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Entrevista: 
Carlos Jamil Cury

‘A demanda pelo Sistema Nacional de Educação provém dos anos 1930 e sempre foi recusada’

A primeira vez que uma equipe de reportagem da Escola Politécnica da Fiocruz entrevistou o professor Carlos Jamil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), foi em 2009, como parte do debate preparatório para a 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae). Depois vieram muitas outras conversas e, em quase todas elas, o tema principal era a importância – e a expectativa – de que o Brasil instituísse um Sistema Nacional de Educação (SNE), capaz de articular as ações do governo federal, estados e municípios em relação à oferta, à organização pedagógica e ao financiamento da Educação no país. Realizada em 2010, aquela 1ª Conae mobilizou milhares de pessoas em torno do tema ‘Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação’ e resultou em propostas concretas, mas nada se efetivou. Tantos anos depois, finalmente acaba de ser aprovado pelo Senado, no último dia 7 de outubro, o Projeto de Lei nº 235/2019, que cria o Sistema Nacional de Educação. O texto é de autoria do senador Flávio Arns (PSB-PR), foi modificado na Câmara dos Deputados em setembro, voltou para o Senado e agora, após aprovação do relatório da senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), segue para a sanção presidencial. Nesta nova entrevista, Cury explica a importância dessa conquista, analisa os termos do projeto aprovado e historiciza a oposição que essa medida sofreu ao longo das décadas, mapeando, inclusive, os interesses divergentes que ainda permanecem em relação a alguns pontos, principalmente o financiamento.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/10/2025 11h35 - Atualizado em 31/10/2025 11h21

O Projeto de Lei nº 235/2019, que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE), foi aprovado no Senado no último dia 7 de outubro e segue para sanção presidencial. Devemos comemorar?

A demanda pelo Sistema Nacional de Educação provém dos anos 1930 e sempre foi recusada. E isso se deveu a quatro atores que se insurgiram, em tempos diferentes, contra a inclusão dessa expressão conceitual no ordenamento jurídico. O primeiro deles foi a iniciativa privada, seja nos anos 1930, em torno da Constituinte de 1934, seja em torno da tramitação da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] no final dos anos 1950. A iniciativa privada acusava essa expressão conceitual de ser uma cortina de fumaça para instaurar no Brasil o monopólio estatal da Educação. Ou seja, algo sem qualquer elemento empírico que pudesse justificar [essa posição]. A liberdade de ensino, sobretudo no Brasil independente, jamais foi contestada ou esteve fora do ordenamento jurídico. Mas essa objeção chegou até os nossos dias. Por exemplo, em função da tramitação do SNE uma deputada muito jovem do Rio de Janeiro convocou algumas pessoas de corte conservador para uma audiência pública qurendo que se retirasse da Emenda [Constitucional] 59 a expressão ‘Sistema Nacional de Educação’ porque isso seria o caminho para o monopólio estatal da Educação. Isso foi agora! Enfim, houve essa recusa, muito enfática e muito trabalhada, pela iniciativa privada. Ela sabia que não haveria monopólio da Educação. O que, na verdade, ela queria com isso era um abrandamento da regulamentação da liberdade de ensino no âmbito da Lei de Diretrizes e Bases.

O segundo ator que se colocou contra foram os estados, que entendiam que esse conceito poderia ferir a autonomia federativa dos entes subnacionais. Rigorosamente, tinha um endereço muito pontual [dessa preocupação], que era a nomeação de diretoras e diretores para as escolas. Julgava-se que o Sistema Nacional de Educação iria obrigar os estados a se conformarem a determinadas normativas vindas do sistema.

A terceira recusa vem da própria União, dos próprios ‘governos federais’. Embora, muitas vezes, o Ministério da Educação fosse favorável [ao SNE], os ministérios da Fazenda e do Planejamento punham obstáculos, na medida em que entendiam que a União seria meramente o caixa financeiro do sistema.

E ao lado disso, sobretudo agora, recentemente, na tramitação deste [Projeto de Lei de] SNE, muitos intelectuais, sobretudo de corte mais tecnocrático, se posicionaram enfaticamente contra o Sistema. Se pegar, por exemplo, as manifestações de Cláudio Moura Castro, de João Batista Oliveira e de Simão Schwartzman, você vai verificar um posicionamento na Folha de S. Paulo ou no Estadão muito enfaticamente contra, dizendo que [o SNE] é um mamute, um elefante branco, coisas do gênero. E que só viria perturbar mais ainda a Educação.

