchini fala ainda sobre a Conferência Global da OMS sobre Atenção Primária em Saúde, marcada para outubro em Astana, no Cazaquistão, quando será apresentada uma nova Declaração sobre Atenção Primária à Saúde, analisando até onde os princípios apresentados pelo documento se aproximam ou se distanciam do texto de 1978.
Portal EPSJV/Fiocruz - EPSJV/Fiocruz | 14/09/2018 17h17 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Por que Alma Ata foi um marco para o mundo? Quais foram as principais contribuições de Alma Ata para a concepção de saúde e a organização de sistemas de saúde no mundo?

A declaração de Alma-Ata se revestiu de uma relevância muito importante em vários contextos, âmbitos e dimensões. Anteriormente à Alma-Ata, existiam experiências isoladas de atenção primária à saúde que estavam muito vinculadas a duas ordens de desenvolvimento. Nos sistemas de saúde que estavam se organizando - especialmente no sistema de saúde inglês, por exemplo -, destacavam-se algumas dessas experiências, mas a atenção primária não era o elemento central, pelo menos não da maneira como a gente compreende hoje a atenção primária. Entre 1959 e 60, tivemos a Revolução Cubana. Foi quando, de fato, se pensou um sistema com serviços de saúde organizados próximos ao local de moradia, das residências das pessoas e orientado para o atendimento. Havia um movimento no mundo de iniciativas nacionais e em contextos particulares. Mas não havia definição de um modelo de atenção primária à saúde. Teremos referências do início do século 20, em 1920, com o Relatório Dawson, na Inglaterra. Ali, o médico da família britânica Lord Dawson já havia feito referência a uma organização de sistemas de saúde baseada em uma rede capilarizada de serviços que começavam com a atenção primária. A Inglaterra deixou isso de lado, por conta de enfrentamentos políticos, e essa ideia de atenção primária se perdeu. Alma-Ata foi, então, o primeiro destaque dado à atenção primária em termos globais, recuperando experiências e reflexões teóricas. Muitas dessas experiências foram desenvolvidas, pontualmente, em vários países da África, na Ásia e, até mesmo, na América Latina, com a participação de profissionais de saúde e, particularmente, de médicos vinculados às igrejas católicas e protestantes, bastante envolvidas por ocasião da Reforma Luterana. Havia uma concepção de missionário, de dedicação religiosa filantrópica em relação a essas iniciativas pontuais de atenção primária à saúde ao longo de todo século 20. Quando então ocorre a Conferência de Alma-Ata, por uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde em parceria com a Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], a proposta de atenção primária ganha destaque e relevância, pois explicita um modelo altamente abrangente, uma ideia de saúde para todos. Portanto, conforme anunciado em sua chamada, Alma Ata define a atenção primária como estratégia a ser ofertada a toda a população. Traz a ideia de ideia de universalidade, e propõe isso no contexto de um sistema de saúde. A noção de sistema de saúde é articulada nesse encontro. Alma Ata defende um modelo que em inglês chamamos de compliance, ou seja, um modelo de integralidade, que abrange o conjunto das necessidades de saúde da população. O documento fala em articulações intersetoriais, fortalecendo as ideias de nutrição e alimentação, como também de participação comunitária popular e de esforços de educação. Alma Ata é uma recomendação de dois organismos internacionais, OMS e Unicef, e assinada por uma grande quantidade de países que concordavam com a proposta.

Havia consenso em torno dos marcos referenciais da declaração de Alma Ata? Se havia divergências, quais eram as principais e quem representava cada posição?

