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Entrevista: 
Virginia Fontes

'A formação do consenso depende de relações de força'

Virgínia Fontes poderia falar sobre muitas coisas. Analista da vida social por uma perspectiva marxista, essa historiadora com doutorado em Filosofia vai da história contemporânea aos estudos de epistemologia. Aliando a vida acadêmica com a militância política, Virgínia é professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense e da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nesta entrevista, ela critica o conceito de controle social, fala sobre as armadilhas das novas formas de participação social que se apresentam e condena a estratégia de busca de consenso.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 01/02/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Raquel Júnia / EPSJV

Existem armadilhas no conceito de controle social da saúde?

Temos dois pontos principais. Primeiro, eu destacaria a própria origem do termo, que é ambivalente, pois tanto marca a forma pela qual se exerce a dominação em uma certa sociedade, quanto procura, pelo contrário, enfatizar a importância de que os setores populares controlem o exercício do poder. Portanto, o conceito - se vamos chamar controle social de conceito - é uma categoria ambivalente, com sentidos opostos já na sua formulação. Se nos referirmos ao controle social usando a segunda acepção, de que os setores populares tenham o predomínio sobre o conjunto das políticas públicas, devemos ter em mente que esse não é um termo cujo uso seja evidente nem para aqueles que estão trabalhando com ele nem para as platéias, a população com a qual estamos trabalhando, que identifica a palavra ‘controle’ com coerção.

A segunda armadilha seria o entendimento do controle social como base para a filosofia do ‘faça você mesmo’. É importante lembrar que se trata de um terreno de lutas - sociais e de classes –, porque o Estado capitalista tem como função reproduzir o conjunto das relações sociais e, ao fazer isso, reproduz a posição predominante, direção e etc de uma dada fração da sociedade e a subalternização do resto. Portanto, em um período em que essa reprodução do conjunto da vida social, como nos últimos anos sob formas democráticas, levou à inscrição de demandas populares no conjunto legal, altera-se a configuração na qual as próprias lutas populares vão se dar. Pois na mesma medida que inscrevemos alguma questão como exigência ao Estado, essa questão passa a estar colocada para ambas as classes. E para o conjunto das classes dominantes é muito mais fácil se organizar, já que tem muito mais recursos, meios e já está organizada enquanto segmentos de representação empresarial em várias áreas, para tentar exercer o controle social como empresa sobre a política pública. O risco é essas empresas configurarem ou desenharem políticas públicas para as quais elas continuem sendo beneficiárias, enquanto se desvencilham das tarefas, que ficam a cargo dos setores populares. Porque é complicado explicar tudo isso? Porque é óbvio que em uma sociedade sem classes todo mundo deve participar em todas as atividades. O ‘faça você mesmo’ não é nenhum problema. Vira problema na medida que o ‘faça você mesmo’ é uma maneira de se desvencilhar de direitos coletivos igualitários para o conjunto da população.

Como você analisa o uso que a saúde faz desse conceito?

Eu acho que quanto mais claro se é na formulação dos termos, no terreno do embate político, melhor: menos risco se corre e mais dificuldade se coloca para que as classes dominantes se apropriem ou possam se apropriar das nossas reivindicações. Portanto, quando dizemos controle social, o que estamos realmente querendo dizer é controle popular? Então que se diga controle popular. É só controle popular ou o que se quer é controle popular para garantir a universalidade das políticas? Há coisas que só fazem sentido em sua expressão completa. Eu não poderia dizer qual é a minha posição sobre o uso do termo controle social no âmbito da saúde pois eu precisaria acompanhar melhor esse debate. Mas, do ponto de vista de uma sociedade igualitária - não porque todo mundo vai ser igualzinho, homogêneo, mas porque todo mundo vai ter a mesma possibilidade e as necessidades básicas humanas estarão igualmente supridas para todos -, não é possível uma política igualitária que não recaia sobre formas de paternalismo ou de burocratismo a não ser que envolva uma participação ativa dos setores subalternos contra as formas de subalternização. Como isso vai se traduzir para uma categoria que dê conta do setor de saúde, eu acho que é um debate que deve estar permanentemente aberto. Eu pessoalmente não gosto do termo controle, acho que é ambivalente demais, mas essa afirmação só pode ser tomada, por enquanto, como opinião e não como um debate sistemático do uso da expressão ao longo dos últimos 20 anos de SUS. Para mim sempre é necessária a socialização plena. O controle supõe sempre meios de coerção. E se não há meios de coerção não é possível exercer controle. O que estamos supondo é que uma socialização plena reduz as exigências de qualquer forma de coerção. E, aí sim, em um horizonte socializado, igualitário, as exigências de controle são muito menores.