Eu acho que a aprovação do PL 235/2019 precisa ser comemorada

Então, eu acho que [a aprovação do PL 235/2019] precisa ser comemorada sim. Porque eleva a Educação a nível de sistema similar ao que nós encontramos no SUS [Sistema Único de Saúde] e no SUAS [Sistema Nacional de Assistência Social]. E isso vai permitir uma harmonização pela via de uma pactuação entre os entes federativos, para ver se assim a gente consegue suplantar gargalos já atávicos no âmbito da Educação brasileira.

Eu queria que o sr. explicasse por que é importante ter um Sistema Nacional de Educação. Em que ele pode contribuir para a melhoria da qualidade e da oferte de Educação dos cidadãos comuns?

Espera-se que a escola tenha ventilador no calor, que tenha pincel para o professor escrever no quadro, carteiras adequadas para pessoas canhotas, acessibilidade para cadeirantes... Isso é o que se chama de insumos pedagógicos

Ele pode ajudar, por exemplo, na harmonização da oferta de conhecimentos quando uma criança ou um adolescente passa do sistema municipal para o sistema estadual. Esse é um ponto muito concreto sobre o qual há muita reclamação por parte das famílias. ‘Ah, meu filho saiu do município, foi para o estado, e lá era tudo diferente’. Que haja diferença, é absolutamente normal. Agora, quando os pais ou as famílias falam que é tudo diferente, há um problema. Então, o Sistema [Nacional de Educação] vai ajudar, através da constituição de uma coordenação interfederativa chamada Cibe [Comissão Intergestores Bipartite da Educação] que, pela primeira vez, vai articular as políticas e os programas entre os estados e municípios. Acima dessa instância estará a Cite [Comissão Intergestores Tripartite da Educação], para articulação e pactuação – esse é um termo importante! – entre os três entes federativos com relação, por exemplo, à melhor distribuição de recursos e às diretrizes [para garantia] dos insumos pedagógicos por meio do Custo Aluno-Qualidade Inicial [CAQi] que se refere a coisas muito comezinhas, como banheiros nas escolas, carteiras, quadros, computadores, correlação entre o espaço e o número de estudantes... É o comum: espera-se que a escola tenha ventilador no calor, que tenha pincel para o professor escrever no quadro, carteiras adequadas para pessoas canhotas, acessibilidade para cadeirantes... Isso é o que se chama de insumos pedagógicos.

Já para um público mais restrito, mais diretamente ligado à educação escolar, caberá a essa instância a definição do valor do piso salarial nacional profissional. Caberá também – porque um dos critérios do Sistema é a equidade, sobretudo com relação à função supletiva – uma melhor redistribuição, por exemplo, do valor da merenda, que, num país tão desigual, é algo muito importante. Ou seja, a equidade procurará dar mais a quem tem menos. São questões muito concretas.

Agora, o conceito mais polêmico [do PL que institui o Sistema Nacional de Educação] não enquanto conceito, mas enquanto tradução deste conceito, é o de Custo Aluno-Qualidade, o CAQ. Porque há várias disputas em torno de como defini-lo. A primeira questão é se o Custo Aluno-Qualidade será uma norma pactuada entre todos os entes federativos ou será simplesmente uma norma autorizada para os estados e municípios. E a segunda questão é o valor econômico-financeiro que deverá pautar esse valor. Porque esse valor tem a ver com as metas do PNE, o Plano Nacional de Educação.

Vou lhe dar um exemplo concreto. Hoje, o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem apenas quatro horas de ensino. O Senado colocou algo muito importante que está na LDB, que é uma projeção para a ampliação da jornada para sete ou oito horas. Ora, será que a atual vinculação de recursos orçamentários de impostos dá conta dessa ampliação de três ou quatro horas a mais? Qual o impacto que isso tem, por exemplo, na presença integral de um professor numa escola, ao invés de ele estar de manhã numa municipal, de tarde numa estadual e de noite numa privada? Então, o Custo Aluno-Qualidade é, talvez, o ponto mais polêmico desse projeto aprovado no Senado com essas dimensões: se ele será impositivo ou meramente autorizativo.

