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Entrevista: 
Taiguara Souza

‘Essa resposta altamente truculenta e violadora dos direitos fundamentais busca ocultar a legitimidade da reivindicação'

Muitas são as ações atuais que têm sido associadas aos tempos de ditadura civil-militar. Não só a Lei de Segurança Nacional de 1983, que voltou a ser consultada recentemente, mas também a ação violenta da polícia e a criação de novas leis com caráter ainda mais repressivos têm cerceado direitos fundamentais da Constituição, como o de reunião e manifestação. Nesta entrevista, o professor de direito penal do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e membro da Comissão Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Taiguara Souza, aponta os principais problemas destas atuações dos poderes Executivo e Legislativo no Brasil desde as manifestações de junho.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 24/10/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Como você avalia todo este endurecimento em relação à prisão de manifestantes?

Nós observamos que há um traço comum nessa resposta do Estado às grandes manifestações que têm eclodido nas metrópoles do Brasil: o excessivo uso da força do aparato policial. Temos ações das instituições policiais que não condizem com as garantias e os princípios basilares do Estado democrático de direito. O que nós temos, na realidade, é o que chamamos de criminalização dos movimentos sociais. Essa resposta altamente truculenta e violadora dos direitos fundamentais busca ocultar a legitimidade da reivindicação, que é trazida por esses movimentos, organizada nessas vozes que se manifestam nas ruas. Sem dúvida, não há respaldo jurídico para o excesso. Em nenhum contexto, é possível tirar essa prerrogativa que qualquer cidadão tem.

Como você avalia o caso do casal de São Paulo que foi enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Esta lei ainda tem validade? Ela é legalmente adequada para a situação dos manifestantes?

Essa lei é de 1983. Cinco anos depois, foi promulgada a Constituição Federal e uma legislação desta natureza entra em conflito com o conteúdo da Constituição. Por uma série de razões essa lei, portanto, não pode prosperar. Primeiro porque a Constituição tem hierarquia sobre qualquer lei. Segundo porque, embora não tenha sido revogada de maneira expressa, ela não foi recepcionada pela Constituição. Quando saímos de um regime de exceção e entramos numa suposta democracia, aquela legislação anterior à nova Constituição, que demarca o Estado democrático de direito, entra em descompasso com a nova legislação. A doutrina chama isso de um fenômeno de não recepção da norma. Ainda que esteja em vigor, ela não pode ser aplicada porque está em descompasso com essa ordem jurídica que surge em 1988. Portanto, uma lei que é característica de um Estado ditatorial não pode vigorar em regime democrático.

Como você avalia a lei do estado do Rio de Janeiro que proíbe uso de máscaras em manifestações no Rio? Juridicamente, existem pontos críticos nessa nova lei?

Tanto a lei de 1983 quanto esta de agora têm como objetivo a restrição de garantias fundamentais que são previstas na Constituição. A lei aprovada no Rio de Janeiro padece de uma série de problemas. Ela foi criada com o objetivo, pelo menos no seu discurso, de evitar o anonimato na manifestação política. O argumento na confecção da lei é de que na Constituição Federal o direito de manifestação é condicionado à realização desta sem o anonimato. De fato, a Constituição estabelece isso, mas o que ocorre é que esta liberdade de manifestação não coíbe o outro direito que é o de liberdade de reunião. Então, o que ocorre nas manifestações nas ruas é o direito de reunião, porque as pessoas se reúnem nas ruas para levantar uma plataforma política. Esta lei não poderia de maneira nenhuma cercear o direito de reunião, que é uma norma que nós chamamos de eficácia plena, que não pode ser limitada por outra norma. A liberdade de reunião não pode ser restringida por outra lei. Outra questão que decorre desta lei estadual também remonta a um fato que era característico da ditadura militar, que é a prisão por averiguação. Em razão desta lei, agentes policiais estão conduzindo manifestantes mascarados ou que estejam portando máscara para prestar esclarecimento para serem identificados na delegacia. Isso é muito criticado porque, em um contexto em que a polícia militar tem sido observada por um grande número de condutas arbitrárias, essa condução até a delegacia também pode gerar outros arbítrios, ainda na viatura ou na própria delegacia. Essa detenção por averiguação não ajuda a garantir o processo democrático porque dá muito poder ao arbítrio policial. Outra questão ainda sobre essa lei é que ela trata de um conteúdo que tem influência no processo penal quando permite essa detenção para averiguar o cidadão. A Constituição estabelece que, quando tem influência no processo penal, essa legislação tem que ser de competência do Congresso Nacional , ou seja, tem que ser uma lei federal e não estadual, como é o caso. Certamente, ao ser questionada no Supremo Tribunal Federal, eles vão considerar inconstitucional porque se trata de assunto para uma lei federal e não estadual.