Na perspectiva de uma sociedade plenamente socializada, na qual não haja proprietários privados explorando a força de trabalho alheia, o debate sobre a plena socialização da saúde, da educação, do transporte, não estaria mais vinculado literalmente ao controle, mas ao incremento das formas de participação para o avanço permanente dessa socialização. É lógico que eu estou pensando em uma sociedade atualmente inexistente, como horizonte possível. No caso da sociedade atual, é óbvio que, para avançar na luta dentro do Estado e fora dele — contra as formas de privatização e de acaparação do setor público e das políticas públicas por alguns setores que definem a política, dela se beneficiam e, além disso, descarregam os deveres que seriam deveres públicos ou deveres de Estado sobre os ombros dos próprios usuários em nome de uma desburocratização que, na verdade, não ocorre (porque só beneficia a eles mesmos) —,controle tem que ser controle popular, das massas populares contra as formas de acaparação e predomínio patronal e empresarial sobre determinados setores, quer eles se manifestem através do Estado quer a partir de formas organizativas que pretensamente se apresentem como uma maneira de melhor organizar os serviços: ONG, fundação, entidade empresarial, think tank, mais lá o que seja. Portanto, organizações populares contra organizações patronais.

Qual o papel das ONGs nesse processo?

ONG é uma palavra que diz tudo e não diz nada. Como organização não governamental é tudo afora entidades governamentais, a palavra ‘ONG’ expressa pouco e mal essa enorme multiplicidade de entidades e organizações da vida social. E, ao abranger um universo muito diversificado, fica difícil definir do que estamos falando. O conceito gramsciano de aparelho privado de hegemonia é mais claro, mais preciso. Permite demarcar que se trata de terrenos de luta social, na qual organizações e formas organizativas se estabelecem defendendo posições que podem ser meramente corporativas ou podem avançar para outros níveis mais amplos de luta. Infelizmente é difícil evitar o termo ONG. Só pra termos uma idéia: aquelas que se autodenominam orgulhosamente Ongs, filiadas à Abong, não chegam a 250! Mas o levantamento feito pelo IBGE, do qual a própria Abong faz parte, sobre fundações e associações sem fins lucrativos, identifica que existam mais de 300 mil.  Há uma expansão enorme de formas associativas que, embora se organizem juridicamente sem fins lucrativos, podem remunerar (e muito bem) alguns de seus participantes e não remunerar outros, como entidades que se dedicam à contratação de força de trabalho e se apresentam como Ongs. O termo é muito vago. O que temos hoje no quadro social brasileiro? Um crescimento importante de formas associativas que muitos denominam de Ongs, mas que têm um suporte patronal ou empresarial direto. No entanto, elas se apresentam como porta-vozes da sociedade civil.

Esse movimento vem junto com o discurso de ineficiência do Estado...

Não há uma recusa do Estado. O que se recusa de fato são políticas universais de Estado. Até porque todas essas entidades demandam e exigem recursos públicos. A começar pela Abong. Minha grande crítica é que a atuação das Ongs, sendo totalmente ambivalente, conduz à privatização dos processos de política universal. E, em última instância, à própria eliminação desse horizonte universal como uma referência importante ou até mesmo essencial para o conjunto da vida. Uma política universal não quer dizer uma política burocrática, quer dizer que todos são iguais – todos, sem exceção - e não igualados pela capacidade de comprar, pelo volume de recursos que têm para pagar um plano de saúde ou uma escola.