Mas, ao caracterizar o CAQ como o ponto polêmico do PL que institui o Sistema Nacional de Educação, o sr. quer dizer que ele é o mais atacado por quem se posiciona contra o SNE – um editorial da Folha de S. Paulo, por exemplo, publicado em setembro, duvida da viabilidade do CAQ – ou o sr. também acha que ele não é um bom cálculo para garantir os insumos pedagógicos necessários a uma Educação de qualidade?

O CAQ foi constitucionalizado. Então, não se trata agora de discutir se é o CAQ ou não. É o CAQ. O que está em disputa é a metodologia. E dois campos muito claros, que não têm negociado entre si, estão hoje em disputa em relação à metodologia do CAQ. Um é o Todos pela Educação, o outro é a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que tem como apoio metodológico a Fineduca [Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação]. Não se pode questionar mais o CAQ. Ele está constitucionalizado. O que você pode discutir é a metodologia. E nessa metodologia, entra uma discussão muito pesada sobre o que significa a equidade na correlação com os entes federativos. É esse o ponto que está em discussão. Porque, da parte do ‘Todos’, sobretudo, se diz [criticamente] que há uma tendência à uniformização, [argumentando-se] em defesa da pluralidade, do federalismo etc. Precisa ver se realmente a Fineduca tem uma metodologia que desperta uma centralização com relação a esse recurso. Pelo que eu li, os últimos documentos da Fineduca não me dão a impressão de centralização. Ademais, essa dimensão deverá ser resolvida por meio de pacto e de negociação no âmbito do Cite, que é a Comissão Intergestores Tripartite da Educação. Na época da Dilma [Rousseff], quem fez estudos a esse respeito foi a Sase [Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino]. E ela encontrou limites justamente na questão metodológica. Então, esse vai ser o pomo da discórdia.

O sr. começou esta entrevista identificando os atores que, desde os anos 1930, vinham se colocando contra o Sistema Nacional de Educação e a iniciativa privada é um deles. Quando o sr. fala que essa polêmica em relação ao CAQ é vocalizada, por um lado, pelo Todos pela Educação e, por outro, pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, eu preciso lembrar aqui que o ‘Todos’ é uma reunião de fundações empresariais da Educação, que, portanto, vocaliza os interesses desse setor empresarial. Essa divergência em relação ao CAQ repete, de alguma maneira, uma divergência em relação à criação ou não do SNE? E, nessa disputa, o sr. está de que ‘lado’?

O Todos pela Educação não se colocou contra o Sistema Nacional [de Educação], pelo contrário, colocou-se muito favoravelmente – tanto que eu não sei se foi o Claudio Moura Castro ou o Simon Schwartzman que até se disse surpreso de que o ‘Todos’ estivesse apoiando os elefantes brancos. O problema está justamente na metodologia do cálculo do Custo Aluno-Qualidade, que é algo que vem de Anísio Teixeira, nos anos 1960, junto com Paschoal, que tentaram objetivar e materializar esse Custo Aluno-Qualidade, pelo qual você teria, então, uma progressão do Brasil aos níveis dos chamados países mais adiantados. Agora, eu acho que a questão vai estar postada justamente em como você vai calcular isso. A referência ao PIB [Produto Interno Bruto] entra neste cálculo. Por quê? Porque se você tem metas [no Plano Nacional de Educação, PNE) que ampliam a jornada, que ampliam a creche, o ensino técnico-profissional e a educação superior, será que o que está vinculado hoje, 18% e 25%, dão conta? [A referência é aos percentuais mínimos da receita de impostos que o governo federal (18%) e estados e municípios (25%) devem investir em Educação] Não dão. Então, eu entendo que, em algum momento, nós, da comunidade científica, precisaríamos ser chamados por esta entidade [Cite] que está sob o conceito de governança democrática, que aparece no projeto, para dizer onde se situa a diferença que se tem em relação, por exemplo, ao ‘Todos’. Embora a Cite e a Cibe sejam constituídas apenas por representantes estatais, sem a participação da sociedade civil, eu entendo que, para uma devida pactuação e negociação, como está lá [no Projeto de Lei], é preciso chamar esses atores e resolver essas diferenças, porque, se não, nós não vamos avançar. Mas você pergunta a minha posição [nessa polêmica]? Eu parto da posição da Campanha [Nacional pelo Direito à Educação] e da Fineduca. Agora, como a Cite e a Cibe são instâncias de negociação e pactuação, para avançar, a gente precisa negociar no âmbito dessa instância.