Ainda no Rio de Janeiro, 70 pessoas foram presas de forma arbitrária durante a manifestação do dia 15 de outubro. A prisão delas, até onde sabemos, foi possível devido à Lei de Organizações Criminosas. Esse enquadramento é válido?

O número informado por organizações que têm atuado em defesas dos manifestantes foi o de 84 detenções que geraram prisões naquele dia. Entre adultos e adolescentes, o número de detenções supera o de 200 pessoas. Deste total, 27 foram acusados deste crime novo que é chamado de organização criminosa. Tivemos em agosto esta lei aprovada, que começou a vigorar em setembro, e cria no seu artigo 2º, este crime. E qual é o objetivo do legislador com esta nova lei? Punir aquele que integra uma associação de quatro ou mais pessoas que se organizam de maneira estruturada para a prática de crimes com o objetivo de ter uma vantagem. Há um detalhe importante também: crimes praticados por esta organização devem ser punidos com penas acima de quatro anos. A intenção, portanto, é coibir milícias, facções organizadas de crimes, crimes econômicos praticados por grandes corporações, seja na área de transporte ou empreiteiras que tenham relações criminosas com o setor público. Aí, sim, podemos considerar estas organizações como criminosas, que possuem tentáculos, estrutura. De maneira alguma, a autoridade policial poderia imputar àquele que está exercendo o seu direito de manifestar sua opinião ou o direito da liberdade de reunião este delito. Em muitos casos, tentaram imputar a manifestantes essa conduta da lei de organizações criminosas, mas como é necessário também demonstrar que esse acusado teria praticado ou teria se organizado para praticar crimes com pena de quatro anos, em muitos casos, a autoridade policial declina da ideia de aplicar esta lei, e acaba aplicando contra o manifestante o crime de formação de quadrilha, já previsto no código penal, no artigo 288 - que é organizar três pessoas ou mais para praticar qualquer tipo de crime. Evidentemente é outra imputação arbitrária, criminalizante, que busca tirar o foco das reivindicações que são legítimas criar na opinião pública o imaginário de que essas pessoas que estão ali são vândalos, criminosos e que deveriam ser punidos, que deveriam ser privados da sua liberdade.

O jornal O Globo estampou, na capa, o rosto de três presos recentemente em manifestações e, na manchete, chamava os 70 presos de vândalos. A maioria deles, no entanto, foi solta por falta de provas. Existe alguma ilegalidade na atitude do jornal? É passível de alguma ação judicial?

Se o jornal teve acesso a essas informações e imagens do inquérito, há também um desvio não só de violar o direito de privacidade desses manifestantes, desses cidadãos - o que certamente cabe como resposta legal para uma ação indenizatória por danos morais ou até mesmo por danos materiais, caso esse sujeito venha a ter consequências econômicas como, por exemplo, perder o seu emprego ou trabalho de freelancer por ser associado a prática de crimes, ou perder os seus rendimentos na proporção que tinha antes, por conta deste tipo de vinculação que são negativas e difamatórias. É possível ainda uma ação indenizatória contra o Estado, porque o acesso aos dados no inquérito não é permitido a qualquer pessoa, apenas às que são implicadas no processo. Evidentemente não é legal o acesso a informações do processo para uma pessoa que não representa os interesses do acusado e que também não representa o Ministério Público, que vai, depois, com essas informações colidas pela polícia, apresentar a denúncia, caso exista alguma conduta que é considerada de fato criminosa. Essas informações não podem ser veiculadas, são informações que devem ser preservadas pela autoridade policial.

