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Entrevista: 
Lys Sobral Cardoso

"A vulnerabilidade socioeconômica é um fator determinante para as formas contemporâneas de escravidão"

No Brasil, país da América que recebeu o maior número de africanos escravizados, a escravidão durou mais de 300 anos e só foi encerrada em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Teoricamente. Na última semana, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou que, na maior ação conjunta no país com a finalidade de combater o trabalho análogo ao de escravo e o tráfico de pessoas*, 337 trabalhadores foram resgatados; desses, 149 eram ainda vítimas de tráfico de pessoas. Dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), subordinada ao Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), apontam que, só em 2021, 1.959 pessoas haviam sido resgatadas no Brasil, maior número nos últimos cinco anos, mais que o dobro registrado em 2020; enquanto só até maio desde ano, 500 vítimas haviam sido libertadas. O trabalho análogo ao de escravo viola os direitos humanos e atenta contra a dignidade de homens e mulheres. Pessoas que, em busca de oportunidades, se veem presas a um ciclo de exploração em que apenas a denúncia pode libertá-las. Nesta entrevista ao Portal EPSJV, a procuradora do Trabalho e coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), do Ministério Público do Trabalho (MPT), Lyz Sobral Cardoso, fala sobre a necessidade de fiscalização e os caminhos a serem percorridos até que essas condições de trabalho degradantes, entre outras violências, sejam, finalmente, erradicadas.
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 01/08/2022 10h35 - Atualizado em 01/11/2022 10h39

Como se dá, no Brasil, o entendimento de trabalho análogo à escravidão?

O trabalho análogo à escravidão é definido em lei pelo Código Penal, no artigo 149. O artigo aponta como condições de trabalho análogo ao de escravo: o trabalho forçado, a servidão por dívidas, as condições degradantes do trabalho e a jornada exaustiva. A caracterização sempre se dá nos casos concretos, ou seja, indo ao lugar e verificando as situações, analisando a documentação e verificando um conjunto de irregularidades que levem a situação tal, que retirem a dignidade por completo daquele trabalho.

Em 2021, segundo o Radar do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, 1.959 pessoas foram resgatadas de trabalhos análogos à escravidão. Esse ano, até maio, foram 500 pessoas. A que você atribui os altos números de vítimas de regimes de trabalho análogos à escravidão nos últimos anos?

A vulnerabilidade socioeconômica é um fator determinante para as formas contemporâneas de escravidão no Brasil. Então, com a crise econômica dos últimos anos, em especial de 2020 para cá, com a pandemia, não temos dados consolidados comprovando quais foram os fatores que possibilitaram o aumento do número de casos, mas temos algumas pistas, e essa da situação socioeconômica do país, é, sem dúvidas, uma delas. A Reforma Trabalhista também está na nossa lista de fatores que contribuem para isso, devido à piora das condições da realização do trabalho formal, da situação de emprego no Brasil, e ainda, por conta da aprovação da terceirização no Brasil, que propicia muitas situações de precarização no ambiente de trabalho.

A Reforma Trabalhista também está na nossa lista de fatores que contribuem para isso, devido à piora das condições da realização do trabalho formal, da situação de emprego no Brasil, e ainda, por conta da aprovação da terceirização no Brasil, que propicia muitas situações de precarização no ambiente de trabalho

Quais as áreas diretamente ligadas à fiscalização e combate ao trabalho escravo? Falta investimento?

A fiscalização e o combate ao trabalho escravo são atribuições de vários órgãos. Alguns têm atribuição trabalhista como Auditoria Fiscal do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, e ainda as Polícias e o Ministério Público Federal, com atribuição para as questões criminais, e a Defensoria Pública, com atribuição para atendimento às vítimas. E, conforme o fluxo estabelecido nos Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, o primeiro de 2003 e o segundo de 2008, está previsto que as operações de combate são interinstitucionais. No caso da fiscalização e combate ao trabalho escravo, a Auditoria Fiscal é quem coordena as ações interinstitucionais. E essa auditoria, está hoje, no Brasil, com um déficit em seu quadro de quase 60%, ou seja, o prejuízo é evidente.

O Projeto de Lei 3842/12 que tramita na Câmara retira da definição de trabalho escravo termos como “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Pela proposta, o trabalho análogo ao de escravo seria apenas aquele realizado sob ameaça, coação ou violência, com restrição de locomoção. Você acredita que a pressão de setores do empresariado pela flexibilização do entendimento sobre trabalho escravo tem afetado a fiscalização?

A fiscalização tem acompanhado esse e outros Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional para evitar essa alteração legal, inclusive porque o próprio Supremo [Tribunal Federal] já entendeu que o crime de trabalho escravo não fere somente a liberdade de ir e vir. Esse crime fere o direito à dignidade do trabalho, à dignidade do trabalhador e da trabalhadora, da pessoa que está prestando o serviço. Por isso, não se pode compreender, se é que algum dia se compreendeu desse jeito, o trabalho escravo como meramente a restrição da liberdade de ir e vir. Nem na época da escravidão, quando ela era permitida no Brasil, se configurava desse jeito. A própria OIT [Organização Internacional do Trabalho] já consolidou o entendimento de que, dentro do conceito de trabalho forçado, termo utilizado nas Convenções da OIT, está compreendida a dignidade no trabalho, não somente restrição à liberdade de locomoção.

A imensa maioria das vítimas, todos os anos, é resgatada ou oriunda do meio rural. E isso se deve à ausência da reforma agrária e outras medidas de inclusão social que não aconteceram no Brasil, no pós 13 de maio

A maior parte de trabalhadores em condições de trabalho análogas à escravidão é encontrada na área rural. Que medidas têm sido tomadas para reduzir esse número?