Como o setor privado da Educação participa do SNE?

Essa é uma questão de compreensão do que é a chamada rede privada. A rede privada só tem existência para oficializar os seus certificados e diplomas quando é autorizada por um sistema público. Portanto, quando eu digo ‘sistemas de ensino’, incluo a rede privada. Por outro lado, elas, com as distinções entre aquelas com e sem fins lucrativos, gozam sim de uma liberdade de ensino. Porque a Constituição de 1988 não tem mais a rede privada como concessão, mas como autorização. Curiosamente, até 1988 era uma ‘concessão’, o que tem um peso muito grande. Com a Constituição de 1988, baixou para ‘autorização’. Com isso, a rede privada ganhou maior flexibilidade, porém, dentro das regras do jogo.

Eles querem agora um sistema que é um abrandamento. Esse é outro ponto que, certamente, é de grande discussão: qual é o grau de regulamentação [da iniciativa privada]? Porque a natureza da regulamentação existe, está na Constituição e depois foi reproduzida na LDB. O que eles [os representantes dos interesses privados] pretendem é dizer que o Sistema Nacional de Educação é dominantemente público e que a rede privada entra no sistema, porém, com a liberdade de ensino. É como se a questão da qualidade da educação escolar brasileira estivesse praticamente restrita ao sistema público e deixasse de uma forma branda os modos de regulação da área privada.

A 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae) realizada no pós-redemocratização aconteceu em 2010 e tinha como tema ‘Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação’. O SNE que acaba de ser aprovado pelo Congresso reflete o que a sociedade civil organizada propôs na conferência, naquele momento?

Houve avanços consideráveis. Eu acho que a Inde, Infraestrutura Nacional de Dados de Educação [cuja criação é proposta no PL 235/2019, que institui o SNE] dá maior transparência aos maravilhosos dados que o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] tem. Veja uma coisa: quem é que tem apresentado, de forma didática, os dados do Inep hoje? Esses dias saiu o ‘Anuário Brasileiro da Educação’, publicado pelo ‘Todos’. É muito bom. Agora, eu acho que, com esse Inde, nós temos um avanço importante porque será o poder público que vai dar transparência a esses dados. Como é que você vai exercer o monitoramento se não tem esses dados disponibilizados de uma forma didática para os sistemas, as universidades, as escolas, enfim, para a própria sociedade civil? Então eu acho que esse foi um grande avanço.

Tem também o Inue, o Identificador Nacional Único do Estudante [proposto pelo PL que institui SNE], que é uma espécie de CPF estudantil. Eu acho que vai depender muito se ele vai servir para um controle gerencial ou para um controle voltado à superação das deficiências [da Educação] encontradas, como está na LDB. Eu temo que, a depender dos sistemas, do secretário de Educação, municipal, estadual, ele pode se encaminhar para um controle gerencial, que não é pedagógico. Ter um dado como esse Inue como um repositório cadastral, tudo bem. Mas para que ele serve? Ele serve para uma dimensão gerencialista ou para uma dimensão da gestão democrática? Parece uma questão também a ser discutida.

Um outro dado é a ausência da representação do Fórum [Nacional ou Estadual de Educação] nas instâncias [Cite e Cibe]. Eu acho que o Fórum poderia ter assento com voz e voto nessa instância, e não elas ficarem apenas com os entes estatais. Sobre isso, eu acho que aquilo que se esperava lá em 2010 não se consubstanciou.

Esse modelo de instâncias de pactuação propostas para o SNE é muito semelhante ao desenho do SUS, o Sistema Único de Saúde. E um debate que existe há anos na Saúde é que, ao longo do tempo, acabaram se fortalecendo os espaços de gestão enquanto os espaços de participação social se enfraqueceram. Como evitar isso?