Qual a diferença do controle social como conflito e como consenso?

Aqueles que imaginam o controle social como consenso acham que é possível uma sociedade civil harmoniosa que debata claramente sem nenhuma coerção e que chegue a decisões pactuadas encaminhadas através do Estado. Portanto, abdicam da tentativa de transformar o conjunto das relações sociais expressas no Estado, admitindo modificar apenas esses pequenos acordos pactuados. Essa concepção, que é do Habermas, infelizmente, é a proposta do Banco Mundial.

O Banco Mundial propõe: “Que venham todos os setores, contanto que não discutamos, não debatamos a origem do problema”. Pode-se debater qualquer problema e eventualmente chegar a acordos sobre eles, atuar neles. Qual é o problema, qual é a grande dificuldade dessa perspectiva consensual? É que ela esquece, em primeiro lugar, que a formação do consenso depende de relações de força. O fato de a fala ser livre não pode ocultar o fato de que as condições gerais da vida social estão definidas pela forma capitalista. Ela abdica dos elementos de coerção que estão presentes na linguagem, na fala e que estão presentes no conjunto da vida social para pactuar condições mínimas. Foi isso que levou, por exemplo, nos últimos 30 anos, à existência de uma política internacional de combate à pobreza que não combate as causas da produção da pobreza: no máximo, minimiza suas consequências. No caso brasileiro, se chegou a uma minimização da pobreza por causa das bolsas, mas uma minimização muito mínima. Essa situação simplesmente mantém tudo. O que ela esquece? Que, por exemplo, a lógica capitalista leva a crises e que, na dinâmica das crises, todos os recursos públicos, sociais estão sendo encaminhados para o capital, altamente concentrado, para aqueles que justamente provocaram a crise, às custas do resto. O resto é quem está pagando essa conta. Como vai se dar esse pagamento? Com menos direitos, trabalho mais precarizado e flexibilizado, etc. Portanto, os direitos acabam se concentrando na ponta da grande propriedade do capital. Para o resto da população, não há nenhum direito. Universalidade zero. Esse é o problema desse grupo consensual. De novo: que consenso é esse que não põe em questão os fundamentos do processo? Afirma-se que crise é crise, que é preciso que se impeça seu alastramento e ponto. O problema é quem perde o quê. Os Estados estão garantindo a socialização do prejuízo: o lucro é privado e o prejuízo é público. Portanto, evidentemente, uma teoria dessas de controle social lastreada pelo consenso esquece que a vida social está imersa em uma luta que não é solúvel na fala. Ela só pode se modificar através da modificação real das condições gerais de existência. Portanto, qualquer teoria ou reflexão sobre controle social que parta da suposição desse consenso generalizado e idílico já não parte da realidade: as relações sociais não são nem pactuadas nem idílicas. Portanto, qualquer expressão sobre controle social tem de envolver a luta social, em condições de diferença, em condições de dificuldade, de organização diferenciadas, levando em conta as diferentes classes sociais.

Isso é retrato da despolitização, que diminuiu a capacidade de mobilização social?

A Lúcia Neves vem analisando o que caracterizou como repolitização, ou seja, a capacidade dos setores dominantes do capital, altamente concentrados, de disseminar aparelhos privados de hegemonia nos setores populares, construindo a partir daí uma nova pedagogia, reafirmando a sua hegemonia. Eu tendo a ir nessa linha. Não é uma despolitização e isso é triste. É uma repolitização rebaixada. A tese dela dá conta inclusive, por exemplo, desses dois governos Lula e da atuação do FHC. Mas, se olharmos hoje para a eleição do Obama, não deixa de ter alguma característica semelhante. É uma repolitização rebaixada.