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Entrevista: 
Leandro Konder

'A ética ajuda a permanecer na luta'

O professor do Departamento de Educação da PUC-Rio Leandro Konder faz um balanço das vitórias e derrotas da esquerda ao longo do século 20 e fala sobre a relação entre educação e ideologia
Sandra Pereira - EPSJV/Fiocruz | 15/03/2009 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Dedicação ao conhecimento, uma vasta produção acadêmica e a luta política por um mundo justo: esses são os principais destaques da trajetória de vida que Leandro Konder nos conta na sua autobiografia, lançada no final de 2008. O nome do livro — ‘Memórias de um intelectual comunista’ — não deixa dúvidas: Konder continua acreditando no socialismo como caminho para uma sociedade igualitária e democrática. Hoje, no entanto, ele acha que um revisionismo, antes tão criticado, é imprescindível para esse projeto socialista. Atualmente professor do Departamento de Educação da PUC-Rio, Konder é doutor em Filosofia e tem mais de 20 livros publicados, inclusive romances. Nesta entrevista, ele fala sobre o papel dos movimentos sociais, destacando, no entanto, a importância dos partidos políticos para as mudanças estruturais. Aponta a ética como motor para a continuidade da luta, faz um balanço das vitórias e derrotas da esquerda ao longo do século XX e fala sobre a relação entre educação e ideologia. Esta entrevista, que é uma aula de filosofia, política, educação — e de vida —, deve ser lida também como uma homenagem a um dos maiores nomes da esquerda brasileira.

Sua história está ligada à história da esquerda no Brasil. Olhando para o país e o mundo hoje, que sentimento prevalece: decepção, orgulho, esperança...?

Acho que um pouco de todas as opções. Decepção do ponto de vista da consciência social e da disposição das pessoas em eliminar o agravamento das desigualdades, para tornar a sociedade menos injusta. Por outro lado, fomos surpreendidos pelo crescimento econômico, pela modernização, que pode ser um saco. Portanto, não consigo me caracterizar em nenhuma dessas opções.

Após a década de 1990, com a queda do bloco socialista, houve uma crise no que diz respeito às utopias. Ainda acredita que o caminho da transformação é o socialismo?

Eu acredito sim, mas é preciso que a proposta socialista se submeta a uma revisão drástica. Nós chegamos a criticar muito os revisionistas, dizíamos que eles não estavam com nada. Hoje, vemos que o socialismo precisa passar por uma revisão enérgica. A experiência com a União Soviética, por exemplo, mostrou que existem projetos e propostas marxistas que funcionam mal, pois acumulam fatores de destruição interna muito poderosos, fatores estes que subestimávamos. Lembro que havia os trotskistas, que estavam à minha esquerda, que avisavam: “O barco vai afundar”. Certo. O barco afundou e eles foram junto. Isso é muito triste. É uma situação patética. Fico emocionado quando toco nesse assunto.

Em que termos o socialismo deve ser revisado?

Nos termos da democracia e da liberdade, principalmente. Precisamos de concepções mais amplas, concretas, decididas de criação de espaços de controle do exercício do poder.

A filosofia de Marx precisa ser revista para recuperar a radicalidade da sua intervenção transformadora

A democracia e a liberdade são possíveis no capitalismo?

Acho que até pode ser possível, mas muito, muito difícil, pois a liberdade e a democracia entrariam em conflito com o capitalismo. O exercício de uma política socializante, ainda que moderada, seria contrário aos interesses das grandes empresas e do Estado capitalista. O jogo é bem mais complicado do que temíamos.

E o Marxismo hoje?

Precisa ser revisto. Para essa compreensão, eu gosto muito do filósofo tcheco Karel Kosik, morto em 2003, quando eu estava tentando trazê-lo ao Brasil. Ele, que teve importantes posições durante a ’Primavera de Praga’, tem opiniões muito interessantes a respeito da revisão do marxismo. Gosto também do Michel Löwy, do historiador Perry Anderson, todos marxistas que não se entregaram. A filosofia de Marx precisa ser revista para recuperar a radicalidade da sua intervenção transformadora. Antes nós tínhamos medo do revisionismo. Hoje o revisionismo de Marx passa a ser uma esperança.


No seu último livro ‘Memórias de um intelectual comunista’, o senhor diz que, em suas derrotas, a ética o consolou. Em que medida os órfãos de uma ‘esquerda’, que saiu do seu rumo se encaixam nessa frase?