Vai depender muito da sociedade civil organizada. É uma questão de correlação de forças mesmo. E do ímpeto com que isso será levado pelas próximas gerações

As próprias instâncias só terão efeito vinculante se forem pactuadas. A Cibe e a Cite são autorizativas, não são vinculantes. E os fóruns são de caráter consultivo, sobretudo o Fórum Nacional de Educação. É claro que existe uma pressão vinda das conferências nacionais de educação, enquanto sociedade civil, mas elas não têm efeito vinculante. E realmente, a nossa tradição, da história da Educação, tem sido a seguinte: quando se consegue inserir, formalizar, um direito ou uma organização – no caso, o Sistema [Nacional de Educação] –, no ordenamento jurídico, em seguida você arrefece o ímpeto [que levou àquela conquista]. ‘Bem, agora, isso pertence mais aos poderes públicos’. Então, isso que você falou vai depender muito da sociedade civil organizada. É uma questão de correlação de forças mesmo. E do ímpeto com que isso será levado pelas próximas gerações. Eu, como sou um octogenário, não sei se verei essa qualificação da Educação, com tudo aquilo pelo que a gente lutou desde o final dos anos 1970.

A Cite, na representação da União, conta não apenas com o MEC mas também com o Ministério da Economia. Por quê?

É porque essa instância terá justamente como uma das suas atribuições não só o Custo Aluno-Qualidade, que implica o financiamento, mas também as funções redistributiva e supletiva. Isso implica [apontar] de onde vai sair o dinheiro. Eu li claramente que no passado, mas até o presente, com graus distintos de rejeição, os ministérios do Planejamento e da Fazenda sempre foram contrários ou ‘cautelosos’, como foi o caso agora do Fernando Haddad, em relação à correlação do financiamento da Educação com o PIB e a tradução disso no atingimento das metas. Daí a presença desses ministérios no âmbito dessas instâncias. Eu acho razoável porque você precisa ter clareza de onde o dinheiro vai sair. Se não nós vamos ficar, como os Planos Nacionais de Educação, com o wishful thinking [pensamento positivo], uma carta de boas intenções. Porque [nos PNEs de] 1936, 1937, teve o golpe; nos de 1962, 1963, teve outro golpe; em 2001- 2011, o Planejamento e a Fazenda simplesmente vetaram [a meta de investimento em Educação de] 7% do PIB. E no governo Dilma houve toda aquela movimentação em torno de um impedimento sem apoio em uma realidade fática, como se fosse, em última instância, um golpe parlamentar. O Plano não foi adiante. Quer dizer, todos os quatro planos [nacionais de educação] que nós tivemos até agora fracassaram. Por quê? Porque o financiamento, em última instância, foi o elemento que faltou. A expectativa agora é que essa correlação SNE-PNE redunde em uma materialização do financiamento que vá além dos 25% e dos 18% e que signifique finalmente um apoio à superação da carência de insumos pedagógicos mais básicos para toda e qualquer escola, que signifique a valorização dos professores, com formação adequada inicial, com uma presença integral numa escola de tempo integral, com salário decente, competitivo.

Da última vez que eu lhe entrevistei para falarmos sobre a importância do SNE, o sr. apontou também que o CNE, o Conselho Nacional de Educação, precisaria ser repensado. Até onde eu identifiquei, o PL 235/2019, que institui o SNE, não trata de nenhuma mudança nesse sentido. O que precisa mudar? A própria existência do SNE pode alterar o funcionamento do CNE?

O que avançou foi que, junto ao Conselho Nacional de Educação, haverá o Fórum dos Conselhos de Educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, de caráter consultivo, para debater e harmonizar as normas educacionais das respectivas esferas. Eu acho que esse foi um pequeno avanço. Isso é realmente algo que precisa acertar melhor: porque a LDB, que tem um caráter de organização pedagógica, está adstrita muito mais às instâncias normativas, enquanto o financiamento está mais adstrito ao Plano Nacional da Educação. E o Sistema [Nacional de Educação] é que precisaria articular essas duas instâncias de modo a que você tivesse, ao mesmo tempo, uma melhoria substancial do que se refere ao financiamento, via PNE, e uma articulação da organização pedagógica que atenderia à qualidade da Educação brasileira. Eu vejo isso como algo complexo. Estive oito anos no Conselho Nacional de Educação e vivi a complexidade desse assunto. É neste sentido que eu vejo que as instâncias Cibe e Cite ficaram muito no âmbito do executivo e muito pouco articuladas na sua formulação com o normativo.