Assim que Alma Ata foi apresentada, começou o debate internacional em torno da sua implementação. Ela não foi censurada em nenhum momento, mas foi contraposta. Houve imediatamente uma contraposição àquilo que tinha sido aprovado em Alma-Ata por iniciativa da OMS e da Unicef. Em 1980, depois de dois anos do encontro, o Banco Mundial e a própria Unicef fizeram uma proposta alternativa à Alma-Ata, sob os argumentos de que faltaria dinheiro, vontade política e infraestrutura. Então, apresentaram um pacote de APS seletiva, com recortes mais restritos: a Estratégia GOBI (sigla em inglês para indicar monitoração do crescimento, Reidratação Oral, Aleitamento Materno e Imunizações). Era uma APS centrada fundamentalmente na atenção à saúde da criança e da mulher. O foco na reidratação oral, por exemplo, se dava porque na época a diarreia era uma das causas mais impressionantes de mortalidade de crianças no período pós-neonatal. A ênfase no aleitamento materno era estratégica para garantir melhores condições de nutrição e imunidade às crianças. E o foco na imunização era uma forma de expandir toda a questão vinculada com a proteção vacinal para doenças da época, como sarampo, difteria, tétano, tuberculose, poliomielite etc. Havia outras recomendações genéricas: educação das mulheres, nascimento das crianças, suplementação alimentar etc. A Estratégia GOBI, de uma APS seletiva, foi a primeira na contraposição à Alma Ata. E boa parte dos países passaram a seguir as receitas do Banco Mundial, não apenas desenvolvendo a lógica de uma atenção primária seletiva e recortada, com foco na saúde materno-infantil, como também passando a pensar sistemas de saúde com os mesmos recortes.

No Brasil, havia uma ênfase diferente dessa, mesmo antes do Sistema Único de Saúde [SUS]. O movimento da Reforma Sanitária brasileira já propunha a ideia de um sistema universal de saúde, de uma APS forte, abrangente e integral, e isso foi se materializando com experiências que iam surgindo em vários lugares: no interior de Minas Gerais, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em muitos lugares do Nordeste, enfim, em 1978, quando a Alma-Ata define a sua proposta, já havia várias experiências coincidentes com essa leitura em desenvolvimento no Brasil. Eu me lembro de que o Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas foi criado no ano de 1976, dois anos antes de Alma-Ata. E nessa oportunidade já foi criada junto ao departamento uma unidade básica de saúde, com características de uma atenção primária universal. Todo mundo podia ser atendido lá, com território definido, um atendimento gratuito, porque era oferecido por professores e alunos da universidade. Quando o SUS foi constituído formalmente em 1988, portanto dez anos depois de Alma-Ata, essa noção de que teríamos atenção primária universal e integral já estava totalmente sedimentada. Nós fomos uma experiência dissonante desse contexto. Conseguimos construir um sistema universal, financiado com recursos pagos pela população através dos seus impostos, integral desde a vacina até os transplantes e todas as ações de saúde, e ficamos ao longo de todo esse tempo relativamente protegidos desses pacotes de serviços como os oferecidos pelo Banco Mundial.

O SUS completa 30 anos quando a declaração de Alma Ata completa 40. Qual a influência de Alma Ata para a construção de sistemas universais de saúde, como o do Brasil?

Com certeza, ela dá um respaldo, oferece uma proposta de modelo, define características fundamentais para o desenvolvimento da expansão dos sistemas universais.

Alma Ata trouxe alguma referência para se pensar a formação e a gestão do trabalho nos sistemas de saúde?

Ela foi inspiradora em todos os sentidos, pela sua grande abrangência, especialmente para países que não tinham nada. Para fazer atenção primária à saúde, temos que formar profissionais e equipes. Então, nas universidades, os currículos de atenção primária à saúde começaram a se desenvolver. Os departamentos de Medicina Social dessas universidades, com Alma Ata, começaram a desenvolver conteúdos relativos às ações de atendimento primário à saúde e de formação dos alunos. Portarias, diretrizes e normas passaram a ser implementadas. As políticas de saúde como entendemos fizeram parte de um contexto de estímulos para a educação, a pesquisa, a prestação de serviços, bem como para a organização de sistema. Alma-Ata foi inspiradora para a Estratégia Saúde da Família, que em boa medida pode ser considerada uma das experiências mais bem sucedidas. No Brasil, a Reforma Sanitária partiu de dentro da academia, de profissionais de saúde vinculados aos departamentos de Medicina Preventiva, Enfermagem e todas as áreas que estavam se mobilizando por um sistema público universal de saúde. A produção de conhecimento e a formação profissional para o SUS e para a atenção primária sempre tiveram uma vinculação com as universidades e a academia, e isso se aprofundou nos últimos anos com a criação da UNA-SUS [Universidade Aberta do SUS], que são universidades que formam uma rede para a formação profissional em saúde.