A ideia pode se referir ao desânimo da esquerda nas últimas décadas. E estamos todos desanimados com razão, pois sofremos derrotas importantes. Eu conheço vários nomes de pessoas que desistiram de lutar, mas o fato é: mantemos nossos valores éticos. Nós, militantes de esquerda, não nos tornamos militantes, não brigamos por um mundo melhor por acaso. Nós continuamos acreditando na perspectiva de sustentar os valores de liberdade, de igualdade para todos. São valores, comprometimentos e reivindicações que incomodam os interesses da classe dominante. A ética ajuda quem desanima a permanecer na luta. Por isso, temos que continuar, até porque nós somos viciados em incomodar certos setores. O importante é não se omitir. Saber que esse é o nosso território por excelência: guerras que nós travamos ao longo da história. Na medida que a história é feita por eles, será contra nós. Quando for feita por nós, terá que ser feita contra eles, e eles sabem disso. Mas é importante dizer que a ética por si só não muda ninguém. Depende do indivíduo, de ele ver um semelhante sofrendo com injustiça e se indignar com aquilo, querer mudar, transformar aquela situação.

Qual foi, ao longo do século 20, e qual é hoje, na sua opinião, o papel dos movimentos sociais mais estruturais, como o MST, e de movimentos ligados às minorias?

Essa é uma questão importante e bastante complicada, tanto que dava pra falarmos só sobre isso. Tenho trocado muitas idéias a respeito desse assunto com os companheiros e amigos mais constantes, como Milton Temer e Carlos Nelson Coutinho. Antes de falar da importância dos movimentos sociais ao longo do século 20, é importante ressaltar a diferença entre movimentos sociais e partidos políticos. Há uma discussão e valorização da organização dos movimentos e às vezes vejo que existe uma esperança de que eles possam sozinhos nos tirar do buraco. Eles são extremamente importantes, mas não bastam, porque tem coisa que só os partidos podem fazer. O limite se dá quando o partido segue a orientação de uma ação histórica que vai transformar a sociedade e vai criar condições para que ela seja menos injusta. Por isso acredito que o partido político é a forma adequada para resolver certos problemas e conflitos, os quais são tocados também pelos movimentos, mas estes são um caminho, não a solução. Os movimentos mostram inquietação, reivindicação de certos grupos, de rebeldes, mas não servem para resolver os problemas da sociedade. Eles são fortes, imprescindíveis, mas têm limites. Acho que os movimentos sociais ao longo do século 20 evitaram e continuam evitando que acabemos numa simplificação excessiva, perversa da diversidade humana. Se alguém não estiver enxergando a diversidade que os movimentos têm trazido, esse alguém tem que desconfiar de que está meio ’cegueta’. Eles nos mostram que somos muito variados e isso é bom. Nós somos interessantes na medida em que somos variados. Quando tentamos ser parecidos, nos tornamos muito chatos. Talvez possamos repensar uma aliança entre essas duas formas de organização.

Walter Benjamim, um autor de quem gosto muito, dizia que o capitalismo não vai morrer de morte natural. Ele pode sofrer com crises, mas consegue se recuperar. O que ele precisa é ser superado. Nós precisamos pensar nisso.

A América Latina conheceu um tipo de socialismo pela revolução cubana. Hoje, vários países do continente elegem, democraticamente, governos considerados de esquerda. É possível essa transformação pelas vias democráticas?

Eu sou do tempo do Salvador Allende, que seguia nessa direção. Depois, ele foi severamente castigado pelas forças reacionárias com o apoio dos Estados Unidos. Na época, existia uma guerra para derrubar o Allende. Ele simbolizava isso: a socialização dos meios de produção pelas vias democráticas. Isso não podemos esquecer. Em relação aos governos da Venezuela, Paraguai, Equador e Bolívia, eu os vejo com uma simpatia natural, mas achando meio esquisitos (risos). Vejo-os como governos de esquerda, mas sem endeusamento, pois ouço muita besteira daquela esquerda. Sei disso porque também já falei muita bobagem (risos). Sobre Cuba, estive lá em 1981, quando participei de um congresso convocado pelo escritor Gabriel García Márquez, e a situação já era muito difícil. Vivia-se a iminência de uma invasão. Nesse encontro, aconteceu um episódio engraçado. Na época, não havia voos diretos para Havana. Por isso, precisamos ir para o Peru. Lá, me pediram para criar um ambiente agradável para o físico Mario Schenberg, para evitar o mau humor dele. Contei algumas histórias divertidas. Ele gostou e me disseram que eu tive sucesso. Fiquei feliz. Depois, soube que ele disse: “O Leandro é tão engraçado, tão simpático que eu até esqueço as bobagens que ele escreve” (risos). Mas voltando, li no jornal de hoje (03/03) que alguns membros do governo de Fidel deixaram o poder. Essa ruptura a que assistimos em Cuba seria inevitável: é difícil manter esse isolamento.