Por que alguns manifestantes conseguiram a liberdade e outros não?

Acontece que não ocorre apenas um inquérito. Os registros de ocorrência foram feitos em delegacias diferentes e apresentam versões distintas Pode-se imputar condutas criminosas em uns, em outros pode não haver, alguns podem ter provas convincentes, outros não. E esses registros vão para uma vara criminal, e, mais uma vez, vão ser submetidos a uma avaliação subjetiva. O juiz vai interpretar essa ocorrência de uma maneira distinta.

Têm-se caracterizado os manifestantes presos como presos políticos. Você concorda com essa avaliação?

Na criminologia crítica, vamos encontrar alguns autores que defendem que todos os presos são presos políticos, todo condenado é condenado por uma motivação política, porque o direito penal não atinge todas as pessoas da mesma forma, existe uma seletividade do direito penal. Essa seleção tem critérios políticos não só na punição do cidadão manifestante, mas também quando pune o tráfico de drogas na favela, mas não pune o tráfico de drogas no condomínio de luxo na zona sul. A mim parece que talvez fosse mais adequado falar destas prisões arbitrárias que estamos observando agora como prisões de manifestantes ou não manifestantes.

A polícia prende e o judiciário solta. Qual tem sido o papel desempenhado pelos governos Executivos, que comandam as polícias, e pelo Judiciário na garantia dos direitos a partir das atuais manifestações?

Essa é uma falsa dicotomia de que a polícia prende e o judiciário solta. A polícia aplica a lei e o Judiciário também. Não deveria haver essa dicotomia. Nós temos observado que o poder Executivo tem uma influência muito forte nas ações policiais. Vimos recentemente uma ação do governador Sérgio Cabral, e, se eu não engano, do secretário de segurança, José Mariano Beltrano, alegando que seria adequado aplicar a lei de organizações criminosas para os manifestantes. Essa é uma declaração que não deve ser feita nem pelo governador nem pelo chefe de segurança nem pela chefe da Polícia Civil. Essa é uma avaliação que deve ser feita pelo delegado quando são apresentados a ele os dados, as provas que foram colhidas pelo policial ou no caso de se efetuar a prisão em flagrante. Então, na realidade, nós observamos que há, sem dúvida, uma influência do poder Executivo nesse modus operandi da polícia. A polícia, por sua vez, atua muitas vezes valendo de flagrantes forjados ou o delegado se baseia apenas no depoimento do policial. Nós temos no Brasil, infelizmente, o chamado princípio de presunção da veracidade e da legitimidade dos atos do poder público, que significa que como o policial tem fé pública, um simples depoimento dele, mesmo que não apresentando outras provas, é suficiente para garantir uma prisão provisória e capaz de influenciar o juiz na hora de sentenciar o acusado. O problema é gravíssimo nesta instituição e demonstra o quanto é urgente a reforma da polícia.

No que se refere ao poder Judiciário, quando ele percebe que a prisão realmente foi executada de maneira arbitrária, sem lastro probatório, acaba relaxando. Mas, infelizmente, não é também todo representante do poder judiciário que tem a interpretação constitucionalmente adequada diante deste tipo de situação. Nós temos também juízes que têm manifestado interpretações que são conservadoras.

Temos presenciado muitas arbitrariedades no momento da repressão e da prisão, como a criação de obstáculos para a presença de advogados, a omissão de informações sobre quem comanda as operações ou sobre a delegacia para onde os presos serão levados, entre outras. Existe algum meio jurídico para conter ou punir essas atitudes?