Cobertura de todas as necessidades de saúde dos indivíduos passa a ser um debate sobre o que cada país tem capacidade de oferecer


Em outubro deste ano, 40 anos depois, haverá uma conferência global em Astana, Cazaquistão, com o objetivo de apresentar uma nova declaração sobre Atenção Primária à Saúde. Será uma superação de Alma Ata? A declaração de Alma Ata precisa ser renovada, atualizada? 

Depois de Alma-Ata, nunca mais a Organização Mundial de Saúde conseguiu fazer uma formulação de defesa dos direitos à saúde que tivesse a abrangência do documento de 1978, que tivesse essa característica exemplar para os países, com ênfase na atenção primária. Do ponto de vista das políticas globais, a hegemonia passa a ser do Banco Mundial, e a Organização Mundial da Saúde acabou se fragilizando, ficando à margem desse processo.

Algo que tem sido apontado como novidade nesta conferência em relação aos princípios defendidos em Alma Ata é a defesa da cobertura universal de saúde. Explica para nós o que é a cobertura universal de saúde, qual a diferença entre essa perspectiva e a defesa de sistemas universais. Essa referência (da cobertura universal) é, de fato, distinta do que foi defendido em Alma Ata? Qual a origem dessa perspectiva? E a que interesses ela atende?

Eu participei de várias assembleias mundiais de saúde nos últimos anos. Isso foi uma tentativa da Organização Mundial de Saúde de retomar um protagonismo nas recomendações de saúde referentes àquela antiga noção de saúde para todos no ano 2000, que garantia acesso da população aos serviços de saúde, tendo a atenção primária como elemento central crucial. Só que, infelizmente, essa proposta de cobertura universal foi ganhando outras configurações. Por que essa proposta de cobertura universal da OMS fica muito aquém de Alma-Ata? Porque quando se fala em cobertura universal de saúde, não se fala em cobertura integral de saúde. A cobertura de todas as necessidades de saúde dos indivíduos passa a ser um debate sobre o que cada país tem capacidade de oferecer. Por exemplo, o sistema de saúde inglês oferece tudo para todos, bem como o sistema canadense. A mesma ideia valeu para o sistema de saúde brasileiro. Mas se você é um país da África, com um sistema muito fragmentado e desorganizado que só tem oportunidade de oferecer, por exemplo, reidratação oral e algum tipo de vacina, a OMS acha que isso está muito bom e que evidentemente é melhor isso do que nada. A gente até concorda que é melhor do que nada, mas isso não é garantir a universalidade das ações de saúde. Ainda que seja importante que a Organização Mundial da Saúde tenha protagonismo global no âmbito das questões de saúde, ela acaba validando ideias de atenção primária à saúde seletiva. E o pior é que mobiliza para isso quaisquer tipos de recursos e capacidade instalada, privatizando serviços, estabelecendo parcerias público-privadas... Não se mencionam mais as palavras 'sistemas públicos de saúde', muito menos 'sistemas universais de saúde' ou 'atenção integral às necessidades de saúde da população'. Face ao grande avanço das propostas neoliberais na economia mundial, a Organização Mundial de Saúde não conseguiu um consenso internacional em favor da expansão dos serviços de atenção primária à saúde, apenas conseguiu avançar com uma estratégia reduzida, recortada e muito seletiva. Não se trata, nesse caso, necessariamente de uma defesa de privatização do sistema de saúde, mas há uma ênfase nas parcerias público-privadas, em modelos que acabam levando a copagamento e cofinanciamento das ações de saúde, por pessoas usuárias do serviço.

Outra crítica que tem sido ventilada é o fato de o documento (ainda inicial, não finalizado) da conferência de Astana naturalizar, de certa forma, os Objetivos do Desenvolvimento sustentável (ODS) como marcos referenciais para se pensar a saúde e a Atenção Primária. Qual a sua avaliação sobre isso?

