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Entrevista: 
Ineke Dibbits

'A interculturalidade deve apontar para a atitude de assumir positivamente a situação de diversidade cultural'

Em 1974, uma holandesa de 21 anos chegou à Bolívia para permanecer por cerca de um ano. O amor por um boliviano e pela cultura do país, no entanto, fez com que ela desistisse de retornar a Holanda. "Eu gosto muito de viver aqui. Fui educada de forma muito rígida, com a idéia de que existe apenas uma forma de se ‘viver bem'", e, na Bolívia, pude conhecer e desfrutar a diversidade de maneiras de ver a vida", conta. Hoje, a pedagoga Ineke Dibbits, diretora da ONG boliviana Taller de Historia y Participación de la Mujer (TAHIPAMU) - que trabalha pelos direitos das mulheres, em particular aos relacionados à saúde -, faz uma importante reflexão sobre a questão da interculturalidade na área da saúde e na formação de trabalhadores para o setor, que está certamente relacionada à sua própria experiência no 'mundo da vida'.
Ana Beatriz de Noronha - EPSJV/Fiocruz | 15/07/2010 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como você definiria o conceito de ‘interculturalidade'?

Muitos falam indistintamente de inter-, multi- e pluriculturalidade. Miguel Rodrigo Alsina, no entanto, afirma que os termos multi- e pluriculturalidade marcam o estado de uma sociedade na qual coexistem várias comunidades culturais com identidades diferenciadas, enquanto a interculturalidade faz referência à dinâmica que se estabelece entre elas.

Diana De Vallescar, por sua vez, diz que a diferença entre as perspectivas multicultural e intercultural é que a primeira pretende assegurar o respeito, reconhecimento e a tolerância enquanto a segunda vai além, concedendo a cada um dos seus membros a faculdade de contribuir para a dita sociedade com seu aporte particular.

Essas referências nos obrigam a explorar as características das dinâmicas de interação cultural observadas nos contextos locais, nacionais e regionais e que podem ser harmônicas e complementares, mas também conflitivas e assimétricas, seja de forma aberta ou "dissimulada'.

Na minha concepção, a interculturalidade deve apontar para a transformação das relações sociais, para a atitude de assumir positivamente a situação de diversidade cultural. E é essa idéia que predomina na literatura sobre o tema.

É possível dizer que interculturalidade tem a ver com a comunicação?

A interculturalidade enfoca a necessidade do diálogo, da vontade de inter-relação e não de dominação. Como afirma De Vallescar, a condição fundamental para um diálogo ser intercultural é sua concepção como um processo optado, permanente e sempre inacabado, no qual o outro sempre entra em relação dinâmica e interpelante. Um diálogo cujas regras, como sugere Raimon Panikkar, não podem ser firmadas unilateralmente e nem a priori, mas que devem ser estabelecidas no decorrer do mesmo.

Eu ainda acrescentaria outra condicionante: a confiança mútua. A única desconfiança que pode haver é a decorrente da incerteza de que o diálogo irá ocorrer num ambiente de respeito e autêntica disposição de (re)conhecer-se. Por não haver comunicação perfeita, nem entre interlocutores de uma mesma cultura, mesmo que um diálogo não resulte em acordos, são raros os motivos para se perder a confiança.

O que mais você considera importante num diálogo intercultural?

Para mim, a compreensão é um elemento central na construção de relações interculturais. Alsina sustenta que uma comunicação só se torna eficaz quando se chega a um grau de compreensão ‘aceitável' para os interlocutores, isto é, a interculturalidade só ocorre quando um grupo começa a entender e assumir o sentido que as coisas e objetos têm para os ‘outros'.

Muitos, no entanto, duvidam da possibilidade de se chegar a uma compreensão cabal de uma cultura que não seja a própria. Para Panikkar, por exemplo, nossa abertura à interculturalidade depende da renúncia ao ideal de uma realidade totalmente compreensível, uma vez que a interculturalidade não deve depreciar a lógica, mas não pode ser reduzida a um problema lógico. Segundo ele, grande parte dos pesquisadores ocidentais ou ocidentalizados projeta um pensamento causal e ‘lógico' sobre as manifestações de outras culturas que não corresponde ao da autocompreensão das pessoas do lugar. A interculturalidade ocorre em plano de igualdade e nas duas direções, enquanto o padrão do pensamento científico é único e, ainda que seja excelente em seu próprio campo, quando se extrapola causa a destruição do universo simbólico das outras culturas. Por conta disso, ele introduz um novo elemento que precede a intenção de conhecer e que permite realizar o esforço necessário à compreensão do outro: a simpatia.

Humberto Maturana, por sua vez, lembra que a relação ética surge do interesse, cuja origem é emocional, que temos pelo outro e não por conta de um argumento racional. E eu finalizo citando Fornet-Betancourt, para quem o diálogo intercultural tem o caráter de um projeto ético guiado pelo valor da acolhida do outro.