Existem alguns diagnósticos no Brasil que mostram o perfil das pessoas que já foram resgatadas de situações de escravidão contemporânea. A imensa maioria das vítimas, todos os anos, é resgatada ou oriunda do meio rural. E isso se deve à ausência da reforma agrária e outras medidas de inclusão social que não aconteceram no Brasil, no pós 13 de maio [data da assinatura da Lei Áurea]. Então, a concentração das terras e dos meios de produção no campo, nas cidades do interior do Brasil, são determinantes para a permanência do trabalho escravo no Brasil e para esse perfil identificado.

Um levantamento publicado em janeiro pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), mostrou que o número de pessoas resgatadas do trabalho escravo doméstico aumentou 1.350% em cinco anos, mas acredita-se que ainda há muitas pessoas vivendo nestas condições.  Qual é o perfil das pessoas resgatadas de trabalho escravo doméstico e por que é tão difícil resgatá-las?

O trabalho escravo doméstico é uma situação na qual temos uma pista forte no sentido da invisibilidade. A fiscalização tem no seu radar o fato de que é necessário que essa forma de exploração esteja sempre na pauta nos próximos anos, pois existe uma subnotificação e o perfil dos casos que já temos identificados, nos quais já houve resgate de vítima, é de pessoas que, ou passaram por situações de trabalho infantil, ou chegaram ainda crianças nas residências das pessoas, que residem nas casas dos patrões, não tiveram acesso à estudo, a escolas, a outras formas de trabalho. Muitas delas sofreram violências, inclusive, nos ambientes de trabalho, e muitas não puderam constituir núcleo familiar, nem comunitário. As grandes dificuldades para que aconteçam os resgates no trabalho escravo doméstico, na verdade, são duas: a primeira, é uma tolerância social a essa forma de exploração, de violência, que ainda existe e faz com que as pessoas ou adotem essa prática ou permitam que ela aconteça, sem denunciar. E a segunda diz respeito à própria estrutura da fiscalização, pois a exploração acontece no âmbito doméstico. Devido à regra constitucional da inviolabilidade de domicílio é necessário pedir uma autorização judicial prévia para entrar na residência, para realizar a fiscalização. Também são necessários cuidados adicionais, já que é fundamental ter em mente que esta fiscalização está acontecendo dentro de uma residência.

Qual é a punição para o empregador que submete um funcionário ao trabalho análogo à escravidão?

Conforme o artigo 149 do Código Penal, a punição prevista para o crime de trabalho análogo ao de escravo é de reclusão de dois a oito anos, além de multa. Logo na sequência, o Código Penal prevê, no artigo 149 –A, o crime de tráfico de pessoas. O tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho também é uma forma de escravidão contemporânea. Nele, a pena mínima é um pouco maior, de quatro a oito anos, além da multa. Isso com relação à punição criminal. Além dessa, existem as punições trabalhistas. Então, a Auditoria Fiscal do Trabalho passa por escrito as infrações verificadas, o Ministério Público do Trabalho busca a reparação coletiva dos danos causados à sociedade pelo fato de que houve um caso, ou vários, de trabalho escravo. Também busca a reparação das vítimas. A Defensoria Pública da União faz esse trabalho de atendimento às vítimas no pós-resgate e buscando seus direitos, como regularização de documentos, inclusive nos casos de imigrantes. Sobre a punição, há um estudo contratado pela Conatrae. Esse estudo foi publicado no ano passado, 2021, mostrando os dados sobre o sistema de justiça no Brasil. Lá, aparece que o sistema criminal de escravidão contemporânea ainda tem números muito baixos, poucos casos de punição criminal por esses dois crimes: o de trabalho análogo ao escravo e tráfico de pessoas. Com relação à responsabilização trabalhista, temos muito mais avanços. E o Ministério Público do Trabalho tem buscado aumentar tanto as indenizações individuais para as vítimas, como as reparações coletivas para toda a sociedade.

Ao não punir severamente o trabalho escravo, o Brasil está violando tratados internacionais e convenções da OIT, além da Agenda 2030 da ONU de desenvolvimento sustentável. Qual é o impacto disso internacionalmente?

O Brasil é signatário das convenções da OIT sobre escravidão, como também das convenções da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre escravidão. Como membro da ONU, se compromete a cumprir a Agenda 2030, o que nos dá menos de oito anos para erradicar qualquer forma de escravidão e de tráfico humano do nosso território. Isso significa que, quando há casos de escravidão, o Brasil está violando essas convenções. Na prática, os impactos são os seguintes: o primeiro deles é um constrangimento na esfera internacional. O Brasil, inclusive, já foi condenado por um caso de trabalho escravo, em 2016, não pelo sistema ONU, mas pelo sistema americano. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por um caso de trabalho escravo na sentença de 20 de outubro de 2016. Além disso, alguns anos atrás, no caso ‘José Pereira’, também perante o sistema americano de direitos humanos, o Brasil, para evitar a condenação, assumiu o compromisso de adotar medidas. Entre elas, podemos apontar, principalmente, a criação do grupo móvel e adoção do conceito do artigo 149 do Código Penal, explicitando as quatro modalidades de trabalho análogo ao escravo.

* Operação Resgate II - Maior ação conjunta no país com a finalidade de combater o trabalho análogo ao de escravo e o tráfico de pessoas, integrada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência, Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF). Começou no dia 4 de julho e segue em andamento. Quase 50 equipes de fiscalização estiveram diretamente envolvidas nas inspeções ocorridas em 22 estados e no Distrito Federal durante o mês de julho de 2022.
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