Bom, eu não acho os objetivos sustentáveis sejam uma barreira ou uma limitação para o desenvolvimento de sistemas universais de saúde. Acho que as declarações enfocam questões diferentes das metas anteriores de desenvolvimento, que tinham aspectos específicos, como diminuição da mortalidade infantil, diminuição da mortalidade materna, redução da pobreza. Elas ficaram mais genéricas, perderam especificidade emalguma medida, mas não as vejo como elementos que estariam negando ou fragilizando propostas de universalização de sistemas universais integrais. Minha preocupação maior é a coincidência, a sintonia, por exemplo, dessa proposta de cobertura universal de saúde com esses recortes todos de cobertura da OMS que a gente conversou e a proposta do Banco Mundial para a reforma do sistema único de saúde, por exemplo. O Banco Mundial acabou de lançar uma proposta a respeito da reforma do SUS. Eu receio que seja por conta do período eleitoral que teremos no Brasil.

A meu ver, a leitura que a proposta do Banco Mundial faz do SUS é muito didática, muito pedagógica para a gente imaginar qual é a intervenção do Banco Mundial nos sistemas de saúde que se sintam, digamos, suscetíveis a uma integração com o Banco. Porque isso não vai ter nenhuma repercussão no sistema de saúde inglês, evidentemente, nem no sistema de saúde da Espanha, de Portugal ou do Canadá. Mas pode sim ter uma repercussão muito forte no sistema de saúde do Brasil, dada a fragilidade internacional em que o país se encontra hoje.

O financiamento do SUS é uma nota grave para a acessibilidade mais plena do sistema. E, ainda assim, a gente teve capacidade de alcançar uma cobertura de mais de 65% da população só com a Saúde da Família. Com todas as dificuldades, a gente teve capacidade de articular toda uma rede de saúde complexa em âmbito especializado, hospitalar, da alta complexidade, de transplante, de tratamento de câncer, de tudo o que for possível. E isso com uma proporção muito pequena de recursos públicos em relação ao PIB. E o Banco Mundial, ao analisar isso, diz que apesar de alguns avanços, o Brasil luta para chegar a um bom equilíbrio e ter maior eficiência na sua ação. E, dito isso, passa de imediato a enfrentar os desafios para a consolidação do SUS que exigem, segundo o Banco, reforma dos modelos de atenção e do financiamento da gestão. Bom, quando o Banco Mundial faz isso, ele faz na perspectiva de dizer que o que é eficiente é o sistema privado e o que é ineficiente é o sistema público. Logo, se o SUS precisa melhorar a sua eficiência, o que poderíamos fazer? Privatizar o SUS, de maneira a fazer com que os serviços de saúde alcancem maior eficiência. O documento do Banco Mundial faz uma análise que, a meu ver, é extremamente curiosa, sobre a eficiência dos níveis de atenção do SUS. Ele identifica a atenção básica como o nível mais eficiente do SUS, inclusive nos lugares mais pobres. Na leitura do Banco, a atenção primária alcançou uma eficiência de mais de 60%, e foi especialmente eficiente o seu desempenho nas regiões norte e Nordeste. Já nos outros níveis - especializado, hospitalar -, quanto maior a complexidade, menor a eficiência. Se a atenção básica é o único espaço do SUS que é realmente público, apesar de algumas iniciativas de privatização, como no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Santos, então o que é mais eficiente no SUS é justamente a parte pública e não a parte privada. Então, o Banco Mundial, sem prestar atenção - de propósito, ou por equívoco -, deixa de lado os próprios dados e passa a recomendar, como a sua grande estratégia, a privatização geral do sistema. De que maneira? Organizando redes compostas por prestadores autônomos. E aí ele usa uma expressão muito curiosa: semiautônomos. Eu não sei o que poderia ser semiautônomo. Seriam as OS, que são o caminho da privatização, porque você pega o recurso público e põe na mão dessas organizações para elas fazerem não apenas a parte da gestão, mas também a oferta do serviço? E aí se supõe que milhares e milhares de OS em todo o Brasil, articuladas desde a atenção primária até a alta complexidade por redes de cuidado - saúde da mulher, saúde do idoso, de atenção aos crônicos, etc. -, fariam disso um sistema universal de saúde mais eficiente.