A crise econômica atual, de fato, é uma derrota do neoliberalismo?

Nessas horas, vemos que o capitalismo pifa, o capital financeiro se embola todo. Mas eu acho que existem mudanças e mudanças. Mudanças espetaculares, como essa que nós estamos vendo na imprensa toda hora com menos peso, e mudanças mais profundas. Estávamos falando há pouco que acreditamos que deve haver mudanças no socialismo. A revisão também vale para o capitalismo. Como marxista, eu entendo que o quadro mais dramático aparece quando estudamos a classe operária. Quando Marx fala em classe operária em ‘O Capital’ ele tinha diante de si uma realidade que era clara: um conjunto de trabalhadores da indústria. Dessa ideia, ele extraía muita coisa. Hoje, não existe mais aquela classe operária. Hoje, existe um conjunto de trabalhadores, que é uma massa muito mais diversificada do que a do passado. O computador só ajuda a aumentar essa diversidade. Você tinha uma fábrica, que tinha uma divisão interna de trabalho com representação relativamente fácil. Hoje, temos muitas especialidades e nós estamos atrasados em termos de compreensão desse mundo.


É uma derrota para o capitalismo?

O capitalismo, sem dúvida, está sofrendo uma derrota histórica, mas condicionada e limitada pelas circunstâncias de hoje. Walter Benjamim, um autor de quem gosto muito, dizia que o capitalismo não vai morrer de morte natural. Ele pode sofrer com crises, mas consegue se recuperar. O que ele precisa é ser superado. Nós precisamos pensar nisso.


Qual é o papel da escola (da educação e da produção de conhecimento) para a luta ideológica?

A educação é um terreno contraditório. Ao mesmo tempo em que você está fazendo uma tarefa encomendada de adaptação do indivíduo ao meio social, atuando numa tarefa dada pela classe dominante de justificar as bases da sociedade, você tem que levar em conta que, mesmo camuflando suas verdadeiras motivações, o educador é obrigado a fazer a educação verdadeira, porque a educação não se reduz a uma atividade de mentiras. Em algum momento, ele tem que dizer alguma coisa verdadeira. E o professor é portador da contradição. Ele vai lá e diz algo em que acredita e logo após diz algo que contradiz o que falou anteriormente. É quando ele não consegue ser convincente. Ele precisa do conhecimento, que é sempre o caminho. O conceito de Marx que dá conta disso é a ideologia, que é a distorção do conhecimento que pressupõe o conhecimento. Sem conhecimento não há ideologia. É mentira. Gramsci, que é um ótimo marxista, também trabalha nisso.

Hoje existem bons marxistas, ainda que poucos, trabalhando na educação e na área social. No Brasil, de forma geral, os intelectuais de esquerda estão perplexos, confusos, mas inquietos. Isso é importante.

Uma das principais bandeiras da educação politécnica é o fim da dualidade educacional, que se apresenta como separação entre teoria e prática, formação geral e formação para o trabalho. Existem avanços concretos nesse sentido?

Na verdade, é difícil falar em avanços. Paulo Freire, de certa forma, trabalhou nessa direção. São anseios importantes que nós temos. Esse é um problema antigo da filosofia: A teoria e a prática. Temos que voltar a Marx. Ele tem alguns conceitos políticos superados e outros limitados, marcados pelas circunstancias, mas como filósofo, é genial. É meu interlocutor predileto. Vejo que a abordagem original dele não foi entendida. A teoria de práxis diz o seguinte: a relação entre teoria e prática só pode ser bem compreendida se você, participando do processo ao vivo, souber perceber o quanto a prática precisa dessa teoria e essa teoria se aplica àquela práxis. Então temos como ponto de partida a atividade. Só que não qualquer atividade, como atividades mecânicas que não nos desafiam, não exigem uma renovação do ponto de vista de um certo compromisso prático. Enfim, temos que explorar esse caminho, que é um caminho tênue,  precário, mas é o nosso caminho sempre.

Existe a prática do chope com os amigos que é legítima, respeitabilíssima, por exemplo. Mas a prática do cidadão complica, porque ele tem que fazer escolhas e fundamentar essas escolhas com a teoria. E não é - não pode ser - qualquer teoria.