Como o sr. mesmo comentou, os Planos Nacionais de Educação, que abarcam períodos de dez anos, vêm sendo sistematicamente descumpridos, com a maior parte dos seus objetivos e metas não alcançados. Nesse processo de tramitação e aprovação do SNE, muitas vezes foi apontada a importância do SNE para a execução do PNE. Isso é verdade? A aprovação do Sistema Nacional de Educação agora deve levar a modificações no Projeto de Lei do PNE que o governo apresentou ao Congresso? E o funcionamento do SNE pode mesmo favorecer que os planos nacionais de educação sejam mais efetivos do que têm sido?

[O PL que institui o SNE] aprovou um modo de articulação que se chama ‘governança democrática’. A governança implica ‘o que fazer’ e ‘para que fazer’. E, de uma forma muito recessiva, o ‘como fazer’. Ou seja, no meu modo de ver, o Plano Nacional de Educação estaria articulado com a gestão democrática de ‘como fazer’, como traduzir as metas e as estratégias. E aí então nós teríamos que ter um acerto entre o papel dessas instâncias e o modo gestionário de se levar adiante o PNE. Eu tenho algumas preocupações. Olhando para o passado, eu vejo que os quatro planos fracassaram. Então, a minha pergunta é: será que as metas e estratégias postas no atual Plano são ambiciosas a ponto de significarem um obstáculo à consecução de metas mais próximas, que pudessem ser factíveis e realizadas? Como estudioso do passado, dos planos de educação, não posso deixar de fazer esse tipo de leitura. A segunda coisa que eu vejo é: será que o atual Congresso não olha para o Plano Nacional de Educação como uma espécie de incumbência da qual ele deve se desincumbir, sabendo que é um plano irrealizável, nas suas metas ambiciosas? E essa é a formulação mais generosa que eu posso fazer com relação a esse Congresso. Pessoalmente, embora a gente sempre tenha defendido o Plano Nacional de Educação, eu sempre tive muita desconfiança com relação a esse Congresso. Por isso é que, por exemplo, já fui perguntado algumas vezes em entrevistas se devemos reabrir [o debate sobre] a LDB. E eu digo: ‘Pelo amor de Deus, não façam isso!’. Porque vão arranjar jeito de entrar com coisas como Escola sem Partido e ataque a religiões umbandistas na lei.

Olhando para o passado, eu tendo a ver com um certo grau de ceticismo esperançoso esse novo Plano Nacional de Educação

Agora, com relação ao Plano [Nacional de Educação], como ele é realmente uma tradução mais objetivada do financiamento, e como o financiamento é a pedra de toque, eles [os parlamentares] vão dizer: ‘vamos aprovar isso aí, mas isso aí não vai funcionar. É um Plano que será irrealizável como os outros’. Qual a minha avaliação? Olhando para o passado, eu tendo a ver com um certo grau de ceticismo esperançoso esse novo Plano Nacional de Educação.

E, em relação ao Sistema Nacional de Educação, supondo que o presidente Lula sancione a lei sem vetos, quais são os próximos passos?

Eu acho que agora nós temos que esperar os famosos ‘atos do Executivo’ objetivando e materializando as instâncias. Esse é, a meu ver, o passo mais próximo que nós podemos ter: a criação da Cide e da Cite. E, por outro lado, [a definição de] quem vai ser chamado para estudar dentro das instâncias os famosos insumos pedagógicos. Isso não dá para a gente deixar para trás. Porque são os insumos básicos. Tem mais de 6 mil escolas que não têm banheiro. Então, essa questão dos insumos pedagógicos tem que ser imediata. E isso tem que estar no PNE para ter uma correspondência com a Emenda Constitucional 59. São esses dois passos que eu vejo. Porque, se não, não vai funcionar. O ‘Sistema dos sistemas’ ganhou uma estrutura que agora está sob a égide do Cite. Ele só funciona com ela. Ela é a materialização mais próxima que nós podemos ter do Sistema. E [é preciso pensar em] como vamos harmonizar a organização pedagógica, no âmbito da Cite.

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