Eu acho que seria exatamente o contrário. Então, essa é uma grave contradição. E essa leitura de cobertura universal que perpassa os documentos da OMS agora, incluindo o da conferência de Astana, acaba tendo uma sintonia com isso. Eu não estou acusando a OMS de querer privatizar o SUS. É o Banco Mundial que está em sintonia com toda essa noção de cobertura Universal - inclusive ele fala isso claramente nesse documento do Brasil, em que propõe a privatização. Isso é extremamente preocupante.

Seja na sua gestão, seja no seu financiamento, seja na concepção de saúde, a OMS sofreu mudanças que mereçam destaque ao longo desses 40 anos? Há diferenças perceptíveis na perspectiva de saúde global nesse intervalo de tempo? 

Eu acho que Alma-Ata foi o marco daquele acúmulo de forças que a OMS foi tendo ao longo do tempo. Toda a interação com os países e as suas experiências foi um grande avanço, sinalizando essas duas questões: universalidade, portanto saúde para todos, e integralidade, ou seja, olhando todas as necessidades de saúde da população. E depois disso, esses dois conceitos, esses dois princípios organizadores e norteadores do sistema de saúde foram perdendo forças e deixando de ter visibilidade e centralidade no palco das discussões e das ações de saúde no âmbito global. E aí o Banco Mundial passou a lançar de modo regular relatórios sobre saúde do mundo, fazendo as suas interpretações e colocando a sua prescrição. Via de regra, o que o Banco Mundial defendia? Saúde seletiva, atenção à rede seletiva, saúde com ênfase na iniciativa privada, colocando sempre o prestador privado como um elemento para a extensão da cobertura. E eu acho que a OMS finalmente acaba refletindo isso, não sei se voluntariamente ou involuntariamente. A OMS é palco do debate político mundial, com todas as dificuldades que existem. Como na ONU, na Unicef, em todos os espaços que são, digamos, palco do debate global internacional.

Então, eu acho que há uma certa incoerência em a gente comemorar 40 anos de Alma-Ata de modo a reforçar uma prescrição que seja mais tímida, mais reduzida do que a daquele momento. Eu acho uma lástima. Se tivermos que pensar em reformas do sistema de saúde no Brasil para alcançar a universalização e a integralidade, temos que ir por outro caminho.


No caso específico do Brasil, medidas recentes de austeridade e, especificamente, a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos federais, têm sido apontadas como um obstáculo à continuidade de um sistema universal de saúde. Um ex-ministro chegou a defender que o SUS não cabia no orçamento. Em que medida essas dificuldades internas se expressam também internacionalmente? Novas concepções de saúde e de Atenção Primária vêm, de alguma forma, responder a esse discurso de restrição orçamentária?

Essa é uma discussão muito importante. O cenário que a gente falou, de desenvolvimento do SUS, com todos os avanços, com melhoria dos indicadores e da situação de saúde, se deu no marco do período democrático, ou seja, foi entre 1988, com a Constituição, e 2016. Esse foi o período de avanços. De 2016 para cá, além de ter uma ruptura democrática, houve a Emenda Constitucional 95 e toda a perda simultânea de direitos sociais. O Brasil está em sintonia com o que o Banco Mundial fica recitando como receita global. Se no próximo círculo governamental, em termos de governo federal, houver a continuidade da vigência dessas políticas, não haverá condições de financiar o Sistema Único de Saúde na lógica universal e integral. Então, é possível que o Sistema Único de Saúde acolha essas teses de cobertura universal que hoje a OMS traz e o Banco Mundial reforça, propondo a privatização do SUS de maneira explícita.

Há uma ruptura no SUS, que vai deixar de ter as características de um sistema público, gerido pelo Estado com uma oferta de atenção primária para todo mundo, etc. Vai passar a ser um conjunto de pacotes de diversos âmbitos, com participação do setor privado. Então, vamos privatizar a atenção básica, fornecendo os serviços para gestão e operação de organizações sociais [OS] em todo o país. Vamos formar grupos de profissionais que vão operar com serviços: no posto de saúde do meu bairro, vou operar junto com alguns colegas, em função de um interesse privado porque eu tenho que acumular dinheiro com isso. E fora que se supõe que essas OS não têm finalidade lucrativa, né? Mas você terá serviço lucrativo, não precisa ter uma organização com fins lucrativos para isso, basta distribuir dinheiro para todo mundo, que passa a ter interesse financeiro naquilo, que já se está operando um processo privatista. Esse é o problema, e lógico que isso vai se estender para o conjunto dos sistemas.