A instituição policial, como qualquer da administração pública, deve ser submetida a controle, tanto interno quanto externo. O controle interno da polícia é feito pela corregedoria. Se há alguma irregularidade policial, ela deve ser comunicada a este setor. O que ocorre é que, como há um número muito grande de irregularidades, e também em razão de uma tradição de corporativismo que nós temos observado na polícia brasileira, a corregedoria por si só não dá conta. Nós precisamos de outros mecanismos de controle. O órgão público que tem função constitucional para exercer o controle externo da polícia é o Ministério Público. Por isso, é tão importante cobrar do MP que exerça essa função. Além disso, existem outros canais importantes que o cidadão pode acionar, como a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, que tem recebido denúncias, e cobrado a resposta de entidades competentes, a Ordem de Advogados do Brasil, que é relevante e tem prestado um auxílio importante aos manifestantes que estão sendo violados, por meio da sua comissão de direitos humanos. Para além disso, é claro, organizações da sociedade civil que são dedicadas à defesa dos direitos humanos.

Qual deve ser o papel da polícia nas manifestações e protestos populares num Estado de direito?

O papel da polícia diante de um Estado democrático de direito é garantir direitos fundamentais de qualquer cidadão. Não cabe à polícia, em nenhuma hipótese, praticar o uso excessivo da força. É claro que em uma situação de comprovada necessidade, a polícia pode fazer uso moderado e proporcional da força, mas o que tem-se observado nessas manifestações é uma repressão indiscriminada, sem critérios, que manifesta uma visão de que aquele cidadão que está nos protestos populares é considerado inimigo, que deve ser combatido. A ação da polícia remonta à ideia do toque de recolher, muito característico da época da ditadura, que é retirar o manifestante da rua. Não importa se ele estava praticando uma conduta delituosa.

O que é o uso proporcional da força que você diz? Como a polícia deveria reagir ao se deparar, por exemplo, com a quebra das vidraças, incêndio em lata de lixo?

É importante que se diga que em nenhuma hipótese é adequado o uso de armas letais para conter aquilo que a polícia chama de distúrbios civis. Evidentemente, não seria difícil gerar um resultado com morte com uma ação como esta. Para além disso, o uso moderado e proporcional das armas chamadas não-letais, que temos classificado como armas menos letais porque também geram casos letais - vide o caso recente no Rio de Janeiro, em que um manifestante veio a óbito em razão de uso excessivo dos gases de pimenta e gás lacrimogêneo pressupõe que, se o manifestante não está agindo de forma violenta, não há nenhum motivo para ele receber uma reação violenta do aparato policial. Não justifica o uso de bala de borracha, de gás de pimenta, de bomba de efeito moral se não há ação violenta por parte dos manifestantes. Agora, se em alguma circunstância, seja constatado que o manifestante está praticando uma conduta considerada criminosa, o policial pode e deve agir, mas jamais provocar lesões corporais ou atingir partes sensíveis do corpo. O que temos visto é o contrário, é a total ausência de critérios em sua atuação. Ao que parece, os policiais têm se direcionado a essas manifestações com uma sede de reprimi-las com violência.

Você disse que o manifestante é visto como inimigo e que a polícia já vai com sede de repressão. Isso tem alguma relação com a formação militar da polícia?

Na maioria das democracias ocidentais, as polícias não possuem formação militar. Isso é mais comum em regimes ditatoriais. O que ocorre é que o treinamento de uma instituição policial militar é voltado para o combate, que pressupõe a lógica da guerra. E diante da guerra, a ideia de que o outro lado tem direitos e garantias se torna frágil nesta lógica militar. Não há dúvida de que está mais do que na hora de se discutir isso. Há duas semanas mais ou menos foi apresentado pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ) uma proposta de emenda constitucional (PEC) que busca pôr fim ao caráter militar da polícia. Busca então, uma reforma profunda na polícia militar. Mas essa não é a única resposta necessária. É preciso uma reforma das polícias em geral. Temos violações praticadas pela Polícia Civil também. O batalhão de polícia especial da Polícia Civil tem atuado nas manifestações e vem violando direitos também. Além de pensar a desmilitarização, é preciso um reforma na polícia como um todo, de forma profunda, que priorize a inteligência, a formação e a capacitação. Enfim, que coloque a ação policial em conformidade com a nossa Constituição.