O que se pode entender por saúde intercultural ou interculturalidade em saúde?

A doença, o sofrimento e a morte, bem como a motivação para conservar a saúde são fatos biológicos e sociais universais. Todos os grupos humanos criam um sistema médico capaz de recuperar a saúde, promover o bem-estar e, simultaneamente, explicar de forma consistente o fenômeno da doença.

Todo sistema médico - conjunto mais ou menos organizado e coerente de agentes terapêuticos, modelos explicativos de saúde-doença, práticas e tecnologias a serviço da saúde individual ou coletiva - visa atender as necessidades de um determinado entorno cultural e conta com uma dimensão conceitual e de conduta específica, além de distinguir meios de autolegitimação e validação.

Na biomedicina, por exemplo, os experimentos e as provas clínicas são importantes fontes de validação do pensamento científico. Um médico raramente aceitará a intervenção de um espírito maligno como causa de uma diarreia. Em outras culturas, no entanto, os sonhos de um xamã, sinais na natureza e aparições certamente serão aceitas como fonte de legitimação.

A lógica que opera na definição de saúde e doença pode ser a mesma (busca causas, alternativas e consequências), entretanto, as premissas culturais e provas de validação são bem diferentes. O resultado é que um mesmo fenômeno pode gerar diferentes explicações para a enfermidade.

Todos os processos de interação social que envolvem sistemas de crenças diferentes estão sujeitos a fricções. No entanto, os conflitos entre diferentes sistemas médicos não resultam apenas dos diferentes modelos que os sustentam, mas também da dominação social de um sistema sobre outro. A cultura biomédica, expressa pelo sistema ocidental, sustenta ser capaz de resolver quase todos os problemas de saúde da população, independentemente dos contextos sociais e culturais em que ocorrem. A experiência, entretanto, mostra que inúmeras dificuldades ocorrem quando não se considera a cultura da população atendida, entre elas, o repúdio e a falta de adesão às práticas médicas ocidentais.

Em nossos países, a diversidade cultural quase sempre foi considerada uma barreira para se chegar à população mais necessitada. A solução vertical, baseada em nossas próprias certezas, de ‘educar' essas pessoas para que elas assimilassem valores mais ‘idôneos' não deu resultados. A proposta da interculturalidade acaba com a ideia de que os valores e práticas de atenção à saúde do sistema oficial são invariavelmente mais adequados e menos sujeitos a erros.

Não se trata de definir que ideias ou conhecimentos são mais corretos, ‘sérios' ou ‘científicos', mas gerar mais conhecimento e fortalecer os elementos comuns, a partir do diálogo intercultural. Em resumo, espera-se que o diálogo intercultural permita: (1) que o pessoal de saúde conheça a maneira de pensar, de fazer as coisas e os benefícios das práticas locais de cuidados de saúde e se apropriem daquelas que considere benéficas; (2) que a população forme seus próprios critérios, com base em uma informação ampla e sensível sobre as práticas e benefícios da medicina ocidental para poder mudar suas opiniões e práticas, se acharem conveniente; e (3) que os serviços sejam reorganizados a fim de atender as necessidades específicas da população.

É necessário, portanto, dar mais atenção ao desenvolvimento das competências comunicacionais, pois, especialmente na atenção primária, a ciência médica é prática e interpretativa. O protagonismo não é da tecnologia, mas da comunicação.

A interculturalidade pode ser reduzida à questão étnica ou também leva em conta outros aspectos?

Eu concordo com Patrício Guerrero quando ele diz que a interculturalidade ultrapassa o étnico, pois interpela toda a sociedade em seu conjunto, implicando a inter-relação e a interação dialógica de diversos atores, representados por etnias, classes, gêneros, regiões comunidades, gerações, etc., com distintas representações e universos simbólicos.

Os princípios ordenadores da medicina ocidental emanaram de um modelo androcêntrico e apesar de o androcentrismo - enfoque unilateral que toma o homem (varão - andros) como medida de todas as coisas - remeter ao sexismo, pouco se fala das relações de poder com base na iniquidade de gênero, como um elemento a se considerar quando se pretende abrir espaços de diálogo intercultural.

O androcentrismo reduz a realidade ao tentar tornar universais ideias ou fatos que consideram apenas o ponto de vista masculino. Como espaço de poder, construído majoritariamente por homens, a ciência médica foi utilizada de várias maneiras para perpetuar a condição de subordinação das mulheres.

É preciso então desconstruir o processo de domesticação que as mulheres sofreram por parte desse poder e do modelo de atenção derivado do mesmo, para recuperar o direito de elas decidirem sobre o próprio corpo, escutando e analisando suas próprias prioridades.