Eu entendo que nós temos um grande desafio, que é mudar esse paradigma. Os problemas do Sistema Único de Saúde são muitos, a gente conhece perfeitamente. Temos inclusive receitas, propostas, ações políticas já testadas que dão conta de solucionar e enfrentar esses problemas. O que a gente precisa não é colocar os recursos públicos à disposição do setor privado. O que a gente tem que fazer é exatamente ao contrário: as parcerias público privadas são muito bem-vindas, desde que coloquem os recursos privados à disposição do público. Temos que pegar tudo o que está na mão do setor privado e, sem estatizar, mantendo como privado, colocá-lo à disposição exclusiva do sistema público. Aí você resolve o problema.

Há ataque sobre os sistemas universais de outros países também?

Tem, claro. A conjuntura é de ataques e têm ocorrido situações tanto de fragilização desses sistemas quanto de resistência. Isso é uma questão muito interessante. Se a gente observar a crise global que se inicia em 2008, que está atingindo principalmente Estados Unidos e Europa, houve situações bastante curiosas. Na Europa, por exemplo, países que já tinham definido sistemas universais públicos de saúde, que já estavam com experiências bem avançadas, tiveram baques bem importantes, como foi o caso de Espanha e Portugal. O sistema universal público integral da Espanha e de Portugal é posterior à experiência brasileira do SUS. Eles se inspiraram não apenas em tudo aquilo que foi feito pela Inglaterra no NHS, mas também no que aconteceu em outros países, inclusive, no Brasil. Tanto Portugal quanto Espanha organizaram sistemas muito inteligentes, que não são descentralizados no âmbito municipal, como o brasileiro. A Espanha tem um sistema federal operado nas comunidades autônomas de cada região. O sistema português é federal, porque é um país pequeno, e que toma toda uma outra lógica de organização política, administrativa, etc. E o que aconteceu com a crise? Veio a receita neoliberal dos governos conservadores. Retirou-se financiamento da saúde. Com algo semelhante a uma emenda constitucional, o financiamento foi reduzido, passou-se a cobrar copagamentos, taxa de uso dos usuários, passou-se a tomar uma série de medidas restritivas, que foram muito prejudiciais para o sistema na sua lógica pública universal. Mas felizmente, primeiro em Portugal e agora na Espanha, os governos digamos, solidários com a população - porque acho que a denominação de governos de esquerda é insuficiente -, retomaram o poder e  conseguiram implementar ações que estão protegendo esses sistemas de saúde. Então, eventualmente, no Brasil, possamos resgatar o Sistema Único de Saúde, mas a conjuntura é preocupante.
 

Tem uma expressão que a gente costuma usar, que é a seguinte: atenção primária em saúde é o SUS

O Brasil assistiu, recentemente, a uma mudança na sua Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) que foi criticada por muitas instituições do campo da saúde, incluindo a Fiocruz, a Abrasco e o Conselho Nacional de Saúde. É possível relacionar essas mudanças com os marcos de Alma Ata e com os possíveis novos marcos da conferência global de Astana?

Bom, em alguma medida sim, eu acho que tem relação. Nada acontece por acaso. Mas a questão da PNAB merece uma reflexão mais particular. O grande problema da revisão da PNAB é que ela se deu no contexto de um processo de ruptura democrática. Então, se o contexto fosse de normalidade democrática, independentemente de a hegemonia do governo ser de esquerda ou de direita, o debate teria sido outro.

Um debate que se colocava era sobre os blocos de financiamento, que caracterizavam para o SUS as rubricas em que o dinheiro seria aplicado: o bloco de financiamento da atenção básica, da vigilância sanitária, da saúde do trabalhador, etc. Havia uma discussão entre os secretários municipais de saúde, e até mesmo de modo mais geral no SUS, se isso não seria incoerente com uma lógica de gestão universal integral do sistema, a partir de uma gestão, digamos, solidária, tripartite, entre os gestores municipal, estadual e federal. E, no mundo perfeito, essa articulação tripartite produziria alocação de recursos segundo as necessidades de saúde da população, o perfil da rede de serviço, das áreas com uma prioridade momentânea, da carência maior, etc. Sem essas caixinhas todas carimbadas, você tem grande agilidade, facilidade no uso do dinheiro. Essa é uma argumentação bem razoável. No entanto, no contexto de disputa muito desigual de recursos no interior do sistema de saúde, inclusive com áreas privatizadas que têm grande peso, como média e alta complexidade e atenção hospitalar, há toda uma preocupação de que quando você acaba com essas caixinhas, com essas rubricas de definição de financiamento, acaba fragilizando o mais fraco. Então, numa escala, por exemplo, em que de cada R$ 100 transferido pelo Ministério da Saúde para os municípios, menos de R$ 20 são gastos em atenção básica. Com essa mudança, corre-se o risco grave de tirar o pouco da atenção básica para colocar em outras coisas.

Outro problema é a questão dos agentes comunitários de saúde. Há uma necessidade muito importante no âmbito da atenção básica, inclusive da saúde da família, de uma atualização, uma adequação da participação do agente comunitário de saúde nas equipes da ESF. Porque o perfil demográfico da população mudou, o perfil epidemiológico mudou. Os agentes comunitários foram heroicos no início, inclusive antes de existir o Saúde da Família, para monitorar crianças com risco de mortalidade infantil, por acompanhar casos de diarreia, desnutrição, problema de aleitamento etc. Hoje há uma enorme quantidade de população idosa, com múltiplos medicamentos, que têm dificuldade funcional, muitas condições crônicas na população, inclusive nos mais jovens. Então, você precisa adequar e potencializar o trabalho do agente comunitário de saúde. A formação desses agentes precisa ser continuada, permanente, não é o caso de o trabalhador ter um cursinho, seja de 30 dias ou de seis meses, para virar agente comunitário. Ele vai estar todos os dias, todas as semanas, todos os anos participando de uma atividade. O que a PNAB fez? Em vez de avançar na melhoria do papel, da inserção do agente comunitário na equipe de saúde da família, acabou fazendo uma síntese desarticuladora. A nova PNAB diz que é obrigado a ter no mínimo um agente comunitário de saúde por equipe. Isso é uma loucura, porque significa que não precisa ter quatro agentes comunitários... Você precisa ter um, então você reduz a categoria. Eu até falei isso num debate lá na Câmara Federal, com os próprios agentes comunitários, e essa aprovação pode muito bem significar que o agente comunitário de saúde vai ser uma categoria profissional em extinção. De cada quatro, vai ficar com um. Além disso, esses profissionais terão que fazer outras atividades, pela formação que vão receber, que é de técnico de enfermagem. Eles estarão habilitados para fazer atividades de técnico de enfermagem, de agentes de endemia... virou uma miscelânea.

Então, uma questão que era necessário ser abordada, definida, promulgada, que era a inserção do agente comunitário, acabou sendo altamente afetada negativamente, e com isso correndo o risco inclusive de ficar desarticulada, fora daquilo que seria a relevância do agente comunitário. Outra questão que afetou a Saúde da Família foi a questão do financiamento. A atenção básica tem um financiamento que chama PAB Fixo, que é aquele piso da atenção básica fixo, um valor per capita que o município recebe como transferência do Governo Federal em função do número de habitantes de cada localidade. Esse recurso é transferido para todo o sistema. É um valor muito irrisório, em média R$ 24 por habitante, R$ 2 por mês. É irrisório, não dá para nada. Mas, se criou no Brasil um outro PAB, um piso de atenção básica variáve,l que era destinado a incentivar a expansão da Saúde da Família. Quando ele foi criado, foi um enorme avanço porque ele não é per capta, é um montante. Para implantar uma nova equipe da saúde da família, você recebe sei lá, 10, 12 mil reais; para manter aquela equipe funcionando regularmente, você recebe mais tantos mil reais a cada mês. E o PAB Variável foi o grande recurso de melhoria do financiamento da atenção básica, para incentivar a sua expansão pela Saúde da família. Agora, com a revisão da PNAB, esse financiamento do PAB Variável passou a ser destinado à organização de qualquer tipo de equipe. Uma configuração que não seja a saúde da família mas que seja parecida já pode receber o PAB Variável. Então, na prática, está-se fragilizando o montante de dinheiro que era exclusivo para a Saúde da Família.
 