O que mudar na formação em saúde para o estabelecimento de uma saúde intercultural genuína?

A formação em saúde tem se caracterizado pelo verticalismo que trata o educando como mero receptor e repetidor, ou seja, um objeto sujeito a processos de homogeneização focados na questão de ‘objetividade' científica. A ideia de que a eficácia da intervenção médica depende da ‘neutralidade afetiva' - distância emocional entre o terapeuta e a ‘realidade' que pretende atender - leva, no imaginário médico, a uma relação de objeto com o paciente e a um desprezo da própria subjetividade.

A biomedicina, como destaca Fernando Lolas Stepke, não estuda o corpo vivo e real do paciente, mas um objeto construído pela teoria imperante e, apesar de, na prática, a medicina se relacionar com o corpo, essa relação é estabelecida com o corpo inerte, considerado como máquina ou cadáver. Isso faz com que, de acordo com Felipe Rilova Salazar, o específico da condição humana passe a ser um termo estranho ao discurso médico.

Quando perguntados por que decidiram trabalhar nessa área, os trabalhadores da saúde geralmente citam a ajuda ao próximo e à população mais necessitada como principal motivação. Durante a formação e no exercício profissional, no entanto, o interesse se volta para a doença. Para assimilar de forma sólida a crença de que a doença é mais bem compreendida na medida em que se consegue anular as subjetividades, o estudante passa por um aprendizado que anula sua criatividade e autonomia de pensar e sentir.

No cenário da atenção em saúde a partir da visão biomédica, reivindicar a interculturalidade, que implica relação, vínculo e desenvolvimento da capacidade afetiva, acaba se tornando um grande paradoxo. Ainda que o modelo biomédico - baseado na objetividade e na coisificação dos envolvidos - não possa ser vivido em sua versão pura, a missão de construir relações interculturais a partir das subjetividades, causa inevitavelmente repúdio, confusão e até mesmo conflito. 

Há como reverter essa tendência?

Paulo Freire dizia que ‘roubando' a subjetividade, se rouba a palavra, a expressividade e a cultura dos sujeitos. Nessa perspectiva, qualquer processo educativo que pretenda apoiar o desenvolvimento de competências e atitudes propícias ao estabelecimento da relação e do diálogo intercultural nos serviços de saúde deve questionar tudo o que desumaniza, educar para a expressão e, dessa forma, facilitar a desconstrução do temor das subjetividades própria e alheia. E a aceitação da subjetividade, como diz Habermas, passa por uma abordagem do ‘mundo da vida'.

A conexão do mundo da vida com o desenvolvimento da relação intercultural, por sua vez, é estabelecida por Joseph Esquirol para quem o mundo da vida cotidiana constitui a base do mundo comum e que só nesse âmbito podemos ser compreendidos por nossos semelhantes e agir junto com eles. Interculturalidade é comunicação entre sujeitos que se sabem semelhantes, únicos e diferentes.

Quando se trabalha o enfoque intercultural a partir da suposição das barreiras culturais se parte de uma visão estática e pessimista de oposição entre culturas. A perspectiva da ‘vida em si', por outro lado, permite visualizar experiências interculturais em que todos participam em algum grau, mas ao não ser reconhecida, nem valorizada e até mesmo depreciada pelo sistema de saúde oficial, é silenciada pelos próprios sujeitos.

Fornet-Betancourt também utiliza a abordagem da vida cotidiana para minimizar as dificuldades do diálogo intercultural. Para ele, a interculturalidade não é apenas um tema teórico, mas uma experiência vivida em nosso mundo de vida cotidiana e na qual, por meio de um saber prático, vamos compartilhando vida e história com o outro. A questão, portanto, seria cultivar esse saber de maneira reflexiva para que a interculturalidade se converta realmente em uma qualidade ativa em todas as nossas culturas.

Esse, para mim, é um ponto de partida para a proposta de uma metodologia de ensino capaz de desconstruir a imagem da barreira e da dificuldade, e repensar a autorrepresentação inequívoca, que nega as ambiguidades e os matizes nas identificações culturais.

A ciência atribui muito valor à certeza, e a simples expressão de dúvida pode levar à censura e à estigmatização. Como a identificação com valores da cultura ‘subalterna' pode ser interpretada como um questionamento da cultura biomédica e da fidelidade ao seu sistema, opta-se pelo ocultamento. É assim que o sistema e sua cultura institucional ajudam a construir barreiras culturais e fortalecem a idéia de que o preço da ascensão social é pago pela adequação cultural ao pensamento único, ocidental.

Na minha perspectiva, processo educativo para a construção de relações no marco da interculturalidade deve incentivar a livre expressão de idéias, conhecimentos e experiências e deve estimular a autocompreensão e a autoaceitação, pois a intolerância consigo mesmo é, inevitavelmente, o cimento para a intolerância com os demais. 


 

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