Qual a importância da Atenção Primária em Saúde para a garantia da saúde da população?

Tem uma expressão que a gente costuma usar, que é a seguinte: atenção primária em saúde é o SUS. Ela é a inovação do SUS, porque antes do SUS já existiam hospitais, já existiam ambulatórios, já existiam inclusive lugares de realização de exames, de atendimento de urgência, emergência. Tudo isso já existia. A inovação no SUS foi a atenção básica e essa imensa rede que foi construída - são mais de 40 mil equipes de saúde da família em todo o Brasil, 40 mil médicos, 40 mil enfermeiros, entre 40 e 60 mil técnicos e auxiliares de enfermagem e 300 mil agentes comunitários de saúde. É uma imensa rede diluída em todo o território nacional. Isso é o SUS.

É a partir do atendimento na atenção primária que você tem possibilidade de transitar pelo sistema de saúde, de fazer um exame, de ser encaminhada para um atendimento especializado, de ir a um hospital, de fazer um transplante se for necessário, de fazer uma cirurgia, etc. Com essa extensa rede de atenção primária pública que foi organizada, se você trouxesse para o SUS a oferta exclusiva dos serviços privados que hoje oferecem serviço para o SUS, seria um grande avanço do ponto de vista de alcançar a universalidade e oferecer para todo o público aquilo que seriam serviços completos, integrais, qualificados no sistema de saúde. Para falar objetivamente: as Santas Casas são grandes hospitais tradicionais no Brasil, que atendem 85% em média de usuários do SUS. Elas deveriam fazer parte exclusiva da rede do SUS. O Sistema Único de Saúde deveria ter capacidade de estabelecer que 100% das atividades oferecidas pelas Santas Casas fossem para o SUS. E que seus profissionais fossem adequadamente remunerados e incentivados porque estariam prestando um atendimento para o sistema único de saúde em benefício da totalidade da população. E com isso a gente teria uma capacidade de universalizar, agilizar e organizar o sistema muito maior do que tem hoje. Muitos laboratórios de imagem e de análise bioquímica, muitos centros diagnósticos atendem parcelas muito grande do sistema único de saúde e poderiam ser contratados de maneira exclusiva para o sistema único de saúde de maneira a beneficiar a população. Em vez de pegar tudo que é público, privatizar e acabar com aquilo, fazer uma hiperfragmentação, faríamos uma canalização de esforços da capacidade instalada, dos recursos da rede privada, dos serviços privados para a oferta do sistema público. Assim é feito na Inglaterra. Deveria se organizar uma autarquia do SUS, como tem autarquia do NHS, que é uma estrutura de serviços, assim como as universidades são estruturas de serviço no Brasil. A Fiocruz pertence ao Ministério da Saúde, mas é uma estrutura que tem a sua autonomia de prestação de serviço, de gestão, de desenvolvimentos, etc. Isso é uma maravilha. Se a gente tivesse um sistema de saúde que tivesse uma grande autarquia nacional e que operasse na perspectiva exclusivamente pública e de todos os contratos e ofertas de serviço que fossem públicos, garantiria a participação do município na questão da gestão em termos de seus interesses, do resultado do governo federal, mas protegeria essa estrutura de funcionamento de dificuldades burocráticas, administrativas, intempestivas, de mudanças e oscilações que acontecem, por exemplo, nas mudanças de gestão. Logo, você teria possibilidade de fazer uma trajetória ao contrário dessa trajetória privatizante mas, com grande êxito.

Comentários

Sou professora universitária e na disciplina de atenção a saúde me reporto a conferencia de Alma Ata. Achei o texto muito pertinente para levar a discussão na sala de aula

Em muitas organizações de saúde, a deficiência e a carência da evolução humana é a principal causa para não adesão dos programas e projetos de melhoria na assistência a saúde. É notório as advergências entre colegas, tanto da alta direção como da Assistência. Essa relação humana deficiente provavelmente é a principal causa destes projetos tão bonitos já nascerem Natimorto.